Navegando Posts publicados em setembro, 2024

A dimensão de Carlos Seixas

Não vale mais a identificação do “Scarlatti português”
atribuído a Carlos Seixas ou de outras colagens
pretensamente niveladoras de mérito ou de valor estético por aproximação.
Como todos os povos, Portugal tem os seus nomes próprios,
os cérebros e os artistas que nasceram na identidade das suas fronteiras.
José Maria Pedrosa Cardoso (1942-2021)
(“Carlos Seixas de Coimbra” – Ano Seixas Exposição Documental IUC-2004)

Como nascem as afinidades? Na minha adolescência recebi da notável pianista polonesa Felicja Blumental (1908-1991), que residiu durante algum tempo no Brasil, um LP com sonatas ibéricas, sendo que algumas de Carlos Seixas. Era, ao que se sabe, a primeira gravação ao piano das Sonatas do compositor conimbricense escritas para cravo. Sabedora da minha admiração após a audição do LP, ofereceu-me os dois volumes dos “Cravistas Portugueses” editados pela Mainz: B. Schott’s Söhne, 1935 e 1950, (vide blog: “Felicja Blumental (1908-1991) – A Permanência através de Horizontes desbravados”, 13/12/2008). No primeiro recital que apresentei em Portugal (14/07/1959), a convite do notável compositor Fernando-Lopes-Graça (1906-1994), iniciei a récita com duas Sonatas de Carlos Seixas, sendo que em 2004 gravaria em Mullem, na Bélgica, para o selo De Rode Pomp, dois CDs contendo 23 Sonatas do genial compositor.

O repertório original para cravo foi gradualmente sendo interpretado ao piano, como salientei ao longo dos anos neste espaço. Do pianoforte, cuja criação se deve a Bartolomeo Cristofori (1655-1731), ao piano moderno houve um longo caminho, beneficiado pela indústria do aço no século XIX, a propiciar uma estrutura em metal que permitia suportar a grande tensão das cordas doravante maiores, pois cruzadas e sensivelmente mais resistentes, sendo que a tábua harmônica dos pianos precedentes sofreria fortalecimento.

Duas posições fulcrais têm interesse, apontando para as composições escritas originalmente para cravo e, em sequência histórica, executadas ao piano. Macario Santiago Kastner, cravista e musicólogo mencionado no blog anterior, máxime especializado na música ibérica para cravo, escreve, subjugado pela interpretação das Sonatas de cravistas portugueses ao piano: “Eu fiquei encantado ao encontrar em Felicja Blumental a maravilhosa intérprete dos cravistas portugueses, e que interpreta essa música com o verdadeiro sentido estilístico, tocando com alma e compreensão do som e da proporção”. Sob outra égide, o ilustre musicólogo francês François Lesure (1923-2001) escreveria no encarte da minha gravação da integral de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) ao piano (De Rode Pomp, Bélgica, duplo CD): “O tempo do Barroco integrista passou, o uso dos instrumentos de época deixou de ser um dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos. Um dos maiores biógrafos de Rameau – Cuthbert Girdlestone – defendeu com força a ideia de que a música de Rameau ‘ganha ao ser transferida para o piano’ e que sua escrita encontra neste instrumento, de uma melhor maneira, o seu dinamismo”. Endosso essa posição no que concerne igualmente às criações de Domenico Scarlatti e Carlos Seixas.

O saudoso amigo e ilustre musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso escreveria o encarte do CD a conter Sonatas de Carlos Seixas extraídas do álbum mencionado (Casa de Portugal-Banif). Apreendeu com maestria essencialidades do compositor nascido em Coimbra. O texto completo está inserido em meu blog (Carlos Seixas – 1704-1742 -, de 22/10/2010).

