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Livro do Doutor Paul Farez editado em 1928

Preventiva, eis o que se espera da medicina futura;
que se torne sem demora a medicina atual.
É na prática regular, assídua,
que reside verdadeiramente a
arte de bem administrar sua saúde.
Docteur Paul Farez (1898-1940)
(“L’Art de bien gérer sa santé”, 1928)

Da seletiva biblioteca de nosso saudoso Pai, José da Silva Martins, escritor nas últimas décadas da sua longa existência (1898-2000), herdei  parte da extensa coleção. Meses atrás folheei “L’Art de bien gérer sa santé” (L’Expansion Scientifique Française, Paris, 1928) do Docteur Paul Farez (1868-1940), médico francês autor de inúmeras obras a abordar moléstias, causas e como enfrentá-las visando a uma cura possível.

Estou a me lembrar de um outro livro, este de Paul Carton (1875-1947), cujo destino ignoro. Dele o meu Pai mencionava o método necessário para a conservação de uma boa saúde e várias vezes ouvi-o citar um dos axiomas do autor, que dizia que aos trinta anos o homem deveria ser médico e padre no que concerne à saúde, física e mental.

Após folhear o livro do médico psicopatologista Dr. Farez, veio-me o interesse de paulatinamente percorrer as suas páginas e refletir sobre a acuidade, precisão e didatismo do médico-escritor, que percorre um número expressivo de doenças com naturalidade, sem a volúpia monetária tão presente na medicina particular especializada nos dias atuais, apenas com a vontade de transmitir conceitos que podem ajudar na prevenção das moléstias. Há constantes referências às providências primeiras, mormente se regressarmos a 1928! Essa naturalidade ao expor seus conceitos e aconselhamento forçosamente fez-me pensar no modus operandi de um médico respeitado entre seus pares e que nesse livro se preocupa em diagnosticar os males e suas consequências, o que o torna enciclopédico, àquela altura distante de um século das conquistas da medicina hodierna e  tendo a prevenção como primeira barreira frente às doenças.

Os seis capítulos, após a esclarecedora introdução, “A saúde por meio da medicina preventiva”, abordam as moléstias físicas e psíquicas: As doenças, As pequenas misérias, As atitudes mentais, As emoções e as tendências, O comer, O beber. Subdivididos em vários subcapítulos, instruem o leitor, alertando-o insistentemente para que seja vigilante e aos primeiros sinais procurar inicialmente um médico de família, aliás bem mais comum em épocas passadas. Recordo-me do nosso clínico geral, Dr. Semi Sauda, que nos acompanhou com diagnósticos precisos nas primeiras duas décadas. Os capítulos do livro visam prioritariamente a esclarecer princípios elementares para a manutenção de uma boa saúde. Considera que a indiferença, a despreocupação e a inércia tantas vezes impedem o cidadão portador de um mal qualquer de procurar um médico. Frase do Dr. Paul Farez soa bem atual: “Tenho medo, diz-se correntemente, de que descubram alguma coisa, eu não quero saber”, peristilo da possível tragédia.

Fiquei a pensar na nossa realidade, comparada aos ensinamentos do Dr. Farez publicados em 1928. Em todos os capítulos o médico tece explicações claras sobre os males que afetam o humano. Enfatiza com frequência absoluta a importância da prevenção, máxime daqueles que vivem distantes das cidades ou no campo. Àquela altura as dificuldades de acesso aos centros maiores desencorajavam o cidadão a buscar tratamento. No livro em pauta, para os males menores indica tratamentos básicos. Comenta: “Sim, diante de algumas condições mórbidas, nós estamos, hélas!, quase desarmados, se não totalmente. Contrariamente, a maioria dos males são curáveis desde que diagnosticados a tempo; quase todos são evitáveis. O prático de hoje tende a ser um médico para aqueles com boa saúde. Ele exerce em seu entorno uma influência moral, esclarecendo os seus semelhantes, difundindo a higiene, profilaxia e a conservação da saúde, assim como a se distanciar das doenças. Nesses preceitos reside o verdadeiro triunfo da medicina! O médico o fará compreender que a saúde é o primeiro entre todos os bens, sem o qual todos os outros são desprovidos de charme, e também que a saúde não é um direito, mas uma recompensa: há que  merecê-la”. Em França, nos dias atuais o clínico geral é denominado médecin généraliste.

