Uma solicitação de difícil e controversa resposta

Se queres ser imparcial, não existas;
se queres ser objetivo, existe mesmo;
descobrirás talvez que a diferença é nenhuma.
Agostinho da Silva
(“Espólio”)

Recebi mensagem de um jovem e atento leitor questionando o meu posicionamento sobre a música contemporânea, entendendo que, sempre que a menciono, mantenho reservas. A pergunta me levou a pensar como responder ao promissor e curioso leitor.

Inicialmente, destaco que nós estamos a considerar um período a partir da segunda metade do século XX e a abranger as decorrências da música que é entendida como clássica, erudita ou de concerto.

Atualmente não podemos pensar na palavra contemporânea como a representar um caminho apenas. O termo é amplo, generoso, a abrigar uma série de variantes em cada área do conhecimento. A riqueza motivada pela abrangência das tendências, por vezes diametralmente opostas, favorece a criação de obras maiúsculas independentemente da orientação do compositor, mas abriga quantidade expressiva de obras descartáveis após a primeira e única apresentação.

Tenho um certo crédito nessa avaliação da contemporaneidade musical. No meu repertório, interpretei desde obras do século XVII às criações bem recentes, estas a seguirem técnicas as mais variadas. Menciono o século XVII, pois apresentei desde Jacques Champion de Chambonnières (ca.1602-1672), continuando com Johann Kuhnau (1660-1722), Jean-Philippe Rameau (1683-1764), J.S.Bach (1685-1750) e Carlos Seixas (1704-1742), assim como vários outros cravistas franceses, percorrendo excelsas criações dos séculos posteriores até as de inúmeros mestres contemporâneos de vários países.

Se, nos séculos anteriores, as formas musicais sofriam basicamente alterações paulatinas sem a surpresa da abrupta ruptura, assiste-se na atualidade à proliferação de tendências, quase sempre com a certeza da breve permanência de tantas delas. Mencionei em blog recente o ilustre compositor francês Serge Nigg (1924-2008), que dizia sentir frio na espinha ao ler a programação de Festivais de Música Contemporânea e a quantidade de compositores participantes. Incontável o número dos que se consideram inovadores! Em uma das “revoluções” escriturais nas primeiras décadas do século XX, Manuel de Falla (1876-1946), possivelmente o nome maior da composição em Espanha, já se pronunciava em 1916: “Não me cansarei de repetir que os procedimentos harmônicos, por si só, não constituem de maneira alguma o distintivo característico da nova música; o espírito novo reside, mais do que em nenhuma outra coisa, nos três elementos fundamentais da música: o ritmo, a modalidade e as formas melódicas, fontes a serviço da evocação” (Escritos sobre Música y Músicos”, Madrid, Espasa-Calpe, 1988). A arguta observação do compositor atinha-se às inusitadas buscas sonoras de Claude Debussy (1862-1918) e ao impacto criativo de Igor Stravinsky (1882-1971). No alvorecer do século anterior, desenvolve-se a música atonal através da segunda Escola de Viena, que resultará em novos approaches composicionais, o dodecafonismo e o serialismo. Seria, contudo, a partir da segunda metade do século em questão que um leque de opções surgiria, tendo como berço aquelas conquistas das décadas anteriores.

Não estaria esse amplo leque, com uma quantidade enorme de varetas, a impossibilitar a avaliação do estágio atual da música? Impasse? Talvez. Estou convencido de que, enquanto não houver linhas delineadas que excluam vãos achismos, para o leigo que frequenta as salas de concerto quando da apresentação da música contemporânea, ficaria a dúvida quanto ao mérito das obras.

Para o intérprete atento aos repertórios não é difícil diferenciar o joio do trigo. Obras relevantes tendem a se perpetuar, outras tantas destinam-se a apenas uma apresentação, se tanto, e perdem-se no esquecimento. Em 1985 criei um projeto de Estudos para Piano, com a finalidade de apreender, no espaço de 30 anos (1985-2015), a criação para piano de um dos gêneros mais frequentados ao longo de dois séculos, o Estudo. Recebi nesse vasto espaço cerca de 85 Estudos vindos de vários países, compostos por mestres de inequívoco valor e apresentei-os paulatinamente em público. Insiro neste post quatro Estudos para piano de mestres da composição, exemplos de tendências da contemporaneidade muito bem alicerçadas.

O compositor Jorge Peixinho (1940-1995) escreveu sobre o seu Estudo V Die-Reihe Courante: “Como qualquer Estudo que se preze, e tomando como referência histórica os exemplos magistrais de Chopin, Liszt ou Debussy, uma peça com este título deve conter dois vetores fundamentais, a saber: ser um ‘estudo’ simultaneamente de execução para o instrumento respectivo (neste e naqueles casos, o piano) e para o compositor igualmente, como laboratório de novas experiências e dilatação dos seus limites técnico-expressivos”.

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, Etude V Dei-Reihe Courante, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Uc1PTtYbnoA

O compositor belga Daniel Gistelinck (1948-), com Résonances, apresenta um Estudo de sonoridades. Gistelinck nos propõe inúmeras possibilidades de timbres, em que basicamente cada nota recebe um peso especial, sem contar as preciosidades voltadas à articulação, pedalização e dinâmica, esta última nos seus limites extremos.

Clique para ouvir, de Daniel Gistelink, Resonances, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=4XflfeoeAl8

Ricardo Tacuchian (1939-), nascido no Rio de Janeiro, compôs um Estudo pleno de variantes, fazendo a leitura da principal avenida da tumultuada São Paulo.

Clique para ouvir, de Ricardo Tacuchian, Avenida Paulista, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=a4rt8r-QsDg&t=4s

O compositor francês François Servenière (1961-) compôs 7 Études Cosmiques + Automne Cosmique, a partir da Série Cósmica, pinturas do notável pintor e saudoso amigo Luca Vitali (1940-2013). Na série, François Servenière apresenta inúmeras novas leituras da técnica tradicional, a não negligenciar, inclusive, atributos do jazz.

Clique para ouvir, de François Servenière, Cometa, Étude Cosmique nº 3

https://www.youtube.com/watch?v=shJQlwWK1tM&list=PL1j-Jq5yk8ixxWoJcV7YYeH91BEaqTDsL&index=5

As minhas últimas escutas de parte substancial do que se compõe na atualidade me impossibilita saber o caminho da música atual, tantas são as vertentes. Serge Nigg, que introduziu o dodecafonismo na França, décadas após esse fato histórico disse que  praticamente já não era mais apresentado a músicos intérpretes, mas a compositores, tal a sua profusão. Certamente, daqueles, alguns teriam real valor.

Sigamos o caminhar da contemporaneidade. Muitas surpresas estão à espreita.

This post is an answer to a reader who asked me if I have any reservations about contemporary music.