Navegando Posts publicados em maio, 2024

Nova criação sinfônica de François Servenière

É necessário evitar estar na moda no nosso métier!
Ao menos se buscamos outra coisa que as satisfações imediatas, materiais notadamente.

Nenhum compositor pode estar seguro que a sua música sobreviverá;
mas um método certo para escapar da posteridade, é seguir os ditames da moda.
Ela passará certamente, a música com ela, enquanto que uma música pensada fora dessass preocupações conserva uma chance de se increver na história.
Serge Nigg (1924-2008)

Inúmeras vezes o notável compositor francês François Servenière (1961-) esteve presente neste espaço, não apenas através de suas composições, como igualmente a partir de reflexões sempre plenas de interesse sobre música, artes e a atualidade em suas ramificações. Enviou-me recentemente uma composição ousada, recém-composta e plena de simbologia. Trata-se da “21ème Renaissance”, Sinfonia Concertante em um só andamento, subdividida em 16 pequenos episódios.

Deixemo-lo expor, através de frases retiradas da sua exposição preliminar, os motivos que o levaram à criação da significativa composição: “A luta contra todo o absolutismo e contra todo o obscurantismo é sempre uma luta pela vida, mas esta última termina sempre em triunfo. Iniciado no outono de 2014, ‘21eme Renaissance’ é uma metáfora lúdica do nosso tempo nesta batalha permanente entre os titãs – o niilismo e a morte contra a vida. A nossa época tem o privilégio de testemunhar a culminação das consequências catastróficas da ideologia deletéria em todos os níveis da sociedade. O pano de fundo da atmosfera neoclássica pós-moderna é enriquecido pelas contribuições técnicas dos meados do século anterior. Séries, ritmos, atonalidade, radicalismo, música repetitiva, apologia de períodos anteriores e mestres inspiradores misturam-se e dão uma cor muito inovadora numa partitura revolucionária para o nosso tempo”. Uma rica orquestração, acrescida de 60 vozes, dimensiona o grandioso projeto. Nesta permanente luta do bem contra o mal, resulta a morte do demônio, justamente no compasso 666, número este expresso no livro do Apocalipse, cap. 13, versículo 18: “Aqui há sutileza! O homem dotado de espírito calcula o número da Besta, pois é o número do homem, e o seu número é 666”. Considere-se que, “tanto em grego como em hebreu, cada letra tinha um valor numérico correspondente à sua colocação no alfabeto” (La Sainte Bible, Paris, Du Cerf, 1956, pg.1631). Servenière observa: “O suposto ‘número da Besta ou de Satanás’ tem propriedades matemáticas incríveis…”

“21ème Renaissance” se apresenta, sob determinada ótica, como uma obra à margem das inúmeras tendências composicionais – tantas delas arrivistas – que surgiram a partir da metade do século XX, mais acentuadamente, e que levaram o ilustre compositor francês Serge Nigg a dizer que, quando verifica o grande número de compositores que se apresenta num Festival de Música Contemporânea, “sente frio na espinha”.

François Servenière domina a escrita composicional. Cultua o passado, respeita-o, mas inova sempre a partir das bases sólidas adquiridas. Suas composições, sejam elas para piano solo, canto e piano ou orquestrais, revelam o mestre. Tendo gravado várias de suas composições, Sept Études CosmiquesAutomne CosmiqueTrois Morceaux pour endomir l’enfant d’un artiste, Promenade sur la Voie Lactée e três peças das Tribulations d’un écureuil Lambda, entusiasmaram-me os processos técnico-pianísticos elaborados, a qualidade escritural sem quaisquer indícios de panfletarismo e a criatividade de Servenière.

Os dezesseis quadros da Sinfonia Concertante, apesar da diversidade, têm elos que tornam a obra identitária. São as impressões digitais de um autor que configuram o compositor com linguagem definida. Sinais presentes em “The Sacred Fire”, outra obra maiúscula de Servenière (vide blog: “The Sacred Fire”, 06/05/2023).

