Navegando Posts publicados em novembro, 2024

Boris Shapovalov um artista telúrico

Sempre que a arte tiver como objeto as sensações,
encontrar-se-á na presença de leis científicas,
muitas das quais são absolutamente incontestáveis.
Jean-Marie Guyau (1854-1888)

Boris Shapovalov (1952-), natural de São Petersburgo, é um artista efetivamente singular. Conheci-o em Gand, pois quase todos os anos expunha seus trabalhos na galeria La Perseveranza, anexa à De Rode Pomp. Era sempre motivo de alegria nos reencontrarmos e Boris comparecia aos recitais que apresentava no auditório da empresa de concertos e gravações.

Boris Shapovalov tem um currículo invejável, não apenas através de exposições em seu país natal, onde é respeitado por sua arte. Recebeu   calorosa acolhida na Bélgica, granjeando amizades entre os artistas das artes visuais e músicos. Anticonvencional, irreverente, espontâneo e generoso, Boris demonstrava, através de atos, o não comprometimento com o establishment, que elege o que pode ser rentável. Pintava seus trabalhos pelo prazer sem limites de pintar. Artista de uma cultura abrangente, viajou por toda a Rússia, a colher impressões. Sua curiosidade o fez conhecer quantidade enorme de museus nos centros que visitava. Todo esse acervo cultural corroborou a edificação de um estilo definido.

Como expunha quase que anualmente seus trabalhos na La Perseveranza, aguçava-o o grande painel do palco e todo o ano renovava a pintura com formas e cores vibrantes, a despertar no ouvinte dos concertos a sensação do inusitado, pois Boris em cada imensa criação na sala de concertos da De Rode Pomp depositava a aura autêntica.

Havia dado um recital em que apresentei a integral dos Estudos de Debussy.  Após a récita, André Posman nos convidou para um jantar na sede da Rode Pomp e abriu uma garrafa grande de Champagne. Estranhei o fato de, logo após o congraçamento, Boris ter colocado a garrafa vazia sob o braço e se retirar. No dia seguinte me ofereceu a garrafa com sugestiva pintura.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, “Étude pour les huit doigts”, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=D85tz0ibqRk

Estava a ensaiar na sala da De Rode Pomp e sequer vi a presença de Boris. Dias após me ofertou cena que havia captado.

Quando de um recital de música de câmara, noite na qual o excelente Rubio Kwartet e eu apresentamos um concerto inteiramente dedicado à música camerística do nosso maior romântico, Henrique Oswald (1852-1931), Boris presenteou-me com o óleo sobre tela a homenagear o sarau, fixando no verso os créditos com o “autorretrato” tão habitual em seus quadros (21/02/2002).


Após um recital Scriabine na De Rode Pomp (2000), fomos no dia seguinte a um café em Gand. Conversamos sobre a música russa de Moussorgsky a Scriabine. Estava eu a caminhar nas ruas da cidade dias depois quando encontro Boris que, ao me ver, abriu uma sacola, oferecendo a arte que fizera após o aprazível diálogo anterior

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, “Valse op.38”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=97MoXq2KWig

Acredito que artistas como Boris Shapovalov e os mencionados belgas e holandês do blog anterior têm o precípuo sentido da arte desvinculada do mercado. São mestres autênticos e a generosidade que tiveram para com o intérprete nunca foi olvidada. Guardo com carinho todos os desenhos e pinturas. Dádiva.

No próximo e último post sobre os desenhos e pinturas que tive o privilégio de receber graciosamente de artistas relevantes que se tornaram amigos, focalizarei nossa filha Maria Fernanda, psicóloga, mas com um dom singular para o desenho. De um primeiro aos dez anos, sem noção das proporções, aos inúmeros em que retratou o pai ao longo das décadas, Maria Fernanda demonstra a precisão do traço.

Boris Shapovalov, born in St Petersburg, is an important painter. I met him in Ghent, Belgium, as he often exhibited his works in the Belgian city at the La Perseveranza gallery, which belonged to De Rode Pomp. Our friendship resulted in paintings that he gave me and that I keep as  treasured possessions.


