Uma obra exemplar do compositor Eurico Carrapatoso
Na estrada por que vou
Não fujo do meu norte.
Edmundo Bettencourt (1899-1973)
Após a audição, via Youtube, de uma criação do ilustre compositor português Eurico Carrapatoso (1962-), fiquei novamente impactado não apenas pela obra, mas igualmente pela expressiva interpretação do quarteto formado pelos músicos Filipe Pinto-Ribeiro (piano), Esther Hoppe (violino), Pascal Moraguès (clarinete) e Christian Poltèra (violoncelo). Escrevi ao meu dileto amigo Eurico felicitando-o pela composição, mas solicitando mais informações sobre “Pour la fin, pour mon commencement”.
A obra, constituída por cinco segmentos, estreou juntamente com a apresentação do “Quatuor pour la fin du temps”, de Olivier Messiaen (1908-1992), na sala Reina Sofia, em Madrid. A criação de Carrapatoso teve apresentações posteriores na Espanha e Portugal. Dividida em cinco partes, recebeu o prêmio DASH-SHOSTAKOVICH ENSEMBLE em 2021.
Eurico Carrapatoso escreve: “O título desta peça evoca a obra célebre de Olivier Messiaen (Quatuor pour la fin du temps) e uma outra de Guillaume de Machaut (o Rondeau nr.14, Ma fin est mon commencement). A estrutura em espelho desta última obra do trecento francês está patente, logo à partida, na estrutura macroformal da minha peça, um palíndromo dividido em cinco andamentos, com várias correspondências entre si no gesto e na palavra”. O movimento que tive o grato prazer de ouvir, a ratificar a minha admiração pelas criações de Carrapatoso, foi o de número cinco, “Pour la Fin”. Acrescento que, ao interpretar em primeira audição absoluta e gravar duas das importantes criações de Carrapatoso para piano, “Six histoires d’enfants pour amuser un artiste” e “Missa sem palavras – cinco estudos litúrgicos”, acentuou-se o meu apreço pela obra do compositor nascido em Mirandela, Trás-os Montes.
Se influências recebidas há em “Pour la fin, pour mon commencement”, quem não as recebe? Carrapatoso as identifica, atributo dos que não se camuflam, mas alerta que “… também eu faço nesta minha obra uma retrospectiva de gestos representativos da minha produção ao longo destes últimos vinte anos de actividade criativa ininterrupta, desde o elemento façanhudo que campeia nos andamentos pares, até à tendência que se tem afirmado nos últimos tempos para um carácter mais sóbrio e enxuto, como é patente na simplicidade do andamento central, o solo para piano, que evoca Dulcinea del Toboso, “señora de mi alma, día de mi noche, gloria de mis penas, norte de mis caminos”, como se um D. Quixote ali cantasse o eterno feminino, acompanhado por um alaúde imaginário que geme nessa tépida sombra nocturna “ay! luna que reluces, toda la noche me alumbres” em seus acordes antiquíssimos; enfim, passando por essa diagonal que atravessa a minha música desde que achei a minha voz, tão bem significada nos andamentos inicial e final, lentos e introspectivos: um primeiro andamento álgido e espesso, marcado pela cor sombria do chalumeau do clarinete que contamina o timbre do próprio quarteto; e um último andamento solar, que faz cantar o violoncelo, o violino e o clarinete à vez, numa textura cheia de ar e espaço vital; um ameaço de nuvens mais sombrias que o clarinete rememora no epílogo, dissipa-se, por fim, num adeus picardo”. Quanto a esta quinta peça, “Pour la fin”, Carrapatoso se inspira num poema de William Blake (1757-1827), The Ecchoing Green, “que assim canta a nossa passagem transitória pelo mundo”, como afirma Carrapatoso.
The sun does arise
And make happy the skies.
The merry bells ring
To welcome the Spring.
The sky-lark and thrush,
The birds of the bush,
Sing louder around,
To the bells’ cheerful sound.
While our sports shall be seen
On the Ecchoing Green.
Old John, with white hair
Does laugh away care,
Sitting under the oak,
Among the old folk,
They laugh at our play,
And soon they all say.
‘Such, such were the joys.
When we all girls & boys,
In our youth-time were seen,
On the Ecchoing Green.’
Till the little ones weary
No more can be merry
The sun does descend,
And our sports have an end:
Round the laps of their mothers,
Many sisters and brothers,
Like birds in their nest,
Are ready for rest;
And sport no more seen,
On the darkening Green.
O sol nasce,
E alegra os céus.
Os sinos alegres tocam
Para dar as boas-vindas à primavera.
A cotovia e o tordo,
As aves do mato,
Cantam mais alto à volta,
ao som alegre dos sinos.
Enquanto os nossos desportos serão vistos
No verde que ecoa.
O velho João, de cabelo branco
Ri-se dos cuidados,
Sentado debaixo do carvalho,
Entre os velhos,
Eles riem-se da nossa brincadeira,
E logo todos dizem.
“Que alegria, que alegria!
Quando todos nós, raparigas e rapazes,
na nossa juventude, éramos vistos,
No verde que ecoa.
Até que os mais pequenos se cansem
Não podem mais ser alegres
O sol está a pôr-se,
E os nossos desportos têm um fim:
Ao colo das suas mães,
Muitas irmãs e irmãos,
Como pássaros no seu ninho,
estão prontos para descansar;
E não se vê mais desporto,
No verde que escurece.
(Traduzido com a versão gratuita do tradutor – DeepL.com)
Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, “Pour la fin, pour mon commencement” nº5:
https://www.youtube.com/watch?v=Lrw3N2m5jLA
Em inúmeros blogs anteriores discorri sobre as várias tendências composicionais, sempre a considerar a importância de se apreender origens. A História evidencia, através dos séculos, a longa evolução da teoria e dos gêneros musicais. Muitas conquistas surgiram a partir desse olhar o passado e, a partir dele, o acréscimo de novos degraus. Sempre mantive distância de teorias que nascem sem quaisquer ligações com o passado e que, glorificadas em guetos, estiolam-se na brevidade devida. Eurico Carrapatoso, mestre de uma escrita sólida, nunca negligenciou a tradição e sua obra, magistralmente bem escrita, obedece àquilo que já rezava Jean-Philippe Rameau (1683-1764), la musique est le langage du coeur. A peça nº 5 é exemplo vivo dessa qualidade inalienável de Carrapatoso. “Pour la fin” em sua lentidão, com o piano como guia principal dos três outros instrumentos, numa reflexiva evolução, finda a peça como iniciou, na solidão em pianissimo.
“Pour la fin, pour le commencement” is a work in five parts by the distinguished Portuguese composer Eurico Carrapatoso. It received the DASH-SHOSTAKOVICH ENSEMBLE award in 2021. I comment on the final part, “Pour la fin”. I was impressed by the quality of the writing and the exemplary performance by the piano, cello, violin and clarinet.
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