A presença, em tantos segmentos, do “ostinato” em diversificada instrumentação, somada às modulações constantes e a escrita irrepreensível, possibilitam o amálgama perfeito com a temática inspiradora, no caso, vida e morte. Essas aparições repetitivas e insinuantes não seriam o peristilo do drama ou tragédia atual, em que ideologias antagônicas se degladiam, hoje globalmente, sempre mais acidamente? Não seriam o grito angustiado da humanidade a não antever a paz duradoura?

Um aspecto que é fulcral nas composições de François Servenière é a coerência. Tendo transitado por inúmeras de suas obras, sempre admirei no autor essa qualidade. Tanto em “The Sacred Fire”, como na atual “21ème Renaissance”, detecta-se o fio condutor de sua arte composicional. A dialética estaria presente, pois Servenière, nos tantos quadros musicais de impacto, busca o diálogo, mas sempre com o intuito de defender suas posições, máxime em se tratando da eterna disputa do bem contra o mal no mundo hodierno tão pleno de discórdias, extremismos e absoluto descaso pelo ser humano. A morte do demônio, justamente no paradigmático compasso 666, é a possibilidade da esperança e Servenière a tem.

Numa outra visão, poder-se-ia acrescentar que François Servenière distancia-se daqueles que buscam guetos composicionais, que se nutrem da aceitação quase unânime de seus reduzidos membros. Sob outra égide, também a aceitação plena, sem assimilação da criação, não o entusiasma. As temáticas dessas últimas obras sinfônicas estariam voltadas à denúncia daquilo que, hélas, se avizinha, o recrudescimento da nefasta dualidade, o desprezo ao entendimento mercê das posições herméticas existentes. Antolha-se-me que François Servenière atende aos seus anseios latentes, que se expressam através da música. E esta é traduzida na partitura através das únicas verdades absolutas, o bem contra o mal, vida e morte.

A dimensão musical se potencializa através das imagens pertinentes que acompanham cada capítulo musical. São pinturas marcantes de gênios dos séculos XIV, XV e XVI, que se coadunam à perfeição com o conteúdo musical. Ao fim de cada segmento, a imagem se pulveriza, a propiciar a espera de outro segmento, nesse longo caminhar das origens do homem à morte do mal. Haveria melhor argumento para definir a esperança?

Clique para ouvir, de François Servenière, 21ème Renaissance – Sinfonia Concertante:

(603) 21ème RENAISSANCE – François SERVENIÈRE – YouTube

Os dezesseis segmentos da “21ème Renaissance:

1. Criação do mundo
2. Luta do bem e do mal
3. Elfos e Anjos
4. Corrompendo Lúcifer
5. A Dança do Diabo 2
6. O nascimento da vida
7. Niilismo e sua procissão de aves da desgraça
8. A luta contínua entre o bem e o mal
9. A colocação para o resto da vida
10. O amor destrói o niilismo (coral)
11. A dança infantil da alegria
12. Embriaguez da juventude
13. FINAL
14. A força vital primitiva, monstruosa e rebelde
15. A vida, o único órgão do Universo
16. A morte do diabo (compasso 666)

A recurring debate has agitated the art world and global society since the dawn of humanity: the struggle between the ancient and the modern. “21ème Renaissance, Sinfonia Concertante in one movement”, is the latest symphonic creation by the illustrious French composer François Servenière. Life and Death are present and the composer ends the work at measure 666, apocalyptic because it represents the death of the devil.