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em dó menor (16), na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=hzCdNgCwHUg

“O nome de Carlos Seixas é um dos mais registrados na discografia portuguesa e corresponde a um compositor que viveu apenas 38 anos na primeira metade do século XVIII. No seu tempo viviam nomes cimeiros do barroco musical, tais como A.Vivaldi (1678-1741), J-P, Rameau (1683-1764), J.S.Bach (1685-1750) e G.F.Haëndel (1685-1759). Estes compositores não se encontraram pessoalmente – à exceção de Scarlatti e Seixas -, mas suas obras não passaram despercebidas e serviram mesmo de modelo mútuo. Provavelmente, sem conhecer aqueles nomes e provavelmente número reduzido de suas obras, Carlos Seixas nasceu e estudou em Coimbra. À sombra da Sé e da Universidade, teve apenas por mestres seu pai, o organista titular proveniente de Tomar, e Fr. Nuno da Conceição, um trinitário lisboeta, lente de música e Mestre de Capela da Universidade. Herdando o cargo do pai aos 14 anos, emigrou pouco depois para Lisboa, aos 16 anos, tornando-se organista da Igreja Patriarcal. Sua troca do Mondego pelo Tejo só se pode explicar pela sua ânsia de horizonte: a música, como outras artes, estava a fazer de Lisboa uma grande capital europeia. Ali haviam chegado já vários músicos italianos, entre eles Domenico Scarlatti, o famoso mestre da capela papal, que trocou Roma por Lisboa, certamente à custa de condições salariais de exceção, graças ao poder mecenário de D.João V e, indiretamente, ao ouro do Brasil. O jovem Seixas chegou, convenceu os melhores, assimilou as correntes estilísticas da Europa e venceu como executante e compositor. Barbosa Machado, que o conheceu de muito perto, fala de uma produção excepcional, que se perdeu na maioria, certamente devorada pelo terremoto de 1755. Mesmo assim, Carlos Seixas é um dos maiores vultos do período barroco português e um dos mais notáveis na história da música em Portugal. Para além de três significativas composições para orquestra e algumas excelentes peças corais, conhecem-se dele mais de uma centena de sonatas para instrumento de tecla. Algumas dessas sonatas, também chamadas tocatas, parecem adequadas ao órgão; outras, todavia, têm claramente carácter de música para outros teclados. Atribui-se habitualmente esta produção de Seixas ao cravo, instrumento que o jovem compositor deve ter praticado e ensinado na sociedade aristocrática de Lisboa; contudo, o carácter expressivo de algumas daquelas sonatas parece sugerir o clavicórdio ou até o fortepiano, como defende José López-Calo. De resto, as sonatas de Carlos Seixas, longe de dependerem, ou mesmo imitarem, a vasta e preciosa produção de Domenico Scarlatti, apresentam geralmente um estilo personalizado que, acusando de certo modo a tradição organística ibérica, possui características inovadoras, sobressaindo não apenas o pendor para o estilo galante de muitas delas, mas sobretudo a sua dimensão de sonata em vários andamentos, com a inclusão frequente do minueto”.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em sol menor (50), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=uIUhQc_giNs

Santiago Kastner insere em seu livro “Carlos Seixas” (1947) a posição de José Mazza (1771-1797), italiano ou descendente, que, em seu “Dicionário Biográfico de Músicos Portugueses”, menciona  informações que Mazza recebeu de coetâneos de Seixas, seja mesmo pela oitiva. A edição do Dicionário de 1944-1945 tem notas e prefácio do P. José Augusto Alegria (1917-2004). Kastner previne o leitor: “Dada a ascendência italiana de Mazza, não é crível as suas notícias pecarem por xenofobia ou por patriótica louvaminhice portuguesa, que em face dos estrangeiros sempre deixa transluzir essa doença dos complexos de inferioridade”. Tem interesse o que Mazza escreve sobre aquilo que teve conhecimento a respeito de Scarlatti ao ouvir Seixas, dezenove anos mais novo: athé ao presente não teve Portugal outro organista tão famoso, quis o Sereníssimo senhor Infante D.António que o grande Escarlate, pois se achava em Lisboa no mesmo tempo lhe desse alguma Lição regulandosse por aquela idêa errada de que os Portugueses por mais que fação nunca chegão a fazer o que fazem os Estrangeiros, e mandou ao dito; este apenas o vio por as mãos no Cravo conhecendo o Gigante pelo dedo lhe disse = Vossa mercê hé que me pode dar lições, e encontrandosse com aquele Senhor lhe disse = V.ª Alteza mandou-me examinar, pois saiba que aquele sujeito hé dos maiores Professores que eu tenho ouvido. Kastner observa com acuidade que a diferença “entre Scarlatti e Seixas não era tão grande como geralmente se supõe”.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em lá menor (71), na interpretação de J.EM. no Convento N.ª Senhora dos Remédios em Évora, Portugal. Gravação ao vivo:

https://www.youtube.com/watch?v=BP3Aic2bvac

Tendo percorrido ao piano parte substancial do repertório barroco de J.S.Bach (indispensável, na verdade), G.F.Haendel, Scarlatti, e gravado as integrais de J-P Rameau (1683-1764) e das “Sonatas Bíblicas” de Johann Kuhnau (1660-1722), assim como o álbum duplo com Sonatas de Carlos Seixas, tenho a mais absoluta certeza de que o compositor coimbrão é um dos grandes autores para teclado no período, sendo que o quase absoluto descaso por parte de governantes e o pouco interesse de legião de intérpretes têm razões precisas ou, talvez, “que a própria razão desconhece”.

No próximo blog abordarei algumas diferenças no tratamento técnico-tecladístico e aspectos formais concernentes realizados por Scarlatti e Seixas. Aspectos esses percebíveis no programa que Regina e eu escolhemos, interpretando os dois grandes compositores nesse Quarto Encontro.

Some aspects concerning Carlos Seixas, a major composer of the Portuguese Baroque and author of 105 published sonatas, while hundreds of other sonatas were consumed by the earthquake of 1755.

 

Quarto Encontro privé dedicado aos notáveis compositores

Obra suprema é aquela em que
(a par, é certo, da rígida construção que assinala os mestres)
pensamento original e emoção própria se reúnem e se fundem…
Fernando Pessoa
(“Caracterização Individual dos Heterónimos”)

Neste “Quarto Encontro privé”, Regina e eu homenagearemos dois dos mais expressivos compositores do período barroco que compuseram centenas de peças para cravo. Dividirei em três posts, um primeiro a evidenciar os resultados da presença de Domenico Scarlatti na corte de El-Rei D.João V (1689-1750), um segundo sobre Carlos Seixas e a realidade que se lhe apresentava em Portugal, onde exerceu a atividade musical, nela a se destacar a composição, e um terceiro sobre aspectos voltados à produção para cravo e às diferenças formais e da técnica instrumental nas Sonatas dos dois grandes mestres.

Aproximá-los se faz necessário, mercê de um “quase” esquecimento do compositor nascido em Coimbra em termos mundiais, apesar do trabalho hercúleo de Macario Santiago Kastner (1908-1992) fazendo editar as Sonatas de Carlos Seixas, inicialmente na Alemanha (1935 e 1950) e posteriormente numa ampla publicação de 105 Sonatas pela Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa (1965-1992). A divulgação das obras de Scarlatti se deu, de maneira efetiva, primeiramente através das edições de Alessandro Longo (1864-1945) na Itália e, posteriormente, pela edição e catalogação de Ralph Kirkpatrick (1911-1984), propiciando, por parte de inúmeros intérpretes da península e de tantos outros rincões, a presença constante, em termos mundiais, das Sonatas para cravo do compositor nascido em Nápoles. Considere-se que Liszt (1811-1886) interpretava Sonatas de Scarlatti ao piano. Com o passar do tempo, mormente a partir das fronteiras dos séculos XIX-XX, a produção para cravo dos séculos XVII e XVIII tem sido interpretada por cravistas e pianistas.

Clique para ouvir, de Domenico Scarlatti, Sonata em Dó Maior, Longo 5, na interpretação de Regina Normanha Martins. Gravação ao vivo realizada em Mullem, Bélgica, 2001:

https://youtu.be/XQZ938vUbZk?si=04zf-wBpUkcaVaj7

Em 1714, o Infante D.Antônio, irmão de D.João V, conheceu  em Roma  Domenico Scarlatti, já consagrado na Itália e em diversos centros europeus. Diletante, impressionou-se com as interpretações de Scarlatti ao cravo. Dessa admiração surgiria o convite, formulado pelo El-Rei D.João V, para que Scarlatti viesse ao reino.  O compositor chega a Lisboa aos 29 de Novembro de 1719, permanecendo vários anos como responsável pela música na Capela Real, máxime como preceptor da Infanta Maria Bárbara (1711-1758), filha do casal real, D.João V e a arquiduquesa Maria Ana da Áustria.