Artistas da Bélgica e da Holanda

O meu ponto de partida será sempre a cabeça,
o desenho ajuda a ver o caminho,
mas o princípio é sempre a cabeça. Sempre.
Álvaro Siza Vieira (1933-)
notável arquiteto português

A Bélgica, máxime a cidade de Gent, permanece como parte essencial da minha atividade musical. Foram mais de duas dezenas de viagens à cidade plena de mistérios. Recitais pelo país, gravação da maioria dos meus 25 CDs – sempre sob os cuidados do extraordinário engenheiro de som Johan Kennivé -,  na já tão mencionada Capela de Saint-Hilarius (século XII), em Mullem, perdida na planície flamenga.

Três artistas belgas me privilegiaram com desenhos: Yves Dendal (1933-2001), Jan de Wachter (1960-) e Lutgard Wittocx (1956-). Joep Huiskamp (1956-), holandês, já esteve presente em blogs anteriores, pois nossa amizade irretocável data do ano 2000. Os quatro têm currículos significativos, com exposições em seus países e alhures.

Os dois primeiros frequentavam a galeria La Perseveranza, em Gand, que ficava num anexo da empresa De Rode Pomp para cujo selo gravei tantos CDs.

Yves Dendal em suas telas sofreu a influência da corrente surrealista. Pertenceu em 1955 ao movimento da “Jovem pintura belga”, que abrigou vários artistas de vanguarda. Dendal compareceu a vários recitais que apresentei em Gand e sempre me presenteava com desenhos que surgiam durante a interpretação. Figura tranquila, despojado de qualquer exibicionismo, Yves Dendal frequentava a temporada da De Rode Pomp e não deixava de registrar em seus desenhos aquilo que considerava essencial, o que emanava do intérprete no instante do acontecido.

Quando apresentei a integral dos “Estudos”, a “Fantasia op.28”, o “Poema Trágico” op. 34 e “Vers la Flamme” op. 62, de Alexandre Scriabine (1872-1915), compareceram alunos de piano da Rússia que estavam fazendo estágio no Conservatório Real de Gand. Após o recital e a recepção habitual da De Rode Pomp, o professor dos jovens, russo também, perguntou se eu poderia explicar aos seus alunos a minha concepção pianística da obra para piano de Scriabine. Aquiesci com prazer e Yves Dendal fixou aqueles momentos em plena madrugada.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, “Poème Tragique”op. 34, na interpretação de J.E.M.

Alexander Scriabin – Poème Tragique Opus 34 – José Eduardo Martins – piano

Jan de Wachter desenvolve várias ações em sua arte visual. Pintor, desenhista, escultor, tem merecido forte acolhida da crítica especializada. Um dos seus projetos, Ypres-Palmyr, esteve voltado ao impacto do terrorismo em Paris (Charlie Hebdo, 2015), no aeroporto de Zaventem e no metrô de Bruxelas (2016), e na destruição do sítio arqueológico sírio de Palmira (2015 a 2017). Jan de Wachter estava a realizar uma exposição na La Perseveranza com significativas ilustrações relacionadas aos filmes do cineasta russo Andrei Tarkovsky (1932-1986) e compareceu a um dos meus recitais, contemplando-me dias após, para minha surpresa, com trabalhos em técnica mista evocando três  compositores constantes no programa apresentado que dediquei à música contemporânea luso-brasileira. Seus nomes ou títulos das peças estão fixados em grafite sobre pátina com coloração suave: Gilberto Mendes (1922-2016), lembrado através do “Estudo – Ex-tudo – Eis tudo pois”, Jorge Peixinho (1940-1995) in memoriam, “Etude 5 Die-Reihe Courante” e Paulo Costa Lima, “Ponteio-Estudo”.

Clique para ouvir, de Paulo Costa Lima, “Ponteio-Estudo”, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=OeFKNexsoeM

Em outros dois trabalhos artísticos, sem fazer referência a autores, apenas insere as mãos do pianista entre as abstrações.


A lembrança do nome do intérprete.