 

Tudo a indicar a constante ascensão

Não corro como corria
Nem salto como saltava
Mas vejo mais do que via
E sonho mais que sonhava.
Agostinho da Silva

Alegrou-me o fato de vários leitores desejarem uma bela carreira ao jovem pianista, merecedor de muitos elogios pela franqueza com que se posiciona, ausência de empáfia e visão real de uma atividade que é sempre plena de surpresas, exigindo do intérprete uma capacidade singular de concentração, dedicação imensa, sacrifício, mas que o conduz a estágios de alma, quiçá, raríssimos entre as incontáveis atividades humanas. A continuar as considerações do jovem pianista, ficariam expostos posicionamentos que podem servir de reflexões a tantos outros talentos que, por motivos pessoais, não externam dúvidas e anseios.

Jovem Pianista - Eu sei que não posso me fixar em um, dois ou três compositores apenas e ficar com um repertório “limitado”. Tenho já um bom número de obras importantes privilegiando grandes compositores. Mozart, por exemplo, quero estudá-lo com mais afinco, pensando no momento em mais uma das suas Sonatas.

JE – Sim, Mozart é indispensável. Recomendaria a Sonata em lá menor, realmente uma das suas mais importantes criações do gênero e também a Fantasia K.475 em dó menor, obra singular, pois Mozart passeia por várias tonalidades com a leveza e a dramaticidade que conhecemos. Um verdadeiro “laboratório”, pleno de opções interpretativas. Sem contar os seus Concertos para piano e orquestra, alguns deles magníficos.

J.P. Acho que tem também a ver com a fase da vida em que estou. Por exemplo, eu adoro a Sonata de Liszt e penso estudá-la. No ano passado tive que estudar determinada obra relevante para um recital, porque pediram uma em especial. Toquei-a contrariado. Fiz o melhor que pude, claro, e saiu bem, mas foi um alívio quando acabou o concerto e a pude deixar. E é uma obra que eu adoro. Mas agora não estou mesmo nesse espírito e senti-me desconectado com o que estava a tocar.

JE – Poderia afirmar-lhe que jamais toquei uma obra pelo fato de uma determinada organização assim solicitar. É lógico que há tributo a pagar, pois algumas delas não gostam de ser contrariadas. Certamente o seu descontentamento veio também pelo fato daquele pedido. Estou a me lembrar de episódio que se deu muitas décadas atrás. Um renomado regente brasileiro me convidou para tocar com a sua orquestra. Sugeri duas obras que não são longas, a Fantasia de Claude Debussy (1862-1918) e o Concerto de Albert Roussel (1869-1937), alegando inclusive que tinha todo o material de orquestra. O regente afirmou que teria de ser o Concerto de Edvard Grieg (1843-1907), hiperconhecido, pois os dois Concertos sugeridos não atrairiam público. Recusei. O repertório que o prezado jovem anexou à mensagem já é considerável e isso é louvável. Incorpore outros compositores, entre eles Scriabine, Rachmaninov, Prokofiev, Debussy, Ravel, Bartok, Alban Berg, Villa Lobos… Tenha sempre nos dedos alguma suíte de J.S.Bach e peças de Scarlatti, Rameau, do português Carlos Seixas… Quanto aos contemporâneos, cautela. Nem sempre compositores endeusados pela mídia são os melhores, mas, em certos casos, compositores da moda. Saber escolhê-los requer conhecimento de algumas técnicas hodiernas, que se somam àquelas ainda ligadas à tradição. Alguns compositores seguidores desta linha podem, contudo, trazer inúmeras inovações quanto ao piano. Tendo visitado várias tendências, não me arrependo de nenhuma escolha. Arnold Schonberg (1874-1951), que empreendeu caminhada a partir de um romantismo tardio ao atonalismo, que o levaria à técnica de composição por ele idealizada, o dodecafonismo, já dizia: “Há ainda muita música boa para ser escrita em dó maior”. Foi um privilégio ter interpretado autores como Gilberto Mendes (1922-2016), Ricardo Tacuchian (1939-), Jorge Peixinho (1940-1994), Almeida Prado (1943-2010), Paulo Costa Lima (1954-), François Servenière (1961-), Eurico Carrapatoso (1962-) e tantos outros… Só não estudei criações para piano preparadas ad libitum ou, então, com o auxílio de quaisquer aparelhos eletrônicos.  Creio sagrado um instrumento que atingiu a perfeição. A inventiva humana é incomensurável. São tantos os instrumentos, eletrônicos ou não, que brotaram de cérebros talentosos! Que continuem a fazê-lo. Em recital que realizei em 1998 em Cardiff, País de Gales, havia três pianos de cauda inteira à disposição. O melhor fora danificado na noite anterior por um compositor-pianista do norte da Europa que preparara o piano. Tendo colocado objetos sobre a tábua harmônica e também entre as cordas, avariou o instrumento!!!