Entre tantos males que grassavam há um século atrás e que a ciência, através de pesquisas, conseguiu debelar há tempo, graças aos antibióticos, vacinas tantas, à parafernália de medicamentos, aos precisos exames laboratoriais e à evolução extraordinária da maquinaria cirúrgica, que resultam em bem maiores possibilidades para a cura, com acuidade o Docteur Paul Farez se detém nas moléstias mais comuns àquela altura, a enfatizar sempre e insistentemente a prevenção.

Merecem especial atenção aos distúrbios físicos que assolavam a França. Hemorragias cerebrais, demência, arteriosclerose, hipertensão, tuberculose… Detém-se nas práticas saudáveis, na escolha dos alimentos, na bebida moderada, na insônia, para a qual reserva subcapítulos preciosos. Todos esses temas são tratados com uma dose de afeto, poder-se-ia acrescentar, resultado de sólida cultura humanística do autor.

Determinados órgãos são pormenorizados, o fígado, o esôfago, o que faz supor a quantidade de pacientes tratados. Quanto ao primeiro, preocupa-se com a insuficiência hepática, que “evolui discreta, sorrateira, silenciosa. No início ela passa desapercebida; eis um doente que se ignora. Quando ela se manifesta, há muito tempo está instalada”. Sobre as crianças de pais com insuficiência hepática, tece interessante consideração: “Vossas crianças! Herdarão seus bens? Não é certeza. E vossos males? Não duvide, pois são herdeiros desde a infância”.  No subcapítulo sobre alimentos e bebidas, ao abordar o vinho comenta: “Na França, país dos vinhedos, o alcoolismo, hélas, não cessa de crescer. Mas o vinho não é o responsável, tenha a certeza; todo o mal vem daquilo que bebemos, melhor dizendo, dos aperitivos”. Quanto ao esôfago, preocupa-se, e muito, com problemas advindos nas refeições, em especial com espinhas de peixes ou ossos de pássaros que se instalam e que podem levar à morte, máxime dos habitantes de lugares mais ermos.

O Dr. Paul Farez dedica um capítulo sobre as emoções e os sentimentos e pormenoriza o benefício das lágrimas, os cuidados que se deve ter com a higiene mental, os afetos na terceira idade…

Contudo, um subcapítulo tem especial interesse: “O câncer tem cura?” Àquela época, morriam do mal 40.000 anualmente, só em França. Enfatiza, “… confessemos com humildade: o câncer continua a ser o grande enigma médico; nada sabemos nem da sua origem, tampouco da sua natureza – portanto, seu tratamento não existe”. À medida que o tema é desenvolvido, o Dr. Farez indica que processos como cirurgia tão logo o mal detectado, eletroterapia, radioterapia poderiam ter tênues resultados. A biopsia já existia e o autor a elogia bem, mormente como alerta. Estou a me lembrar de que em 1915, treze anos antes da edição do livro em pauta, o grande compositor Claude Debussy (1862-1918), após dois anos já com sintomas, foi operado de um câncer retal, vindo a falecer em Paris em decorrência da doença três anos após. Curiosamente, o Dr. Farez questiona: “Qual seria o agente causal do câncer? Um micróbio, um parasita, um fermento? Irritações externas, perturbações das secreções internas, perversão do crescimento celular, diátese especial, artritismo, hereditariedade? Todas as hipóteses foram invocadas; nenhuma delas apresenta a menor prova”. Um século após, apesar dos avanços da medicina nesse mister a buscar a cura do Câncer, a humanidade aguarda a tão esperada erradicação desse mal.

Foi-me de real interesse a leitura de “L’Art de bien gérer sa santé”. O espaço que reservo aos blogs semanais impossibilitam tratar de todos os palpitantes e tão bem esclarecidos temas expostos pelo Dr. Paul Farez. Contudo, para finalizar, mencionarei uma frase do autor constante do subcapítulo do quarto capítulo: “Por que e como as pessoas se tornam dependentes de drogas?”. A menção, publicada em 1928, é atualíssima e poderia ter sido escrita neste sábado, 29 de Junho de 2024: “Dificilmente passa um dia sem que a imprensa noticie a prisão ou a condenação de algum traficante, detentor ou consumidor de morfina ou cocaína. Isso prova que nossa polícia está vigilante, mas também que essas drogas continuam a causar estragos”.

I enjoyed reading “L’Art de bien gérer sa santé”, by the illustrious Dr. Paul Farez, a psychopathologist and author of several books on medicine. Written in 1928, it belonged to my late father’s library.

