Considerações que poderão ser úteis ao músico promissor

“Nada de grandioso se consegue da arte sem o entusiasmo”.
“Só compreenderás o espírito quando fores mestre da forma”.
“Jamais deixaremos de aprender”.
“Tudo o que vem com a moda se vai com ela, e se quiseres interpretar o que está na moda, ao envelhecer serás insuportável a todos e não serás estimado por ninguém”.
“Não divulgue jamais composições sem valor, ao contrário, com energia as suprima”.
“Toque sempre como se estivesse na presença de um mestre”.
Robert Schumann (1810-1856)
(“Conselhos aos jovens músicos”)

Recebi ultimamente um “questionário” de jovem pianista de reais méritos que desenvolve carreira bem acolhida na Europa, apesar das circunstâncias atuais voltadas ao gênero denominado clássico ou erudito. Tive o prazer de ouvi-lo a interpretar obras de envergadura e a impressão foi marcante.

Resguardando a sua identidade, entendo contudo que as suas considerações ensejaram reflexões que eventualmente poderão ser úteis a outros postulantes à difícil atividade, mas gratificante sob tantos aspectos.

A realidade da música de concerto, clássica ou erudita no hemisfério norte, no que concerne aos solistas ou cameristas, quando não antecedida por holofotes poderosos, obedece a uma dinâmica diferenciada. Sem as amarras do sistema até certo aspecto sufocante, se de um lado profissional o retorno mostra-se mais tímido, denodo e afeto à música, essências do engajamento, evidenciam-se na interpretação. Nessa situação se situa a maioria de excelentes instrumentistas não bafejados pela alta popularidade, mas sempre tendo a natural inclinação à qualidade interpretativa. Inexistiria, neste caso, o impactar através de artifícios virtuosísticos, como também extravagâncias de gestos e vestimentas ousadas, um todo completo a agradar imenso público cativo pelo planeta. Nem todos se submetem ao sistema, mesmo sendo extraordinários intérpretes. Quando das duas décadas gravando para o selo belga De Rode Pomp, tive o prazer de ouvir, nas temporadas em Gand, intérpretes admiráveis de vários países europeus que não viviam sob o jugo da luminosidade. Estou a me lembrar de um dos meus mestres em Paris, o notável e excelso pianista Jean Doyen (1907-1982), executante de um repertório imenso. Só de Concertos para piano e orquestra, respondendo a uma perguntei que formulei, respondeu com naturalidade ter tocado 67 obras do gênero! Vivendo com sua esposa e filha, não era afeito às grandes turnês ou aos holofotes.

Clique para ouvir, de Ravel, “Jeux d’eau”, na interpretação de Jean Doyen:

https://www.youtube.com/watch?v=3edsp-GoB8o&t=13s

O jovem pianista primeiramente considera o repertório e a afinidade por determinados compositores em detrimento de outros e apreciaria saber meu posicionamento.

JE – Não se puna em relação ao repertório. Considerando um compositor pelo qual a sua afinidade se mostra diminuta, aprofundar-se na literatura a ele dedicada e analisar uma ou mais obras poderão abrir a sua mente e a admiração pelas outras criações do autor possivelmente crescerá. É fundamental o conhecimento de estilos diferentes. Apesar de pouca afinidade com a obra de Johannes Brahms (1833-1897) – o notável compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994) dizia que a respeitava, mas não a amava -, estudei umas poucas composições do mestre alemão e compactuo com a opinião do mestre português.

J.P. - O que comentava no whatsapp é que desde adolescente tenho uma extrema dificuldade em tocar obras que sei que não quero tocar. Eu me esforço e não consigo, porque o meu “eu” é mais forte.

J.E. - O não gostar de determinadas obras pode ser motivo para o desconhecimento de outras criações de um compositor. Se estas forem visitadas, mesmo que através de uma leitura, o interesse pelas rejeitadas poderá surgir. Numa outra direção, entendo fundamental a análise prévia de uma composição. Quantas benfazejas “descobertas” podemos fazer!

J.P. – Uma vez o meu professor do conservatório quis que eu fosse a um concurso. Inscrevi-me, comecei a estudar todo o repertório, mas tinha que aprender uma composição… de que eu não gostava. O que acabou por acontecer foi que eu nunca estudava essa peça para a aula e uns dias antes do concurso decidiu-se que eu afinal não iria, claro, porque a obra não estava em condições. O mesmo se passou quando a minha professora bem anterior quis que eu tocasse o Gradus ad Parnassum de Debussy… eu nunca estudava a peça, até que ela desistiu. O professor com quem estudei a seguir acabou por me deixar sempre tocar o que eu quis, e eu andei feliz da vida todo o tempo em que estudei com ele. A certa altura sugeriu (muito afirmativamente) uma das grandes obras de Schumann. Toquei, para dar uma chance. Tentei perceber a obra. Levei-a ao recital final de Licenciatura. Tive uma falha de memória grande em pleno exame, que me fez saltar uma página. Nunca tinha tido uma falha tão grande. Estragou-me o resto do exame. Já gostava pouco e fiquei a gostar ainda menos da composição que sei importantíssima. Andei meses a sentir-me mal com este episódio, e deixou-me com complexos de memória, que era coisa que eu não tinha. Voltei a tocá-la mais tarde para fazer as pazes. Continuei sem gostar particularmente e da última vez que a toquei em público tive a mesma falha de memória. E pensei: para mim acabou. Depois fiz as pazes com Schumann com o Carnaval de Viena. Essa sim, foi uma obra que eu quis mesmo tocar e me deu muito gosto estudar. Se me dissessem que a ia tocar no mês que vem, ia já para o piano estudar.