Clique para ouvir, de Paulo Costa Lima, Imikayá, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=qZqE63BeleQ

Clique para ouvir, de François Servenière, o Étude Cosmique nº 4, Níquel, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=6twd8WP_9js

 

J.P. – Já me conheço e sei como funciono. Por isso tenho que tentar encontrar um equilíbrio e estudar e me aprofundar em uma obra, ou pelo menos ter um bom conhecimento. Ao pensar numa obra de Schumann ou numa sonata de Schubert, confesso que, apesar da extrema importância dos dois grandes mestres da composição, sinto-me menos inclinado a estudar suas criações. Mais rapidamente toco algumas obras de Brahms, que sei que é o seu compositor problemático. Vou ver. Estou agora a ouvir a Humoreske de Schumann pelo Claudio Arrau.

J.E. – Achava que era só eu a ter dificuldades com a obra de Brahms, mas a admirá-la. Foi quando ouvi a entrevista que o grande compositor português Fernando Lopes-Graça (1906-1994) concedeu ao também renomado músico Victorino de Almeida, na qual dizia admirá-lo, mas não o amar. Também tenho o mais absoluto respeito por sua imensa obra, não obstante compactuar com a opinião de Lopes-Graça, como assevero no blog anterior. Aliás, gravei três CDs com composições extraordinárias de Lopes-Graça, várias em primeira audição.

J.P. – Se calhar é de eu ser ainda jovem. Preciso de amadurecer. Não sei… Ou então é uma fase. Estou cansado de tocar obras que toda a gente toca. E acho que isso também tem a ver.

J.E. – Foi esse o meu propósito a partir de 1970. Tinha eu 32 anos. Após ter percorrido unicamente o repertório que todos tocavam e, ainda mais, que os Concursos Internacionais exigiam, já casado e com as filhas pequenas, decidi pelo inusitado, escondido ou sepulto, mas uma abertura para a liberdade da escolha num campo assombroso e fascinante. Jean-Philippe Rameau, Debussy, Moussorgsky, Francisco de Lacerda, interpretei-os na íntegra, setorialmente as integrais dos Estudos e Poemas de Scriabine e vieram tantos outros que redescobria ou eram a porta de entrada para o maravilhamento. Já lá estava nos meus 50 e tais anos quando, pelos contatos semanais na Universidade de São Paulo com o dileto e saudoso amigo, o notável compositor Gilberto Mendes (1922-2016), penetrei na contemporaneidade.

J.P. – Há obras em que a minha visão vai mudando. Dizemos inicialmente, “nem pensar”, mas com o passar do tempo passamos a delas gostar, tocá-las em público e até gravar. Portanto, há esperança. Mas nesta fase da minha vida, estou mesmo com dificuldade em encontrar obras de relevo nas quais sinta que tenho alguma coisa para dizer e que posso delas extrair uma proposição, com todo o respeito à partitura.

A título de curiosidade, envio em anexo a lista de todas as obras que já estudei, para não ficar a achar que eu não gosto de nada.