 

 

Uma solicitação de difícil e controversa resposta

Se queres ser imparcial, não existas;
se queres ser objetivo, existe mesmo;
descobrirás talvez que a diferença é nenhuma.
Agostinho da Silva
(“Espólio”)

Recebi mensagem de um jovem e atento leitor questionando o meu posicionamento sobre a música contemporânea, entendendo que, sempre que a menciono, mantenho reservas. A pergunta me levou a pensar como responder ao promissor e curioso leitor.

Inicialmente, destaco que nós estamos a considerar um período a partir da segunda metade do século XX e a abranger as decorrências da música que é entendida como clássica, erudita ou de concerto.

Atualmente não podemos pensar na palavra contemporânea como a representar um caminho apenas. O termo é amplo, generoso, a abrigar uma série de variantes em cada área do conhecimento. A riqueza motivada pela abrangência das tendências, por vezes diametralmente opostas, favorece a criação de obras maiúsculas independentemente da orientação do compositor, mas abriga quantidade expressiva de obras descartáveis após a primeira e única apresentação.

Tenho um certo crédito nessa avaliação da contemporaneidade musical. No meu repertório, interpretei desde obras do século XVII às criações bem recentes, estas a seguirem técnicas as mais variadas. Menciono o século XVII, pois apresentei desde Jacques Champion de Chambonnières (ca.1602-1672), continuando com Johann Kuhnau (1660-1722), Jean-Philippe Rameau (1683-1764), J.S.Bach (1685-1750) e Carlos Seixas (1704-1742), assim como vários outros cravistas franceses, percorrendo excelsas criações dos séculos posteriores até as de inúmeros mestres contemporâneos de vários países.

Se, nos séculos anteriores, as formas musicais sofriam basicamente alterações paulatinas sem a surpresa da abrupta ruptura, assiste-se na atualidade à proliferação de tendências, quase sempre com a certeza da breve permanência de tantas delas. Mencionei em blog recente o ilustre compositor francês Serge Nigg (1924-2008), que dizia sentir frio na espinha ao ler a programação de Festivais de Música Contemporânea e a quantidade de compositores participantes. Incontável o número dos que se consideram inovadores! Em uma das “revoluções” escriturais nas primeiras décadas do século XX, Manuel de Falla (1876-1946), possivelmente o nome maior da composição em Espanha, já se pronunciava em 1916: “Não me cansarei de repetir que os procedimentos harmônicos, por si só, não constituem de maneira alguma o distintivo característico da nova música; o espírito novo reside, mais do que em nenhuma outra coisa, nos três elementos fundamentais da música: o ritmo, a modalidade e as formas melódicas, fontes a serviço da evocação” (Escritos sobre Música y Músicos”, Madrid, Espasa-Calpe, 1988). A arguta observação do compositor atinha-se às inusitadas buscas sonoras de Claude Debussy (1862-1918) e ao impacto criativo de Igor Stravinsky (1882-1971). No alvorecer do século anterior, desenvolve-se a música atonal através da segunda Escola de Viena, que resultará em novos approaches composicionais, o dodecafonismo e o serialismo. Seria, contudo, a partir da segunda metade do século em questão que um leque de opções surgiria, tendo como berço aquelas conquistas das décadas anteriores.

Não estaria esse amplo leque, com uma quantidade enorme de varetas, a impossibilitar a avaliação do estágio atual da música? Impasse? Talvez. Estou convencido de que, enquanto não houver linhas delineadas que excluam vãos achismos, para o leigo que frequenta as salas de concerto quando da apresentação da música contemporânea, ficaria a dúvida quanto ao mérito das obras.

Para o intérprete atento aos repertórios não é difícil diferenciar o joio do trigo. Obras relevantes tendem a se perpetuar, outras tantas destinam-se a apenas uma apresentação, se tanto, e perdem-se no esquecimento. Em 1985 criei um projeto de Estudos para Piano, com a finalidade de apreender, no espaço de 30 anos (1985-2015), a criação para piano de um dos gêneros mais frequentados ao longo de dois séculos, o Estudo. Recebi nesse vasto espaço cerca de 85 Estudos vindos de vários países, compostos por mestres de inequívoco valor e apresentei-os paulatinamente em público. Insiro neste post quatro Estudos para piano de mestres da composição, exemplos de tendências da contemporaneidade muito bem alicerçadas.

