Tudo a indicar a constante ascensão
Não corro como corria
Nem salto como saltava
Mas vejo mais do que via
E sonho mais que sonhava.
Agostinho da Silva
Alegrou-me o fato de vários leitores desejarem uma bela carreira ao jovem pianista, merecedor de muitos elogios pela franqueza com que se posiciona, ausência de empáfia e visão real de uma atividade que é sempre plena de surpresas, exigindo do intérprete uma capacidade singular de concentração, dedicação imensa, sacrifício, mas que o conduz a estágios de alma, quiçá, raríssimos entre as incontáveis atividades humanas. A continuar as considerações do jovem pianista, ficariam expostos posicionamentos que podem servir de reflexões a tantos outros talentos que, por motivos pessoais, não externam dúvidas e anseios.
Jovem Pianista - Eu sei que não posso me fixar em um, dois ou três compositores apenas e ficar com um repertório “limitado”. Tenho já um bom número de obras importantes privilegiando grandes compositores. Mozart, por exemplo, quero estudá-lo com mais afinco, pensando no momento em mais uma das suas Sonatas.
JE – Sim, Mozart é indispensável. Recomendaria a Sonata em lá menor, realmente uma das suas mais importantes criações do gênero e também a Fantasia K.475 em dó menor, obra singular, pois Mozart passeia por várias tonalidades com a leveza e a dramaticidade que conhecemos. Um verdadeiro “laboratório”, pleno de opções interpretativas. Sem contar os seus Concertos para piano e orquestra, alguns deles magníficos.
J.P. Acho que tem também a ver com a fase da vida em que estou. Por exemplo, eu adoro a Sonata de Liszt e penso estudá-la. No ano passado tive que estudar determinada obra relevante para um recital, porque pediram uma em especial. Toquei-a contrariado. Fiz o melhor que pude, claro, e saiu bem, mas foi um alívio quando acabou o concerto e a pude deixar. E é uma obra que eu adoro. Mas agora não estou mesmo nesse espírito e senti-me desconectado com o que estava a tocar.
JE – Poderia afirmar-lhe que jamais toquei uma obra pelo fato de uma determinada organização assim solicitar. É lógico que há tributo a pagar, pois algumas delas não gostam de ser contrariadas. Certamente o seu descontentamento veio também pelo fato daquele pedido. Estou a me lembrar de episódio que se deu muitas décadas atrás. Um renomado regente brasileiro me convidou para tocar com a sua orquestra. Sugeri duas obras que não são longas, a Fantasia de Claude Debussy (1862-1918) e o Concerto de Albert Roussel (1869-1937), alegando inclusive que tinha todo o material de orquestra. O regente afirmou que teria de ser o Concerto de Edvard Grieg (1843-1907), hiperconhecido, pois os dois Concertos sugeridos não atrairiam público. Recusei. O repertório que o prezado jovem anexou à mensagem já é considerável e isso é louvável. Incorpore outros compositores, entre eles Scriabine, Rachmaninov, Prokofiev, Debussy, Ravel, Bartok, Alban Berg, Villa Lobos… Tenha sempre nos dedos alguma suíte de J.S.Bach e peças de Scarlatti, Rameau, do português Carlos Seixas… Quanto aos contemporâneos, cautela. Nem sempre compositores endeusados pela mídia são os melhores, mas, em certos casos, compositores da moda. Saber escolhê-los requer conhecimento de algumas técnicas hodiernas, que se somam àquelas ainda ligadas à tradição. Alguns compositores seguidores desta linha podem, contudo, trazer inúmeras inovações quanto ao piano. Tendo visitado várias tendências, não me arrependo de nenhuma escolha. Arnold Schonberg (1874-1951), que empreendeu caminhada a partir de um romantismo tardio ao atonalismo, que o levaria à técnica de composição por ele idealizada, o dodecafonismo, já dizia: “Há ainda muita música boa para ser escrita em dó maior”. Foi um privilégio ter interpretado autores como Gilberto Mendes (1922-2016), Ricardo Tacuchian (1939-), Jorge Peixinho (1940-1994), Almeida Prado (1943-2010), Paulo Costa Lima (1954-), François Servenière (1961-), Eurico Carrapatoso (1962-) e tantos outros… Só não estudei criações para piano preparadas ad libitum ou, então, com o auxílio de quaisquer aparelhos eletrônicos. Creio sagrado um instrumento que atingiu a perfeição. A inventiva humana é incomensurável. São tantos os instrumentos, eletrônicos ou não, que brotaram de cérebros talentosos! Que continuem a fazê-lo. Em recital que realizei em 1998 em Cardiff, País de Gales, havia três pianos de cauda inteira à disposição. O melhor fora danificado na noite anterior por um compositor-pianista do norte da Europa que preparara o piano. Tendo colocado objetos sobre a tábua harmônica e também entre as cordas, avariou o instrumento!!!