JE – Jamais assim pensei. Tenho profunda admiração pelo seu incansável trabalho neste mundo a cada ano mais conturbado sob todos os aspectos. Felizmente temos a Música. Deixo apenas como lembrança uma palavra, creio que fulcral para a nossa atividade: Curiosidade. Ela nos impulsiona e incorporá-la, como a fazer parte do nosso de profundis, deve ser o nosso vislumbre. Seguir em frente.

On a questionnaire received from a young pianist who would like to know my position on his choice of repertoire and personal affinity with certain composers over others. (II)

Considerações que poderão ser úteis ao músico promissor

“Nada de grandioso se consegue da arte sem o entusiasmo”.
“Só compreenderás o espírito quando fores mestre da forma”.
“Jamais deixaremos de aprender”.
“Tudo o que vem com a moda se vai com ela, e se quiseres interpretar o que está na moda, ao envelhecer serás insuportável a todos e não serás estimado por ninguém”.
“Não divulgue jamais composições sem valor, ao contrário, com energia as suprima”.
“Toque sempre como se estivesse na presença de um mestre”.
Robert Schumann (1810-1856)
(“Conselhos aos jovens músicos”)

Recebi ultimamente um “questionário” de jovem pianista de reais méritos que desenvolve carreira bem acolhida na Europa, apesar das circunstâncias atuais voltadas ao gênero denominado clássico ou erudito. Tive o prazer de ouvi-lo a interpretar obras de envergadura e a impressão foi marcante.

Resguardando a sua identidade, entendo contudo que as suas considerações ensejaram reflexões que eventualmente poderão ser úteis a outros postulantes à difícil atividade, mas gratificante sob tantos aspectos.

A realidade da música de concerto, clássica ou erudita no hemisfério norte, no que concerne aos solistas ou cameristas, quando não antecedida por holofotes poderosos, obedece a uma dinâmica diferenciada. Sem as amarras do sistema até certo aspecto sufocante, se de um lado profissional o retorno mostra-se mais tímido, denodo e afeto à música, essências do engajamento, evidenciam-se na interpretação. Nessa situação se situa a maioria de excelentes instrumentistas não bafejados pela alta popularidade, mas sempre tendo a natural inclinação à qualidade interpretativa. Inexistiria, neste caso, o impactar através de artifícios virtuosísticos, como também extravagâncias de gestos e vestimentas ousadas, um todo completo a agradar imenso público cativo pelo planeta. Nem todos se submetem ao sistema, mesmo sendo extraordinários intérpretes. Quando das duas décadas gravando para o selo belga De Rode Pomp, tive o prazer de ouvir, nas temporadas em Gand, intérpretes admiráveis de vários países europeus que não viviam sob o jugo da luminosidade. Estou a me lembrar de um dos meus mestres em Paris, o notável e excelso pianista Jean Doyen (1907-1982), executante de um repertório imenso. Só de Concertos para piano e orquestra, respondendo a uma perguntei que formulei, respondeu com naturalidade ter tocado 67 obras do gênero! Vivendo com sua esposa e filha, não era afeito às grandes turnês ou aos holofotes.

Clique para ouvir, de Ravel, “Jeux d’eau”, na interpretação de Jean Doyen:

https://www.youtube.com/watch?v=3edsp-GoB8o&t=13s

O jovem pianista primeiramente considera o repertório e a afinidade por determinados compositores em detrimento de outros e apreciaria saber meu posicionamento.

JE – Não se puna em relação ao repertório. Considerando um compositor pelo qual a sua afinidade se mostra diminuta, aprofundar-se na literatura a ele dedicada e analisar uma ou mais obras poderão abrir a sua mente e a admiração pelas outras criações do autor possivelmente crescerá. É fundamental o conhecimento de estilos diferentes. Apesar de pouca afinidade com a obra de Johannes Brahms (1833-1897) – o notável compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994) dizia que a respeitava, mas não a amava -, estudei umas poucas composições do mestre alemão e compactuo com a opinião do mestre português.