O compositor Jorge Peixinho (1940-1995) escreveu sobre o seu Estudo V Die-Reihe Courante: “Como qualquer Estudo que se preze, e tomando como referência histórica os exemplos magistrais de Chopin, Liszt ou Debussy, uma peça com este título deve conter dois vetores fundamentais, a saber: ser um ‘estudo’ simultaneamente de execução para o instrumento respectivo (neste e naqueles casos, o piano) e para o compositor igualmente, como laboratório de novas experiências e dilatação dos seus limites técnico-expressivos”.

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, Etude V Dei-Reihe Courante, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Uc1PTtYbnoA

O compositor belga Daniel Gistelinck (1948-), com Résonances, apresenta um Estudo de sonoridades. Gistelinck nos propõe inúmeras possibilidades de timbres, em que basicamente cada nota recebe um peso especial, sem contar as preciosidades voltadas à articulação, pedalização e dinâmica, esta última nos seus limites extremos.

Clique para ouvir, de Daniel Gistelink, Resonances, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=4XflfeoeAl8

Ricardo Tacuchian (1939-), nascido no Rio de Janeiro, compôs um Estudo pleno de variantes, fazendo a leitura da principal avenida da tumultuada São Paulo.

Clique para ouvir, de Ricardo Tacuchian, Avenida Paulista, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=a4rt8r-QsDg&t=4s

O compositor francês François Servenière (1961-) compôs 7 Études Cosmiques + Automne Cosmique, a partir da Série Cósmica, pinturas do notável pintor e saudoso amigo Luca Vitali (1940-2013). Na série, François Servenière apresenta inúmeras novas leituras da técnica tradicional, a não negligenciar, inclusive, atributos do jazz.

Clique para ouvir, de François Servenière, Cometa, Étude Cosmique nº 3

https://www.youtube.com/watch?v=shJQlwWK1tM&list=PL1j-Jq5yk8ixxWoJcV7YYeH91BEaqTDsL&index=5

As minhas últimas escutas de parte substancial do que se compõe na atualidade me impossibilita saber o caminho da música atual, tantas são as vertentes. Serge Nigg, que introduziu o dodecafonismo na França, décadas após esse fato histórico disse que  praticamente já não era mais apresentado a músicos intérpretes, mas a compositores, tal a sua profusão. Certamente, daqueles, alguns teriam real valor.

Sigamos o caminhar da contemporaneidade. Muitas surpresas estão à espreita.

This post is an answer to a reader who asked me if I have any reservations about contemporary music.

 

Leitor atento à procura de esclarecimento a respeito


Não te doas do meu silêncio:
Estou cansado de todas as palavras.
Não sabes que te amo?
Pousa a mão na minha testa:
Captarás numa palpitação inefável
O sentido da única palavra essencial

— Amor.
Manuel Bandeira (1886-1968)

Entre as muitas mensagens recebidas sobre o blog anterior, todas muito bem-vindas, a de Marcelo, amigo de longa data, chamou minha atenção. Solicitava que me estendesse sobre a associação das palavras música e inefável, objeto da epígrafe do blog anterior, de autoria do filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985).

Da vasta bibliografia do ilustre professor francês, máxime sobre música e que me proporcionou escrever artigos a respeito, “La Musique et l’Ineffable” foi um dos livros que mais me causou impressão (Paris, Du Seuil, 1983). Seus debruçamentos sobre os compositores Claude Debussy, Gabriel Fauré,  Maurice Ravel e os espanhóis são referências devido à análise de suas obras, distanciando-se daquelas mormente difundidas a partir da segunda metade do século XX, dissecações alicerçadas em métodos que não captam a essência da música nos aspectos voltados às origens da criação de cada autor e dos seus porquês sob as égides psicológica, filosófica, afetiva, dramática, trágica, descontraída. São tantas as possibilidades influentes na vida de cada compositor que a história elegeu e daqueles ainda a serem redescobertos! Independentemente do estudo teórico profundo para a compreensão de uma obra, o olhar de Jankélévich sobre o maravilhamento de uma composição que permaneceu é essencial para intérpretes, compositores, estudiosos e os ouvintes que encerram o círculo, descortinando novos horizontes de percepção.

