Jean-Philippe Rameau e o seu Tratado maior
A imensa contribuição de Rameau é a de que ele soube descobrir
a “sensibilidade na harmonia”;
conseguindo assinalar certas cores, certas nuances das quais, antes dele,
os músicos tinham apenas um sentimento confuso.
Rameau traça o caminho pelo qual passará toda a harmonia moderna; e ele mesmo.
Talvez tenha falhado ao escrever suas teorias antes de compor as suas óperas,
pois seus contemporâneos encontraram a oportunidade de concluir
a inexistência de qualquer emoção em sua música.
(novembro, 1912)
Escutemos o coração de Rameau,
jamais voz mais francesa não se faz ouvir, e já há muito tempo, na Ópera de Paris.
(8 de Maio, 1908)
Claude Debussy (1862-1918)
Se o blog anterior a respeito do pioneiro “L’Art de Toucher le Clavecin”, de François Couperin (1716-1717), teve boa recepção, Pedro Maurício, leitor que sugeriu o tema, propõe um blog sobre o “Traité de l”Harmonie réduite à ses principes naturels” (1722), de Jean-Philippe Rameau, mencionado no blog do último dia 16. Escreve: “Creio que seria um abuso, mas poderia o professor escrever também sobre o Tratado de Harmonia de Rameau?”. Faço-o com alegria, contudo de maneira bem sintetizada, mercê da incomensurável abrangência contida nos quatro livros do Tratado.
Nos inúmeros posts sobre Rameau, desde 2007 focalizei preferencialmente sua obra para cravo, mencionando sempre o inestimável contributo de Rameau na área teórica através das suas pesquisas fundamentais, que influenciaram um período substancial do século XVIII, todo o XIX até os primeiros decênios do século XX, pois a partir da metade do século passado pulularam tendências composicionais, muitas delas negligenciando as conquistas de antanho.
Um dos mais destacados biógrafos de Rameau, Jean Malignon, escreve que o Tratado de Harmonia é “uma reavaliação de todo o emaranhado empírico dos profissionais, a reelaboração de um amontoado de conhecimentos que se complicam sem fim. A partir deste livro manifesto, e em todas as suas obras posteriores sobre a ‘ciência musical’, ele tende a simplificar; no final, ele reduz a teoria a um único princípio, desta vez baseado na observação de fenómenos naturais: A razão põe diante dos nossos olhos apenas um acorde, consequência lógica da ressonância do corpo do som, isto é, dos seus harmônicos, dos quais ninguém tinha podido extrair nada, desde quando foram pesquisados” (1960).
No blog anterior fiz uma distinção entre os escritos dos dois nomes maiores da música francesa no período: Couperin através do método para cravistas, iniciantes ou não, Rameau com seus tratados teóricos sobre a Harmonia, principalmente. Datado de 1722, o seu “Traité de l’Harmonie…” teria considerações outras no “Nouveau systhème de musique” (1726), máxime na obra “Génération Harmonique”, de 1737. Datada de 1750, tardiamente Rameau escreveria “Démonstration du principe de l’harmonie”.
“Le Traité…” teria importância fundamental ao longo do tempo e foi estudado a fundo até a primeira metade do século XX, quando progressivamente quantidade de tendências composicionais tem proliferado, algumas delas à margem basicamente dos estudos da harmonia tradicional. Estou a me lembrar de episódio passado em Londres, onde estive a participar de um Colóquio sobre Debussy (1993). Um jovem compositor ofereceu-me um Study for piano, sabedor do meu projeto que somou 85 Estudos compostos especialmente para esse fim, vindos de vários países, e que apresentei em público. Lendo in loco a partitura, observei que ele era untouchable. Perguntei-lhe se alguma vez compusera uma “Fuga”, forma essencial nos cursos de composição mundo afora e que teve em J.S.Bach (1685-1750) seu maior cultor. A resposta foi imediata, “trata-se de uma forma ultrapassada”.
Rameau não desconhecia as conquistas advindas da ressonância de uma fundamental (som mais grave) e de outros avanços teóricos. Pitágoras (Século VI a.C, considerado o fundador da teoria musical moderna) e suas conclusões, tendo o monocórdio a exemplificá-las, Gioseffo Zarlino (1517-1590) René Descartes (1596-1650) através do “Musicae Compendium” e Joseph Sauveur (1653-1716) foram-lhe caros.