J.E. – Primeiramente sobre a memória, estou a me lembrar de uma frase de um excelente pianista brasileiro, Jacques Klein (1930-1982). Em uma conversa que tivemos sobre a memória, afirmava que a falha “acontece nas melhores famílias”. Já as tive, não foram poucas ao longo de 70 anos. Assim como o extraordinário Sviatoslav Richter (1915-1997), que a partir de duas falhas de memória que considerou graves passou os últimos dez anos da existência tocando com a partitura à frente. Inútil dizer que, logicamente, as composições interpretadas estavam muito bem depositadas no seu de profundis. Sobre gostar ou não de determinadas peças ou de autores, há fatores originários: idiossincrasia pelo compositor, posição que tende a contaminar o todo, assim como a não afinidade por certa criação do autor. A sua rejeição a Debussy é personalíssima, prezado pianista. Tendo apresentado a integral para piano solo, piano a quatro mãos e a camerística completa, desde sempre me convenci de que o piano de Debussy é absolutamente singular. Desenvolve a busca sonora em seus extremos – apesar de 80% de sua obra estar entre as baixas e baixíssimas intensidades –, estimula o legato, o timbre, a arte da substituição dos dedos sobre uma determinada nota, entre tantas outras contribuições. Tantos mestres do passado já se pronunciaram a respeito, exaltando outras conquistas do autor da ópera Pelléas et Mélisande. Acredito que a sua contribuição foi decisiva na interpretação, uma verdadeira revolução sonora e conceitual. O grande mestre francês Jacques Février (1900-1979), com quem também estudei em Paris, intérprete das integrais de Debussy e Ravel para piano, dizia que “há mil e uma maneiras de se interpretar Debussy e uma só é errada, a de trair o seu estilo”.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, as duas Arabesques, na interpretação de Jacques Février:

https://www.youtube.com/watch?v=748ETj88GpQ

JP -  Eu sei que devo ter obras grandes no repertório. Percebo a importância disso e faz todo o sentido. Mas Schumann (exceto o Carnaval de Viena) tem uma linguagem que eu não percebo. Não me sinto próximo, não me dá vontade de tocar. Não é que eu não goste, eu ouço às vezes em concertos. Só que não sinto conexão, não consigo fazer alguma coisa de especial. E por isso, prefiro não pegar.

J.E. – Maurice Beaufils, ilustre musicólogo francês, bem dizia que Schumann é o mais francês dos alemães e que a sua música vai diretamente ao coração. Creio que difere de Brahms, este, alemão por excelência, ligado à forma e a ter na escrita pianística uma visão orquestral. Se o piano de Brahms é pleno de “quase” uma redução da orquestra, onde os acordes têm presença marcante, Schumann é mais fluido. Não por acaso, Schumann penetrou logo no repertório dos franceses e a admiração por Brahms foi mais tardia. Considerem-se as edições URTEX, excelentes na exatidão das músicas, mas sem a posição explícita de grandes mestres do teclado, fundamental e que nos liga à tradição interpretativa. Se você tiver a oportunidade de adquirir as edições – não sei se existem novas – com análises profundas, poéticas, das obras de Chopin, Schumann e Liszt realizadas pelo notável Alfred Cortot (1877-1962), tenho a impressão de que terá uma outra posição quanto a Schumann. Digo o mesmo das edições das Sonatas de Beethoven por Arthur Schnabel (1882-1951). São preceitos imbuídos de análise poético-didáticas, distantes das análises estruturais, a jorrarem aquilo que o grande Guerra Junqueiro dizia: “A Música é poesia incorpórea”. Sob outro aspecto, creio que seu mestre tenha se equivocado quando lhe pediu para estudar em primeiro lugar uma das obras capitais de Schumann. Não se entra no universo poético-literário de Schumann pelas suas Grandes criações. Penetra-se nesse universo pelas Cenas Infantis, Blumenstüch, algumas Novelettes, peças da Fantasiestücke, o Carnaval de Viena para se chegar ao Carnaval op 9, às Sonatas, Kreisleriana, Humoresque, aos Estudos Sinfônicos, à Fantasia op.17 e, após ter conhecido alguns desses monumentos, às Cenas da Floresta, obra de uma fase de síntese do compositor.

J.P. – E Schubert… eu estava a tentar mentalizar-me. Estive a ouvir algumas sonatas e a pensar no esforço para penetrar naquele universo. Realmente um problema meu.

JE – Não se deve fazer esforço. Schubert poderá entrar na sua vida como a primavera para aqueles que amam as cores da natureza. Schubert é uma das fontes mais puras que jamais a Música conheceu. Penetrar no seu mundo límpido, transparente, necessita primeiramente que o intérprete se despoje de quaisquer preconceitos. Conheça alguns Improvisos opus 90 ou 142. Um portal que a fará penetrar num campo imenso, imaculado. Após os Improvisos, sugiro as últimas Sonatas ou, então, a monumental Wanderer-Fantasie.

No próximo blog, finalizarei as respostas ao posicionamento que me interessou muito, mercê das considerações tão bem expostas pelo jovem pianista. Pouquíssimos ousam extravasar dúvidas, incertezas, esperanças e escolhas. Na Arte em geral, é comum a existência de egos exacerbados. Na interpretação ainda mais, pois o aplauso do público carrega grau elevado de hipnotismo. Compete ao instrumentista não ser subjugado pelo canto das sereias, daí meu apreço pelo músico que não hesitou em escrever.

On a questionnaire received from a young pianist who would like to know my position on his choice of repertoire and personal affinity with certain composers over others.