J.P. - O que comentava no whatsapp é que desde adolescente tenho uma extrema dificuldade em tocar obras que sei que não quero tocar. Eu me esforço e não consigo, porque o meu “eu” é mais forte.

J.E. - O não gostar de determinadas obras pode ser motivo para o desconhecimento de outras criações de um compositor. Se estas forem visitadas, mesmo que através de uma leitura, o interesse pelas rejeitadas poderá surgir. Numa outra direção, entendo fundamental a análise prévia de uma composição. Quantas benfazejas “descobertas” podemos fazer!

J.P. – Uma vez o meu professor do conservatório quis que eu fosse a um concurso. Inscrevi-me, comecei a estudar todo o repertório, mas tinha que aprender uma composição… de que eu não gostava. O que acabou por acontecer foi que eu nunca estudava essa peça para a aula e uns dias antes do concurso decidiu-se que eu afinal não iria, claro, porque a obra não estava em condições. O mesmo se passou quando a minha professora bem anterior quis que eu tocasse o Gradus ad Parnassum de Debussy… eu nunca estudava a peça, até que ela desistiu. O professor com quem estudei a seguir acabou por me deixar sempre tocar o que eu quis, e eu andei feliz da vida todo o tempo em que estudei com ele. A certa altura sugeriu (muito afirmativamente) uma das grandes obras de Schumann. Toquei, para dar uma chance. Tentei perceber a obra. Levei-a ao recital final de Licenciatura. Tive uma falha de memória grande em pleno exame, que me fez saltar uma página. Nunca tinha tido uma falha tão grande. Estragou-me o resto do exame. Já gostava pouco e fiquei a gostar ainda menos da composição que sei importantíssima. Andei meses a sentir-me mal com este episódio, e deixou-me com complexos de memória, que era coisa que eu não tinha. Voltei a tocá-la mais tarde para fazer as pazes. Continuei sem gostar particularmente e da última vez que a toquei em público tive a mesma falha de memória. E pensei: para mim acabou. Depois fiz as pazes com Schumann com o Carnaval de Viena. Essa sim, foi uma obra que eu quis mesmo tocar e me deu muito gosto estudar. Se me dissessem que a ia tocar no mês que vem, ia já para o piano estudar.

J.E. – Primeiramente sobre a memória, estou a me lembrar de uma frase de um excelente pianista brasileiro, Jacques Klein (1930-1982). Em uma conversa que tivemos sobre a memória, afirmava que a falha “acontece nas melhores famílias”. Já as tive, não foram poucas ao longo de 70 anos. Assim como o extraordinário Sviatoslav Richter (1915-1997), que a partir de duas falhas de memória que considerou graves passou os últimos dez anos da existência tocando com a partitura à frente. Inútil dizer que, logicamente, as composições interpretadas estavam muito bem depositadas no seu de profundis. Sobre gostar ou não de determinadas peças ou de autores, há fatores originários: idiossincrasia pelo compositor, posição que tende a contaminar o todo, assim como a não afinidade por certa criação do autor. A sua rejeição a Debussy é personalíssima, prezado pianista. Tendo apresentado a integral para piano solo, piano a quatro mãos e a camerística completa, desde sempre me convenci de que o piano de Debussy é absolutamente singular. Desenvolve a busca sonora em seus extremos – apesar de 80% de sua obra estar entre as baixas e baixíssimas intensidades –, estimula o legato, o timbre, a arte da substituição dos dedos sobre uma determinada nota, entre tantas outras contribuições. Tantos mestres do passado já se pronunciaram a respeito, exaltando outras conquistas do autor da ópera Pelléas et Mélisande. Acredito que a sua contribuição foi decisiva na interpretação, uma verdadeira revolução sonora e conceitual. O grande mestre francês Jacques Février (1900-1979), com quem também estudei em Paris, intérprete das integrais de Debussy e Ravel para piano, dizia que “há mil e uma maneiras de se interpretar Debussy e uma só é errada, a de trair o seu estilo”.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, as duas Arabesques, na interpretação de Jacques Février:

https://www.youtube.com/watch?v=748ETj88GpQ

JP -  Eu sei que devo ter obras grandes no repertório. Percebo a importância disso e faz todo o sentido. Mas Schumann (exceto o Carnaval de Viena) tem uma linguagem que eu não percebo. Não me sinto próximo, não me dá vontade de tocar. Não é que eu não goste, eu ouço às vezes em concertos. Só que não sinto conexão, não consigo fazer alguma coisa de especial. E por isso, prefiro não pegar.

J.E. – Maurice Beaufils, ilustre musicólogo francês, bem dizia que Schumann é o mais francês dos alemães e que a sua música vai diretamente ao coração. Creio que difere de Brahms, este, alemão por excelência, ligado à forma e a ter na escrita pianística uma visão orquestral. Se o piano de Brahms é pleno de “quase” uma redução da orquestra, onde os acordes têm presença marcante, Schumann é mais fluido. Não por acaso, Schumann penetrou logo no repertório dos franceses e a admiração por Brahms foi mais tardia. Considerem-se as edições URTEX, excelentes na exatidão das músicas, mas sem a posição explícita de grandes mestres do teclado, fundamental e que nos liga à tradição interpretativa. Se você tiver a oportunidade de adquirir as edições – não sei se existem novas – com análises profundas, poéticas, das obras de Chopin, Schumann e Liszt realizadas pelo notável Alfred Cortot (1877-1962), tenho a impressão de que terá uma outra posição quanto a Schumann. Digo o mesmo das edições das Sonatas de Beethoven por Arthur Schnabel (1882-1951). São preceitos imbuídos de análise poético-didáticas, distantes das análises estruturais, a jorrarem aquilo que o grande Guerra Junqueiro dizia: “A Música é poesia incorpórea”. Sob outro aspecto, creio que seu mestre tenha se equivocado quando lhe pediu para estudar em primeiro lugar uma das obras capitais de Schumann. Não se entra no universo poético-literário de Schumann pelas suas Grandes criações. Penetra-se nesse universo pelas Cenas Infantis, Blumenstüch, algumas Novelettes, peças da Fantasiestücke, o Carnaval de Viena para se chegar ao Carnaval op 9, às Sonatas, Kreisleriana, Humoresque, aos Estudos Sinfônicos, à Fantasia op.17 e, após ter conhecido alguns desses monumentos, às Cenas da Floresta, obra de uma fase de síntese do compositor.

J.P. – E Schubert… eu estava a tentar mentalizar-me. Estive a ouvir algumas sonatas e a pensar no esforço para penetrar naquele universo. Realmente um problema meu.

JE – Não se deve fazer esforço. Schubert poderá entrar na sua vida como a primavera para aqueles que amam as cores da natureza. Schubert é uma das fontes mais puras que jamais a Música conheceu. Penetrar no seu mundo límpido, transparente, necessita primeiramente que o intérprete se despoje de quaisquer preconceitos. Conheça alguns Improvisos opus 90 ou 142. Um portal que a fará penetrar num campo imenso, imaculado. Após os Improvisos, sugiro as últimas Sonatas ou, então, a monumental Wanderer-Fantasie.

No próximo blog, finalizarei as respostas ao posicionamento que me interessou muito, mercê das considerações tão bem expostas pelo jovem pianista. Pouquíssimos ousam extravasar dúvidas, incertezas, esperanças e escolhas. Na Arte em geral, é comum a existência de egos exacerbados. Na interpretação ainda mais, pois o aplauso do público carrega grau elevado de hipnotismo. Compete ao instrumentista não ser subjugado pelo canto das sereias, daí meu apreço pelo músico que não hesitou em escrever.

On a questionnaire received from a young pianist who would like to know my position on his choice of repertoire and personal affinity with certain composers over others.