Romance de Edson Amâncio
A mente é instável e desajeitada, vagueando por onde mais deseja.
Portanto, é bom controlar a mente.
Uma mente disciplinada traz felicidade (sukra).
(“Dhammapada” As palavras de Buda – Nova Acrópole, s.d. Portugal)
Há pouco tempo escrevi sobre recente lançamento de um livro do renomado médico neurologista e neurocirurgião Edson Amâncio (vide blog “Meu Dostoiévski: Os minutos finais”, 20/01/2024). Recentemente o autor me ofereceu uma provocante novela escrita em 1997, “Minha cara impune”. Edson Amâncio é autor de diversos livros, cultivando vários gêneros literários, entre os quais romance, conto, novela e também obras de divulgação científica. Mencionaria “Diário de um médico louco” (romance 2012) e “Experiência de Quase Morte” (2022), entre outros.
“Minha cara impune” tem como enredo um médico do serviço público atendendo legião de enfermos, mas que, durante as rápidas consultas, viaja mentalmente ao passado ou ao cotidiano descolorido. A imaginação silenciosa, bombardeada por pensamentos que se metamorfoseiam, máxime direcionados ao dia a dia que não o satisfaz, coloca em evidência os problemas de toda ordem existentes nos ambientes dos prontos-socorros públicos e vividos pelo médico personagem.
O plantonista sem esperanças atende pacientes portadores dos mais variados males e, sem qualquer emoção, receita medicamentos ou os encaminha para um outro setor. Sente-se o enfado da rotina desde o despertar, o trajeto de moto e o plantão costumeiro. Não poucas vezes se questiona “para fugir à rotina dos hospitais, aos abcessos, às furunculoses, aos corrimentos, aos boduns dos ambulatórios, para quê?” ou então “no maldito plantão de amanhã”. Não há o prazer da ação como médico, mas o amargor constante. O personagem está a viver duas situações claras, a realidade diante dos fatos, seja na prática médica, seja na memória imperiosa que o fustiga sem tréguas, à maneira de uma erupção, sempre que a fala de um paciente ou a constatação de uma doença qualquer faz jorrar o magma imaginário. Edson Amâncio, nessa perene dualidade, interrompendo a realidade do ato médico presente para evocar reminiscências de toda ordem, apresenta o personagem em constante conflito. O leitor se acostuma com esse jogo.
A rotina do plantonista é sempre revisitada. Um exemplo bem exemplifica algo que ocorre diariamente em situações análogas reais: “Quando entrou, ‘Senhor doutor, vim tirar a pressão’, ele não sabia que eu estava lá há mais de dez horas naquele cubículo, sob as lerdas pás de um ventilador envolto em poeira e teias de aranha, rangendo e expulsando uma coluna de ar infectado, no pequeno espaço onde eu me comprimia, atrás de uma mesa fórmica, segurando uma caneta”. E tem significado o solilóquio do médico de plantão diante do paciente: “Minha cara impune, igual àquela hora, ou depois de um porre salomônico que endireita o pensamento e me prepara para o dia seguinte e os outros plantões que ainda terei de enfrentar pela vida afora, a mesma cara letárgica, suarenta, de barba amanhecida, dos incontáveis plantões, dos inumeráveis simulacros cotidianos, iludia-o com eficiência de mascate tantas vezes praticada na solidão dos consultórios, não o deixando adivinhar o desprazer controlado daquele momento”. E mais, “Pego uma toalha manchada, displicentemente abandonada sobre a pia, abano-a no ar tentando diluir o bodum que restou da mistura de odores humanos e fumaça de cigarros acumulada no ar”. Em capítulo outro: “É raro, raríssimo, me procurarem no plantão pelo nome. Aqui não se diz o nome aos pacientes. A assinatura é ilegível. São essas as artimanhas que nos livram precariamente, é bem verdade, de termos os nomes estampados nas páginas policiais ou nas manchetes da imprensa marrom: ‘Médico demora duas horas para atender criancinha morta na fila!’ Engulo o café e autorizo Bernarda a trazer quem me procura”.
Relatos hodiernos, publicados pelos tantos meios de comunicação, exemplificam a carência do atendimento nos prontos-socorros públicos, quando, tantas vezes, consultas e cirurgias são fixadas em longuíssima data, sendo que o mal sem tréguas jamais aguarda agendamentos distantes.
Na realidade há uma gama ampla de profissionais da saúde no serviço público, de ótimos e dedicados aos que entendem os plantões como horários de tédio. Há cerca de duas décadas uma prestadora de serviços domésticos me afirmou que o seu maior desalento, quando em consulta nos prontos-socorros oficiais, era a longa espera e o atendimento rapidíssimo, tantas vezes sem que o médico de plantão sequer olhasse para o seu rosto. Em todas as profissões há os vocacionados e, para tantos desses, o trabalho ao qual se dedicam é uma dádiva. São os que amam a profissão e corroboram as opiniões positivas, a contrapor o tão criticado serviço médico público. Sob outra égide, quantos não são aqueles que entram no curso superior em determinada área do conhecimento e após meses, ou mesmo bem mais do que esse período, entendendo o não envolvimento em determinado curso, abandona-o para tentar um outro, encontrando-se. Essa mudança, que requer coragem, geralmente resultará em profissionais certos das escolhas feitas. Àqueles sem o apelo vocacional, a profissão será apenas o mal necessário. Legião se esquece do juramento de Hipócrates. Outros seguirão, como vocacionados, os preceitos do lendário médico grego.
“Minha cara impune” não apenas configura a realidade existente nos prontos-socorros públicos e suas instalações tantas vezes precárias, como o desprazer de tantos profissionais voltados ao atendimento de multidão de pacientes em consultas rápidas, sem qualquer interação médico-paciente. Rotina, simplesmente. Pouco provável que, submetidos a esse labor, um profissional da área não realize seus voos mentais. Rotina, má remuneração, atenção constante quanto aos diagnósticos, impessoalidade “Aqui não se diz o nome do médico. A assinatura é ilegível”, palavras que dimensionam o livro de Edson Amâncio, que não deixa de ter um componente essencial, a denúncia.
In his novel ‘Minha face impune’, the renowned neurosurgeon and writer Edson Amâncio introduces a character who, as a doctor, works dejectedly in the emergency room of a public hospital. During his quick and endless consultations, his mind travels through his imagination.
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