Clique para ouvir, de Paulo Costa Lima, Imikayá, na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=qZqE63BeleQ
Clique para ouvir, de François Servenière, o Étude Cosmique nº 4, Níquel, na interpretação de J.E.M.
https://www.youtube.com/watch?v=6twd8WP_9js
J.P. – Já me conheço e sei como funciono. Por isso tenho que tentar encontrar um equilíbrio e estudar e me aprofundar em uma obra, ou pelo menos ter um bom conhecimento. Ao pensar numa obra de Schumann ou numa sonata de Schubert, confesso que, apesar da extrema importância dos dois grandes mestres da composição, sinto-me menos inclinado a estudar suas criações. Mais rapidamente toco algumas obras de Brahms, que sei que é o seu compositor problemático. Vou ver. Estou agora a ouvir a Humoreske de Schumann pelo Claudio Arrau.
J.E. – Achava que era só eu a ter dificuldades com a obra de Brahms, mas a admirá-la. Foi quando ouvi a entrevista que o grande compositor português Fernando Lopes-Graça (1906-1994) concedeu ao também renomado músico Victorino de Almeida, na qual dizia admirá-lo, mas não o amar. Também tenho o mais absoluto respeito por sua imensa obra, não obstante compactuar com a opinião de Lopes-Graça, como assevero no blog anterior. Aliás, gravei três CDs com composições extraordinárias de Lopes-Graça, várias em primeira audição.
J.P. – Se calhar é de eu ser ainda jovem. Preciso de amadurecer. Não sei… Ou então é uma fase. Estou cansado de tocar obras que toda a gente toca. E acho que isso também tem a ver.
J.E. – Foi esse o meu propósito a partir de 1970. Tinha eu 32 anos. Após ter percorrido unicamente o repertório que todos tocavam e, ainda mais, que os Concursos Internacionais exigiam, já casado e com as filhas pequenas, decidi pelo inusitado, escondido ou sepulto, mas uma abertura para a liberdade da escolha num campo assombroso e fascinante. Jean-Philippe Rameau, Debussy, Moussorgsky, Francisco de Lacerda, interpretei-os na íntegra, setorialmente as integrais dos Estudos e Poemas de Scriabine e vieram tantos outros que redescobria ou eram a porta de entrada para o maravilhamento. Já lá estava nos meus 50 e tais anos quando, pelos contatos semanais na Universidade de São Paulo com o dileto e saudoso amigo, o notável compositor Gilberto Mendes (1922-2016), penetrei na contemporaneidade.
J.P. – Há obras em que a minha visão vai mudando. Dizemos inicialmente, “nem pensar”, mas com o passar do tempo passamos a delas gostar, tocá-las em público e até gravar. Portanto, há esperança. Mas nesta fase da minha vida, estou mesmo com dificuldade em encontrar obras de relevo nas quais sinta que tenho alguma coisa para dizer e que posso delas extrair uma proposição, com todo o respeito à partitura.
A título de curiosidade, envio em anexo a lista de todas as obras que já estudei, para não ficar a achar que eu não gosto de nada.
JE – Jamais assim pensei. Tenho profunda admiração pelo seu incansável trabalho neste mundo a cada ano mais conturbado sob todos os aspectos. Felizmente temos a Música. Deixo apenas como lembrança uma palavra, creio que fulcral para a nossa atividade: Curiosidade. Ela nos impulsiona e incorporá-la, como a fazer parte do nosso de profundis, deve ser o nosso vislumbre. Seguir em frente.
On a questionnaire received from a young pianist who would like to know my position on his choice of repertoire and personal affinity with certain composers over others. (II)