O “Tratado de Harmonia…” está dividido em duas partes distintas, uma primeira a conter dois livros (assim denominados) de cunho teórico e dois outros correspondendo ao ensino voltado à composição. Não obstante a divisão, a História da Música reservaria aos dois primeiros a competente notoriedade, pois trariam inovações, mercê de um raciocínio lógico, pouco afeito, nessa temática, até a sua aparição. Já no Prefácio, Rameau sinaliza a importância do som fundamental, o mais grave, de onde sucessivamente se formará o acorde. Esclarece: “O princípio da Harmonia se revela a partir de um Som único, e suas propriedades as mais essenciais são explicadas…”. O ilustre musicólogo Jacques Chailley (1910-1999) comenta: “Quanto ao baixo fundamental, pivô de todo o sistema ramista, ele aparece, essencialmente, como um meio prático de coordenar e de simplificar as regras do encadeamento do baixo contínuo, que até então eram ensinadas”.
Têm interesse e despertam curiosidade algumas “Reflexões de Rameau sobre a maneira de formar a voz e de aprender música…”, referindo-se ao som mais grave ou fundamental, e outras considerações colhidas através de arguta observação: “O que me fez entender pela primeira vez que a harmonia nos é natural, apreendi de um homem com mais de 70 anos, que, na parte inferior da Ópera de Lyon, começou a cantar bem alto o baixo fundamental de um canto cujas palavras o impactaram. Eu fiquei tão mais surpreso pelo rumor causado no Espetáculo, querendo saber quem era o cidadão. Soube se tratar de um artesão cuja profissão era árdua e rude. Ademais, sua condição o distanciou da música. Só frequentou a Ópera quando sua situação assim permitiu. O quê? Pensei então, um tal homem é capaz de entender um baixo fundamental que não se encontra expresso nem no Canto, tampouco no acompanhamento, isso a provar bem que a harmonia nos é natural. Minhas reflexões foram mais longe e me fizeram imaginar uma regra para facilitar a qualquer um, com a voz mais ou menos afinada, o Baixo fundamental de todos os repousos de um canto”.
Não sem razões, o insigne compositor e mestre esclarecido Gabriel Fauré (1845-1924), cuja linguagem musical é personalíssima e única, mas que cultuava a tradição, apregoava à nous les basses, valorizando as notas mais graves, preceito sempre transmitido para uma de suas intérpretes favoritas, Marguerite Long (1875-1966). Em suas aulas privadas, que tive o privilégio de frequentar em Paris, ela não deixava de repetir esse ensinamento do mestre.
Para o leitor, apresento a “série harmônica”, que ilustra o excelente ensaio do notável musicólogo espanhol Adolfo Salazar (1890-1958), “El Clave Temperado” (1950).
Nela, o autor apresenta inicialmente o som fundamental da corda, ficando demonstrado que a exata metade expõe a oitava acima, a metade da metade a quinta e assim sucessivamente em direção aos extremos agudos. Através dessas subdivisões, Salazar considera o caminhar da música através dos séculos.
A imagem do monocórdio com a divisão da corda, ou seja, a oitava acima, exemplifica bem o início da série harmônica exposta na imagem anterior.
Os dois outros livros do “Traité de l’Harmonie réduite à ses príncipes naturels” tratam dos “Princípios da Composição”. No terceiro, largamente o mais longo, nos seus 44 capítulos – alguns contendo vários artigos -, Rameau, após elencar elementos essenciais da escrita musical, a partir do segundo capítulo aborda o baixo fundamental e abre as explanações das estruturas composicionais. O quarto livro contempla os “Princípios de Acompanhamento” e didaticamente considera componentes que servem à composição. É constante o apelo de Rameau no que concerne ao Acorde, desdobramento essencial do baixo fundamental.
Jacques Chailley define com precisão a dimensão da obra teórica maior de Rameau: “O Traité de l’Harmonie de Rameau permanece um dos monumentos essenciais do pensamento musical de todos os tempos. Ele é a base de quase todas as obras pedagógicas que surgiram nesses 250 anos e, sem ele, talvez os músicos não tivessem sido formados como foram e a música não teria seguido os rumos conhecidos”.
Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, “Les Sauvages”, da ópera-ballet “Les Indes Galantes”, na interpretação de “Les Arts Florissants”, sob a direção de William Christie:
https://www.youtube.com/watch?v=jt92LGU3Dnw&t=42s
Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, “L’air pour Borée et la Rose, da ópera-ballet “Les Indes Galantes”, transcrita para cravo pelo compositor, na interpretação de J.E.M. ao piano:
https://www.youtube.com/watch?v=kYHMbUAw8sU
Jean-Philippe Rameau’s “Treatise on Harmony reduced to its natural principles” is a milestone in the History of Music, one of the essential works that has endured since 1722.
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