Lutgard Wittocx, pintora e desenhista, tem série com músicos em sua considerável obra. Observa-os durante as apresentações, fixando-se nas expressões e nas mãos. No seu site, uma crítica que revela algumas das suas atitudes frente à criação: “Na expressão facial e nas mãos, a artista capta o abandono com que os músicos tocam os seus instrumentos. No entanto, é o desenho que transmite ao espectador o impacto da música. A atividade do músico ganha vida graças à expressividade tão típica de Wittocx. O carácter do seu desenho manifesta-se de forma dinâmica. É a eloquência de apenas algumas linhas bem resolvidas”. O desenho foi realizado durante recital que apresentei em Schilde, região flamenga na província da  Antuérpia.

Joep Huiskamp foi várias vezes mencionado neste espaço, pois acompanhou sempre os meus recitais apresentados na Bélgica de 2000 a 2023. Compareceu com sua esposa Joeneke aos recitais em Gand, Bruxelas, Antuérpia, Coimbra e Lisboa, vindo de Eindhoven, onde teve ação relevante junto à renomada Universidade de Tecnologia da cidade (vide blogs “Joep Huiskamp” 20/03/2021) e (“Meu amigo Joep Huiskamp e o arquipélago dos Açores”, 08/04/2023). Realizou várias exposições na Holanda, obtendo recepção elogiosa. Amante das ilhas açorianas, mormente a de São Jorge, terra natal de Francisco de Lacerda (1869-1934), um dos seus compositores eleitos e meu também, Joep fez o primeiro desenho em Gand, enquanto eu ouvia as provas da gravação dos Estudos de Scriabine, realizada dias antes.

Dias após um recital em Gand (2007), Joep Huiskamp entregou-me uma lembrança relacionada à minha amizade com André Posmam, Diretor da De Rode Pomp.

Em 2017 encerrei um recital com “Vers la Flamme”, de Scriabine, e Joep me presenteia com um trabalho intrigante das mãos.

Após o encerramento de minha atividade pianística na Europa em 2023, Joep Huiskamp novamente esteve presente, enviando-me semanas após um álbum de desenhos e fotos a relembrar as décadas da nossa intensa amizade. À la manière d’une introduction, relembrou minhas passagens pela Bélgica, Portugal continental e pelo arquipélago dos Açores, assim como figuras históricas que fizeram parte de tantas conversas que mantivemos. A referência aos amigos comuns, os Herberts: Tony, Tania, Tycho e Trixie, em cuja morada sempre me hospedei, está presente na lista das lembranças, T4.

No próximo blog exibirei as notáveis pinturas do artista russo Boris Shapovalov, que realizou várias exposições na galeria La Perseveranza. Guardo com carinho quatro das suas criações.

In today’s post, I introduce four artists – three Belgians and one Dutch – who offered me drawings or paintings that I highly treasure.

Luca Vitali (1940-2013)

Mors certa hora incerta

A fase criativa pela qual passava o singular pintor Luca Vitali, somada às perspectivas futuras de outras obras, máxime as pinturas em acrílico sobre tela, foram interrompidas pela morte súbita em 2013 (vide blog “Homenagem a Luca Vitali”, 07/12/2013). Considerava-o um amigo-irmão.  Mantínhamos um apreço mútuo em relação às nossas duas artes, Pintura e Música.

Para o meu gáudio, Luca Vitali participou com desenhos em inúmeros posts. Costumávamos almoçar às terças-feiras, prioritariamente ele a comentar os seus projetos e eu, a sequência da atividade pianística e o blog que seria publicado no sábado vindouro. Várias vezes escrevi que Luca possuía um lápis no cérebro, pois, a depender do tema, um ou dois dias após o nosso encontro enviava-me um desenho, que com imenso prazer incluía no post hebdomadário. No blog de 2013 escrevia: “Em uma das conversas descontraídas disse-lhe que, se o seu cérebro fosse radiografado, preliminarmente deveria ele dizer aos médicos que o lápis lá estava e que não deveriam, portanto, tentar retirá-lo”. Jamais forcei a feitura de um desenho, exceção ao que ilustrou as bodas de ouro do seu casal amigo, Regina e eu. Fê-lo no dia 17 de Abril, pois morreria aos 20, uma semana antes do evento.