Era eu editor responsável da Revista Música da Universidade de São Paulo ao convidar o dileto amigo e ilustre crítico musical e musicólogo português Humberto d’Ávila (1922-2006), que contribuiu com substancioso artigo para a publicação: “Domenico Scarlatti e a Cultura Portuguesa” (vol.3 – nº 2 Novembro 1992). Esclarece: “As relações de amizade, admiração e consideração recíproca entre o napolitano e a sua discípula é um dos episódios humanos e artísticos mais interessantes que se registram e exemplificam quanto uma personalidade espiritualmente influente pode alterar por completo o rumo da vida e da obra dum artista. A princesa de Bragança não era uma figura vulgar, quer moral quer musicalmente. Possuía grande talento artístico e, a julgar pelo virtuosismo da escrita scarlattiana expresso nas tocate, que é o nome equivalente dado às sonatas, terá chegado a igualar o mestre em dedos e estilo. Não fora assim e, a mais dessa referência técnica, não se compreenderia, só pela conservação dum emprego, a dedicação dum músico de tal envergadura até o fim da vida”. Maria Bárbara se casaria com o rei Fernando VI da Espanha, tornando-se Rainha Consorte a partir de 1746. Importante salientar que Scarlatti acompanhou-a e esteve sempre a compor suas centenas de Sonatas para cravo atendendo às solicitações da figura imperial, muitíssimo dotada para o mister de cravista. Humberto d’Ávila observa: “Podemos imaginar que, se se tivesse mantido em Roma, continuaria a ser, predominantemente, um compositor de música religiosa, de cantatas e de partituras cênicas, nas quais não logrou especial êxito. Com o conhecimento de Maria Bárbara, e atendendo à constante  curiosidade dela por variar o repertório e, também, às menores possibilidades operacionais noutros gêneros que as cortes de Lisboa e Madrid lhe proporcionavam, a sua veia voltou-se quase exclusivamente para o teclado: a prova está em que a maior parte do espantoso conjunto de quase 600 sonatas que dele resta se pode situar entre 1719 e 1757, ou seja, desde a chegada a Lisboa até a morte”. Essa dedução é de grande valia e vem demonstrar que, apesar de ter sido um grande tecladista, Scarlatti percebera na Infanta portuguesa e futura Rainha de Espanha as qualidades inalienáveis de uma cravista singular, que unia a compreensão musical a uma rara virtuosidade, resultando na escrita de tantas Sonatas desafiadoras do Mestre napolitano. Esse quesito de Scarlatti voltado à virtuosidade, máxime com o passar da existência, não explicaria essa precisa destinação às mãos da figura real privilegiada nesse mister? Se considerada for a tendência a uma quase “serenidade” escritural de um compositor em idade mais avançada, salvo exceções, observa-se que Scarlatti manteria em suas Sonatas a chama da juventude madura durante toda a vida.

 

Dada a proeminência de Scarlatti no decorrer dos séculos e a tímida divulgação das Sonatas de Carlos Seixas, “consolidou-se” a posição, em termos gerais, de uma diferença qualitativa nas composições dos dois músicos que se conheceram bem em Lisboa, sendo que Carlos Seixas, dezenove anos mais jovem, tornar-se-ia substituto do músico napolitano junto à Capela Real. Creio que são linguagens que, se obedecem a determinadas regras formais do período, têm contudo “impressões digitais” que as distinguem. Santiago Kastner bem observa, após considerar dois discípulos de Scarlatti em períodos diversos, o compositor e organista anglo-irlandês Thomas Roseingrave (1690-1766) e o cravista e organista espanhol Padre Antonio Soler (1729-1783): “Embora Scarlatti fosse personalidade de cunho marcante, não converteu Roseingrave, Seixas e Soler em epígonos ou automáticos imitadores de seu estilo e nada mais abonará tanto em favor do carácter autónomo e da própria imaginação e idiossincrasia tanto de Roseingrave como de Seixas e de Soler do que dizer que nenhum dos três sucumbiu perante o italiano, guardando cada um a sua feição individual. Nenhum deles resulta ser uma sombra de Scarlatti” (“Carlos Seixas”, Coimbra, Coimbra Editora, 1947).

