Conversa que despertou a memória

A percepção nunca está puramente no presente,
pois tem de recorrer à experiência do passado.

Oliver Sachs (1933-2015)
(“Alucinações musicais”)

Ao longo dos anos não foram poucas as vezes em que mencionei Marcelo, amigo que encontro por vezes na feira livre do Campo Belo aos sábados. Lê os blogs semanais e, quando nos encontramos, sempre há perguntas inteligentes que busco responder. Vi-o no início do presente mês em um dos supermercados que frequento e voltamos a conversar prazerosamente. Entre outros assuntos do cotidiano, fez-me conhecer um problema que o atingia relacionado à perda quase plena de audição do seu ouvido esquerdo. Deveria ser operado dias após o nosso encontro. Antes de saber o mal que o acometia, notei que ele, ao me ouvir, virava ligeiramente o pescoço em direção à direita. Causou-me espanto quando ouvi Marcelo comentar o seu desânimo ao ouvir música. É motivo de alegria saber que ele ouve as músicas que insiro nos links dos posts semanais. Disse-me que algo estranho tem ocorrido, pois está perdendo a vontade de ouvir, pois a escuta a partir de um só ouvido “não tem graça”, como me afirmou. Tomamos um curto na lanchonete do estabelecimento e nos despedimos. Soube nesta semana que a cirurgia correu a contento e ele está a se recuperar. Recordei-me de um aluno que teve poucas aulas de piano em tempos idos e que não tinha nenhuma audição em um dos ouvidos desde a infância. Naturalmente inclinava a cabeça para um lado ao executar uma música.

Fiquei a pensar no problema do Marcelo e veio-me à memória um capítulo de um livro do renomado neurologista, psiquiatra, professor e escritor anglo-americano Oliver Sachs (1933-2015), nascido na Inglaterra e que se fixou nos Estados Unidos, tendo uma vasta e diversificada contribuição literária (“Alucinações Musicais”, São Paulo, Schwarcz, 2007).

No capítulo em questão, “Em estéreo ao vivo: por que temos dois ouvidos”, o autor inicia mencionando um médico norueguês, dr. Jorgen Jorgensen, com quem mantinha correspondência e que perdera a audição do seu ouvido direito após cirurgia. Observa o médico escandinavo: “A percepção das qualidades específicas da música – o tom, o timbre – não mudou. Mas a minha recepção emocional da música ficou prejudicada. Tornou-se curiosamente monótona e unidimensional”. Especificações existentes na música, como altura sonora, ritmo, tempo e as curvas das linhas musicais, crescendo e diminuendos, são elementos que podem se  tornar prejudicados quando da escuta através de um só ouvido. Sachs comenta que ocorrem diferenças óbvias na escuta espacial e distingue “cantar em uma sala de concerto ou no chuveiro”. Têm interesse as suas reiteradas chamadas às diferenças de se ouvir em mono ou em estéreo, tendo em conta igualmente a reverberação.

Dr. Sachs insiste que aquele que, por circunstâncias várias, está desprovido da audição plena, desenvolve um efeito “pseudo-estéreo”. Observa: “A genuína percepção em estéreo, seja ela visual ou auditiva, depende da capacidade do cérebro para inferir a profundidade e a distância (além de qualidades como rotundidade, amplitude e volume) com base nas disparidades entre o que está sendo transmitido pelos dois olhos ou ouvidos individualmente – uma disparidade espacial no caso dos olhos, e temporal no dos ouvidos.”

Relevante a analogia que o autor estabelece para aqueles que perdem a visão de um olho. Oliver Sachs explica: “As repercussões da perda da estereoscopia podem ser inesperadamente abrangentes; incluem não só a dificuldade de avaliar a profundidade e a distância, mas também um ‘aplainamento’ de todo o mundo visual, tanto na esfera perceptual como na emocional”. Seria possível entender que a situação, que se estende igualmente à percepção espacial, condiciona adaptações a que o mental pouco a pouco se acostuma, sendo que, se porventura a visão volta a ser binocular, sensações extraordinárias se abrem. Após considerar que o humano, não tendo largamente a acuidade ocular e auditiva da maioria dos animais, acaba aperfeiçoando minimamente os seus sentidos visual e auditivo. Escreve o neurologista: “É a estereofonia que permite aos espectadores de um concerto deleitar-se com toda a complexidade e o esplendor acústico de uma orquestra ou de um coro que se apresenta em uma sala de espetáculo projetada para que a audição seja a mais rica, refinada e tridimensional possível – uma experiência que tentamos recriar, da melhor forma, com dois fones de ouvido, alto-falantes estéreo ou som surround”.

Se existem cidadãos impossibilitados nos casos elencados, há que se entender que, a depender da acuidade e do esforço mental dos que perderam a audição de um ouvido e a visão de um olho, atenuantes existem e o empenho voluntário ameniza as ausências da escuta ou da luz, respectivamente, aos acometidos por esses problemas. Sachs menciona “o aumento da habilidade de fazer avaliações usando um único olho ou ouvido, um uso intensificado das pistas monoculares ou monoaurais”. Continua: “A pessoa que perdeu a estereocopia ou a estereofonia precisa, efetivamente, recalibrar seu ambiente, seu mundo espacial – e, nesse caso, o movimento é especialmente importante, até mesmo os movimentos da cabeça relativamente pequenos, mas muito informativos”. Relata Sachs que, através de muitos esforços mentais, o dr. Jorgensen, mesmo sem a audição do ouvido direito, encontrou, através de um esforço mental, algum resultado que o fez ter um conforto ao ouvir música com apenas o ouvido esquerdo.

Dr. Francisco de Paula Pinto Hartung (1893-1953), renomado otorrinolaringologista, escreveu dois livros de interesse sobre “Chopin – Enfermidade e Arte” e “A Surdez de Beethoven – aspectos clínicos e históricos”. Neste, pormenoriza o mal que acometeu o compositor, causas, consequências, enumerando etapas. Li-os décadas atrás. A leitura da vasta correspondência de Beethoven corrobora interpretações quanto à sua surdez. Se pensarmos que algumas de suas obras mestras, incluindo a possivelmente mais consagrada Sinfonia da história, a célebre Nona Sinfonia, assim como as quatro mais importantes Sonatas para piano solo, opus 106 (Hammerklavier), 109, 110 e 111, e os últimos quartetos, todas essas criações foram concebidas no silêncio auditivo externo a partir de 1819, quando a capacidade auditiva de Beethoven era basicamente nula. Se pensarmos que o cidadão versado minimamente em música, sem se expressar cantarolando, pode rememorar melodias que o agradam, inclusive com as letras desses cantos ao gosto do público. Essas melodias ecoam, pois gravadas na mente. Beethoven criou todas as extraordinárias obras finais da existência apenas com a escuta interna, substanciada por todo o acervo composicional adquirido por uma figura sob a aura da genialidade. Certamente foi um exercício hercúleo transcrever o que estava na mente sem qualquer auxílio instrumental. Teria a Nona Sinfonia a magnitude que dela emana, plena de sentimentos contraditórios e dramáticos, se a audição do Mestre alemão estivesse perfeita? Mistérios.

With regard to a hearing impairment that affected my friend Marcelo, who goes to the same street market as me in Brooklin-Campo Belo, I would like to quote Dr Oliver Sachs, who addresses the subject in his book “Musicophilia – tales of music and the brain”.