A partir de uma sugestão
É necessário ter, diante da obra que escutamos,
que interpretamos ou que compomos,
um respeito absoluto, como diante da própria existência.
Como se fosse uma questão de vida ou de morte.
Pierre Boulez
(1925-2016)
A música é a arte das artes,
Arte metafísica por excelência.
Lá onde acabam as palavras,
Começa a música.
O mundo materialista dispões de força pura.
O mundo da música possui apenas a força interior.
Otto Klemperer
(1885-1972)
Gildo Magalhães, professor titular jubilado da FFLECH–USP, após a leitura do blog “Novas considerações sobre o plágio” (27/01/2024), escreveu-me: “Raciocínios semelhantes poderiam ser feitos a respeito da interpretação musical: o intérprete tem o guia da partitura, mas pode ser também original num certo grau de liberdade, pode inovar – e haverá porventura queixa dos intérpretes ou ouvintes mais ortodoxos. Tenho certeza de que o dileto amigo poderia se estender à vontade neste domínio”.
Ao longo de quase 17 anos de blogs ininterruptos abordei várias vezes a problemática da interpretação pianística, tempo decorrido a acentuar tendências que, sedimentadas, ultimamente sofrem constante mutação. Apesar de tempo relativamente curto em termos de avaliação histórica da interpretação, apreende-se, nos últimos lustros, uma tendência que parece não esmorecer e toma rumos sempre mais agudos, a evidenciar que os avanços da tecnologia, da inteligência artificial e das rápidas transformações na sociedade influem não apenas na maneira de o intérprete se apresentar, mas também na sua necessidade de transmitir para o público aquilo que este, num mundo em ebulição nunca vista, está a esperar.
Se considerarmos as récitas atuais em quantidade de países, verifica-se que as transformações se processam em várias categorias, que se estendem do intérprete solo à grande orquestra ou grupo coral ao destino final, o ouvinte. A interligação dos componentes resultará na recepção por parte do público, mercê de processo sem volta que, em aceleração constante, tem modificado os costumes, o gosto musical e intensificado a luminosidade dos holofotes. Tantos intérpretes a eles se submetem, máxime quando mais ofuscantes. Em sendo o executante o eixo paradigmático de toda a engrenagem musical, o cenário se completa. Acalentado pela mídia, sempre a busca da notícia que terá alcance amplo, quando “glorificado” o intérprete permanecerá a executar prioritariamente o amplo repertório que sempre apresentou, pois é exatamente isso que o público voltado à tradição gosta de ouvir. Esse público mais habituado aos concertos e recitais sabe exatamente distinguir os intérpretes, categorizando-os através dos seus repertórios mais frequentados.
Para o intérprete que cultua repertório repetitivo, as mudanças podem até ser tênues e apenas básicas inovações interpretativas ocorrerão ao passar dos anos. Se fiel à partitura, continuará a sê-lo; se “transgride”, outras transgreções ocorrerão, pois DNAs não falham. A partir de um “carimbo” relacionado aos autores que, ao longo da carreira, determinado intérprete prosseguirá executando, poderá instalar-se a aura do especialista advinda das obras dos compositores eleitos e o público acorrerá às salas de concerto para ouvir… essas mesmas obras.
Sob o aspecto fulcral da interpretação, atenho-me a uma frase do notável pianista e regente Daniel Barenboin (1942-), perdida em um dos livros que percorri. Escrevia ele que pianistas executam cada vez mais rápido e os ouvidos humanos, muitas vezes, não conseguem acompanhar o hipervirtuosismo. Essa assertiva pode ser observada em quantidade de vídeos de jovens intérpretes do leste europeu, mormente do Extremo Oriente, que exibem técnicas absolutas, mas tantas vezes desprovidas de essencialidades em relação à estrutura das obras e do fraseado musical.
Exemplo típico foi expressado por relativamente jovem pianista oriental mundialmente conhecida, relatando que por vezes interpreta como encore, após saudada apresentação, uma peça super-rápida. Costuma receber pedidos para que toque ainda mais rápido! Essa posição superficial atinge o cerne da questão, tratada sob outra égide em La Civilizatión del espectáculo, de Mario Vargas Llosa. Os andamentos fixados pelos compositores nem sempre são exatos, mormente nos séculos anteriores, em que essas marcações metronômicas poderiam ser fixadas até pelo editor. Na falta de uma definição do autor, há sempre uma margem plausível que é tolerada. Um adagio é um adagio, assim como um allegro ou prestissimo também têm suas precisões. Contudo, flexibilizações em torno são até admitidas e, nesses andamentos mencionados, intérpretes nem sempre obedecem estritamente às indicações. Superdotados gostam de superar marcas, à maneira do ex-velocista Usain Bolt, outros escolhem o livre arbítrio e outros mais seguem à risca as marcações assinaladas pelo compositor. O pianista e grande mestre francês Jacques Février, ao considerar a obra para piano de Claude Debussy (1900-1979), bem afirmava que há mil maneiras de se tocar suas composições e que uma apenas é equivocada, a de trair o seu estilo. Nesta mesma linha, com a presença dos compositores, dois exemplos são reveladores. Maurice Ravel (1875-1937) admoestou rispidamente Arturo Toscanini (1867-1957) que, durante a execução do célebre Bolero em Nova York, à medida que a obra avançava com o aumento da intensidade, fê-lo também com o andamento. O Bolero de Ravel tem a marcação metronômica rigorosamente inalterável do início ao fim (60 a semínima). Camargo Guarnieri (1907-1993), ao ouvir a sua Sonata para violoncelo, foi ao camarim e repreendeu um descontraído instrumentista que arbitrariamente alterara o final. Indignado, Guarnieri teria respondido que, se quisesse assim proceder, que compusesse Sonata de sua lavra.
Um pianista de reais méritos acima do equador gravou a integral ao piano de Jean-Philippe Rameau. Contudo, geralmente nas reprises, resolveu improvisar. Nestes tempos hodiernos, a crítica saudou sua gravação!!! Entendo-a como um desrespeito. Um recuo de meio século, essa gravação não seria aceita. A percepção do crítico em questão certamente sofreu a influência de considerável parte da apreciação musical, quando a aparência de uma autenticidade se traduz na transgressão.
Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, Les Niais de Sologne, na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=xdKjHjNx700
Em outra avaliação, o respeitado violinista francês Augustin Dumay, em entrevista à L’Éducation Musicale poucos anos atrás, observou surpreso o desconhecimento de interpretações excelsas do passado por parte de talentosos pianistas: “Há pouco tempo tive uma surpresa com dois jovens pianistas que ganharam concursos internacionais. Não direi seus nomes. Estávamos em um café numa escola renomada e ouvíamos as Variações Abegg, de Schumann. Disse a um deles: ‘Vocês conhecem o disco de Clara Haskil dessas Variações? É extraordinário.’ Deu-lhes um branco, um olhar de peixe, pois não entendiam do que eu falava e, tendo repetido o nome da pianista, percebi que jamais tinham ouvido falar dela!”. Esse não culto aos valores do passado não tem sido uma constante nos tempos atuais?
Para as novas gerações, um aspecto vital deveria ser considerado. Sem a oitiva dos extraordinários intérpretes, e Clara Haskil é um exemplo, perde-se o fio da tradição e o impacto desta civilização do espetáculo, ao privilegiar a aparência, os potentes holofotes, o superficial e não o essencial, tende a sérias distorções. Tempos ainda mais complexos se avizinham.
A dear friend, a retired professor at the University of São Paulo, asked me about musical interpretation, mentioning fidelity or a certain freedom in relation to the score.
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