Meses antes do infausto acontecimento, Luca Vitali empreende a denominada série Cósmica, sete grandes criações em acrílico sobre tela, que considero sua maior criação. Repassei as imagens ao amigo e ilustre compositor francês François Servenière (1961-) que, subjugado pela força que delas emana, compôs sete magníficos Estudos para piano sob o impacto de cada tela. Sabedor da apreciação de Servenière, Luca pintaria uma oitava tela, “Outono Cósmico”, a concluir o ciclo. Os sete Estudos mais o “Outono Cósmico”, gravei-os em Mullem, na Bélgica, juntamente com obras dos notáveis Eurico Carrapatoso, Geörgy Arnaudov e Jorge Peixinho, completando o CD “Éthers de l’Infini”, editado na França.

Clique para ouvir, de François Servenière, “Cometa”, da série de Estudos sob a aura das pinturas Cósmicas de Luca Vitali:

https://www.youtube.com/watch?v=EssYC_2G1Jc

Após tantos desenhos, telas e charges criadas por Luca Vitali ilustrando os meus blogs, presto homenagem ao amigo-irmão neste post, a salientar seu lado bem-humorado, pois, das nossas conversas sobre o cotidiano, cenas foram transmitidas ao lápis cerebral do amigo.

Em nossas conversas falamos muitas vezes da alienação de parte da população, que estava mais preocupada com o que via na televisão – o celular ainda não era uma epidemia –, e Luca Vitali me caracterizou nos treinos para as corridas de rua, atônito pela pasteurização humana.

Fiz parte da equipe de corridas “Ta lentos”, constituída por queridos amigos descendentes do Sol Nascente. Luca fez o desenho que ilustraria as nossas camisetas.

Conversava com Luca sobre vários esportes e, na descontração, disse-lhe que, treinando, fora acossado por um cão.

Muitos anos atrás escrevi sobre episódio hilariante. Quando acometido de um linfoma T células pequenas em 2004, sinais se tornaram evidentes motivados pela quimioterapia. Apesar de vaticínios médicos apontando para o pior, recuperei-me e comecei a “trotar”, inicialmente num pequeno parque perto de nossa casa. Três senhoras que frequentavam o local sabiam da minha desdita. Do parquinho parti para treinamentos mais longos pelo bairro e, logo após, participava das corridas de rua. Foram exatamente duzentas de 2008 até fins de 2021. Como não mais frequentava o parque, anos após uma dessas simpáticas senhoras tocou a campainha de casa e, ao me ver, exclamou “você está vivo!!!”. Luca ouviu minha narração e desenhou-me como um ser alado. Inseriu teclado e gavião, pássaro que comeu uma das aves do terraço de nosso vizinho.

Acompanhando meus blogs e artigos sobre música, assim como a minha atividade pianística, máxime na Europa, não se esquecendo das corridas de rua, certo dia Luca Vitali me deu um desenho acoplando notas musicais esvoaçando, o teclado “bivalente” e o par de tênis das corridas.

Em um dos recitais na Europa tocaria os “Quadros de uma Exposição”, de Moussorgsky, obra que havia gravado anos antes na Bélgica. Contei-lhe a história da extraordinária criação do compositor russo. Dias após, Luca me entrega o sugestivo desenho, no qual música e arte visual estão presentes no cavalete com teclado. Não desprovido de humor, o regresso do gavião da imagem anterior.

Dois desenhos do saudoso amigo-irmão estão relacionados à Corrida de São Silvestre no último dia do ano. Completei cinco provas (15km), tendo participado de outras cinco preparatórias com a competente equipe Corre Brasil, da qual fazia parte. A atividade não passou desapercebida pelo olhar de Luca.

A diversidade temática dos blogs provocou um curioso desenho. Frente ao computador, as ideias surgiam…

Dois anos após a partida do meu saudoso amigo-irmão, um dos seus filhos esteve em nossa casa e me entregou o magnífico quadro da série Cósmica, Níquel. Disse-me que doravante seria eu o guardião da tela. Luca Vitali, amigo-irmão, permanece vivo em minha memória.

Clique para ouvir, de François Servenière, Níquel, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=6twd8WP_9js

I pay tribute to the excellent visual artist Luca Vitali (1940-2013) presenting a few of the many drawings and cartoons he drew for my weekly posts, some very humorous.