Clique para ouvir, de Domenico Scarlatti, Sonata em Dó Maior, Longo 457, na interpretação de Regina Normanha Martins. Gravação ao vivo realizada em Mullem, Bélgica, 2001:

https://youtu.be/0V7D7wzU5uE?si=e1wGDdfGelKXFNmy

No próximo blog abordarei o compositor Carlos Seixas e a intimidade com o cravo, mercê do exímio intérprete que foi, assim como da qualidade de suas mais de uma centena de Sonatas para o instrumento (vide blog: “Carlos Seixas – Um compositor de exceção”, 22/10/2010).

In the fourth recital privé, Regina and I will present sonatas by two significant Baroque composers who met in Lisbon: Domenico Scarlatti and Carlos Seixas. There will be three posts, the first on Scarlatti, especially when he was in Lisbon, the second on Carlos Seixas and the third demonstrating their artistic individualities.

 

Uma obra exemplar do compositor Eurico Carrapatoso

Na estrada por que vou
Não fujo do meu norte.
Edmundo Bettencourt (1899-1973)

Após a audição, via Youtube, de uma criação do ilustre compositor português Eurico Carrapatoso (1962-), fiquei novamente impactado não apenas pela obra, mas igualmente pela expressiva interpretação do quarteto formado pelos músicos Filipe Pinto-Ribeiro (piano), Esther Hoppe (violino), Pascal Moraguès (clarinete) e Christian Poltèra (violoncelo). Escrevi ao meu dileto amigo Eurico felicitando-o pela composição, mas solicitando mais informações sobre “Pour la fin, pour mon commencement”.

A obra, constituída por cinco segmentos, estreou juntamente com a apresentação do “Quatuor pour la fin du temps”, de Olivier Messiaen (1908-1992), na sala Reina Sofia, em Madrid. A criação de Carrapatoso teve apresentações posteriores na Espanha e Portugal. Dividida em cinco partes, recebeu o prêmio DASH-SHOSTAKOVICH ENSEMBLE em 2021.

Eurico Carrapatoso escreve: “O título desta peça evoca a obra célebre de Olivier Messiaen (Quatuor pour la fin du temps) e uma outra de Guillaume de Machaut (o Rondeau nr.14, Ma fin est mon commencement). A estrutura em espelho desta última obra do trecento francês está patente, logo à partida, na estrutura macroformal da minha peça, um palíndromo dividido em cinco andamentos, com várias correspondências entre si no gesto e na palavra”. O movimento que tive o grato prazer de ouvir, a ratificar a minha admiração pelas criações de Carrapatoso, foi o de número cinco, “Pour la Fin”. Acrescento que, ao interpretar em primeira audição absoluta e gravar duas das importantes criações de Carrapatoso para piano, “Six histoires d’enfants pour amuser un artiste” e “Missa sem palavras – cinco estudos litúrgicos”, acentuou-se o meu apreço pela obra do compositor nascido em Mirandela, Trás-os Montes.