O célebre Dicionário Moraes, em uma de suas edições (1891), expõe o significado etimológico da palavra inefável: “indizível, inexplicável com palavras”. Ao abordar o tema, associando compartimentos da Música ao Inefável, Jankélevich nos convida a uma leitura de como entender a sua inefabilidade, dimensionando a obra e a escuta. Afirmaria: “O que é a música? Pergunta Gabriel Fauré à procura do ‘ponto intraduzível’ da real quimera que nos eleva acima daquilo que é…”. Creio importante citar uma conceituação de Jankélévitch que preenche conceitos sobre o inefável: “Há na música uma dupla complicação, geradora de problemas metafísicos e morais, e bem feitos para entreter a nossa perplexidade. Por um lado, a música é por sua vez expressiva e inexpressiva, séria e frívola, profunda e superficial; ela tem e não tem sentido. É a música um divertimento sem objetivo? Ou bem ela é uma linguagem cifrada e como um hieróglifo do mistério? Ou talvez as duas? Mas esse equívoco essencial tem também um aspecto moral: há um contraste confuso, uma irônica e escandalosa desproporção entre o poder encantatório da música e a inevidência fundamental do belo musical”.

Ficaria a pergunta: aplica-se a palavra inefável a qualquer gênero musical? A magia do termo se coaduna majoritariamente com a música clássica, de concerto ou erudita, a depender da sua qualidade essencial. Pode também ser aplicado a determinadas canções de índole popular de nossa terra e de alhures, distribuídas em vários gêneros. Poder-se-ia considerar determinadas melodias que adquiriram, pelo seu poder penetrante, a mente e o coração do ser humano em termos mundiais.

Compreende-se a afinidade de Jankélévich, máxime pelas obras de Fauré, Debussy e Ravel, baseada preferencialmente na presença da qualidade etérea em tantas criações dos geniais compositores. Tendo interpretado a integral para piano de Debussy e a maioria das criações de Fauré e Ravel para piano ao longo dos anos, compartilho integralmente o posicionamento do ilustre musicólogo. Jankélévitch afirma que “há o benefício da catarse musical: passar do estado do homem contestado ao do homem liberto, do estado de guerra ao de paz e da preocupação à inocência – não seria esse um efeito de sabedoria? E não somente a música torna o homem, por alguns instantes, amigo de si mesmo, mas o reconcilia com toda a natureza”.

O termo inefável tem a aura do sagrado. É a antítese de tudo que possa ter conexão com a vulgaridade, banalidade, nível inferior da arte ou então, num aspecto diametralmente oposto, com determinadas correntes da música contemporânea avessas a quaisquer manifestações da emoção. Pode-se associá-lo à obra que transcende, fato seletivo que elimina a criação apenas boa, mas sem a perpetuação da inefabilidade.

Entendo a aplicação do termo inefável na obra coral que segue:

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso (1962-), Ó Meu Menino (Magnificat em talha dourada):

https://www.youtube.com/watch?v=Mdud4L0yR4U&t=79s

Não haveria a mesma sensação ao se ouvir, de François Servenière (1961-), Promenade sur la Voie Lactée? Clique para ouvi-la, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=LSfmHoqmjoo&t=3s

Nem sempre, no campo da música clássica, uma obra hiper conhecida pelos admiradores do gênero tem a chancela da inefabilidade. O fato de Jankélevitch tanto insistir no termo, em parte considerável da obra de Gabriel Fauré, tem fundamento através da expressa transcendência desprovida da busca da aceitação pública, processo este que pode gerar o aplauso, mas não a aura. É bem provável que Fauré não penetre mentes e dedos da maioria dos pianistas, justamente por não “levantar” plateias, mas aqueles cultores do belo saberão apreender essencialidades. Gabriel Fauré, um dos eleitos de Jankélévitch, tem inúmeras criações que possuem a aura própria do termo inefável, caso específico do Nocturne nº 6.

Clique para ouvir, de Gabriel Fauré, Nocturne nº6, na interpretação de JEM:

https://www.youtube.com/watch?v=JIWPoPmGrvw

Vladimir Jankélévitch observa com acuidade: “A arte dos sons é, sem metáforas, a intimidade da interioridade e do foro íntimo das outras artes: para admitir que a música traduz a alma de uma situação e torna esta alma perceptível ao ouvido da nossa alma não é necessário dar-lhe um alcance transfísico… Na realidade, a sonoridade física é algo mental, fenômeno imediatamente espiritual”.

Com insistência tenho salientado, através dos blogs, que o legado musical dos grandes mestres tem sido, ao longo dos séculos, um bálsamo neste mundo tão conturbado. Preservemos esse legado, pois a ele pertencem, felizmente, uma infinidade de obras inefáveis.

A reader’s request led me to this post about the term “ineffable”. I refer to a fundamental book by the French philosopher and musicologist Vladimir Jankélévitch, “La Musique et l’Ineffable”.