Se influências recebidas há em “Pour la fin, pour mon commencement”, quem não as recebe? Carrapatoso as identifica, atributo dos que não se camuflam, mas alerta que “… também eu faço nesta minha obra uma retrospectiva de gestos representativos da minha produção ao longo destes últimos vinte anos de actividade criativa ininterrupta, desde o elemento façanhudo que campeia nos andamentos pares, até à tendência que se tem afirmado nos últimos tempos para um carácter mais sóbrio e enxuto, como é patente na simplicidade do andamento central, o solo para piano, que evoca Dulcinea del Toboso, “señora de mi alma, día de mi noche, gloria de mis penas, norte de mis caminos”, como se um D. Quixote ali cantasse o eterno feminino, acompanhado por um alaúde imaginário que geme nessa tépida sombra nocturna “ay! luna que reluces, toda la noche me alumbres” em seus acordes antiquíssimos; enfim, passando por essa diagonal que atravessa a minha música desde que achei a minha voz, tão bem significada nos andamentos inicial e final, lentos e introspectivos: um primeiro andamento álgido e espesso, marcado pela cor sombria do chalumeau do clarinete que contamina o timbre do próprio quarteto; e um último andamento solar, que faz cantar o violoncelo, o violino e o clarinete à vez, numa textura cheia de ar e espaço vital; um ameaço de nuvens mais sombrias que o clarinete rememora no epílogo, dissipa-se, por fim, num adeus picardo”. Quanto a esta quinta peça, “Pour la fin”, Carrapatoso se inspira num poema de William Blake (1757-1827), The Ecchoing Green, “que assim canta a nossa passagem transitória pelo mundo”, como afirma Carrapatoso.

The sun does arise
And make happy the skies.
The merry bells ring
To welcome the Spring.
The sky-lark and thrush,
The birds of the bush,
Sing louder around,
To the bells’ cheerful sound.
While our sports shall be seen
On the Ecchoing Green.

Old John, with white hair
Does laugh away care,
Sitting under the oak,
Among the old folk,
They laugh at our play,
And soon they all say.
‘Such, such were the joys.
When we all girls & boys,
In our youth-time were seen,
On the Ecchoing Green.’

Till the little ones weary
No more can be merry
The sun does descend,
And our sports have an end:
Round the laps of their mothers,
Many sisters and brothers,
Like birds in their nest,
Are ready for rest;
And sport no more seen,
On the darkening Green.

O sol nasce,
E alegra os céus.
Os sinos alegres tocam
Para dar as boas-vindas à primavera.
A cotovia e o tordo,
As aves do mato,
Cantam mais alto à volta,
ao som alegre dos sinos.
Enquanto os nossos desportos serão vistos
No verde que ecoa.

O velho João, de cabelo branco
Ri-se dos cuidados,
Sentado debaixo do carvalho,
Entre os velhos,
Eles riem-se da nossa brincadeira,
E logo todos dizem.
“Que alegria, que alegria!
Quando todos nós, raparigas e rapazes,
na nossa juventude, éramos vistos,
No verde que ecoa.

Até que os mais pequenos se cansem
Não podem mais ser alegres
O sol está a pôr-se,
E os nossos desportos têm um fim:
Ao colo das suas mães,
Muitas irmãs e irmãos,
Como pássaros no seu ninho,
estão prontos para descansar;
E não se vê mais desporto,
No verde que escurece.

(Traduzido com a versão gratuita do tradutor – DeepL.com)

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, “Pour la fin, pour mon commencement” nº5:

https://www.youtube.com/watch?v=Lrw3N2m5jLA

Em inúmeros blogs anteriores discorri sobre as várias tendências composicionais, sempre a considerar a importância de se apreender origens. A História evidencia, através dos séculos, a longa evolução da teoria e dos gêneros musicais. Muitas conquistas surgiram a partir desse olhar o passado e, a partir dele, o acréscimo de novos degraus. Sempre mantive distância de teorias que nascem sem quaisquer ligações com o passado e que, glorificadas em guetos, estiolam-se na brevidade devida. Eurico Carrapatoso, mestre de uma escrita sólida, nunca negligenciou a tradição e sua obra, magistralmente bem escrita, obedece àquilo que já rezava Jean-Philippe Rameau (1683-1764), la musique est le langage du coeur. A peça nº 5 é exemplo vivo dessa qualidade inalienável de Carrapatoso. “Pour la fin” em sua lentidão, com o piano como guia principal dos três outros instrumentos, numa reflexiva evolução, finda a peça como iniciou, na solidão em pianissimo.

“Pour la fin, pour le commencement” is a work in five parts by the distinguished Portuguese composer Eurico Carrapatoso. It received the DASH-SHOSTAKOVICH ENSEMBLE award in 2021.  I comment on the final part, “Pour la fin”. I was impressed by the quality of the writing and the exemplary performance by the piano, cello, violin and clarinet.