Navegando Posts publicados em abril, 2025

A exacerbação restrita a uma determinada invasão


O bem que o Estado pode fazer é limitado; o mal, infinito.
O que ele pode nos dar é sempre menos do que nos pode tirar.
Roberto Campos (1917-2001)
(Embaixador e economista)

Foram muitas as mensagens louvando a posição do jurista Ives Gandra Martins no que concerne à anistia. No blog anterior Ives Gandra elenca o histórico de anistias em nosso país. Pelo fato de entender que dois temas têm ligação plena, a baderna e a anistia, insiro na íntegra o texto posterior de Ives Gandra igualmente relacionado às manifestações desordeiras, uma sem qualquer posicionamento punitivo, e a de 8 de Janeiro, severamente castigada.

O artigo recente, publicado na Revista Aeronáutica nº 326, leva à reflexão dos pesos avaliativos diferenciados em situações relacionadas aos distúrbios coletivos, ignorando-os ou punindo-os a depender das ideologias.

Escreve o jurista Ives Gandra: “Assisti, outro dia, pelas redes sociais, a um vídeo sobre a invasão do Congresso Nacional, ocorrida em 24 de maio de 2017, por elementos do PT e do MST, com destruição de dependências do Parlamento e incêndios provocados à entrada. Naquele dia, estava em uma audiência com o Ministro Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal (STF) e tomamos conhecimento do que ocorria pelo rádio, em seu Gabinete, assim como da decretação do estado de emergência pelo presidente Temer, tal a gravidade do atentado e a determinação para que o Exército tomasse as medidas necessárias para que o episódio fosse encerrado com a desocupação do Legislativo.

Apesar da gravidade do atentado contra os Poderes, nenhum dos invasores, depredadores e agressores de funcionários sofreu um processo judicial.

No ano passado, em sessão da Academia Paulista de Letras Jurídicas, o acadêmico e ex-presidente da República, Professor Doutor Michel Temer, em Conferência, esclareceu que não puniu aqueles baderneiros, pois decidiu seguir o exemplo do ex-presidente Juscelino Kubitschek, que anistiara os revoltosos de Aragarça e Jacareacanga que, com armas, tentaram um golpe de Estado em seu governo.

Comparando os atos de 2017 com os de 08 de janeiro de 2023, neste, houve um número maior de pessoas, mas não agressões a funcionários públicos, embora tenham ocorrido, também, depredações que se estenderam ao Executivo e ao Legislativo, sem necessidade, entretanto, de decretação do Estado de Emergência, sendo que, com um contingente não expressivo de militares, o Presidente Lula encerrou a baderna, prendendo 1700 manifestantes desarmados sem necessidade de dar um tiro sequer.

Sendo assim, verificando os vídeos, nas redes sociais, das duas manifestações condenáveis, a única diferença foi na extensão maior daquela de 2023 e haver feridos na de 2017, no Governo Temer. As destruições, entretanto, de prédios públicos foram as mesmas.

Em novembro de 2024, um cidadão suicidou-se perante o STF, com evidente perturbação mental, tendo-se descoberto por mensagens que queria matar o Ministro Alexandre de Moraes.

Em 2018, um outro cidadão esfaqueou o então candidato Bolsonaro durante a campanha, em fato semelhante ao tiro dado em Trump em 2024, nos Estados Unidos.

Os dois fatos são muito parecidos, assim como as duas manifestações baderneiras de destruição de prédios públicos.

Ocorre, todavia, que a imprensa e os políticos de esquerda entenderam que as badernas ocorridas no Governo Temer não foram nem tentativa de golpe e nem atentado violento ao Estado Democrático de Direito, mas as de 08 de Janeiro foram, assim como o esfaqueamento do ex-presidente Bolsonaro fora considerado ato isolado, mas o suicídio de quem queria atentar contra o Ministro Alexandre de Morais, um ato vinculado a grupo que pretendia um golpe e um atentado ao Estado Democrático de Direito, sem nenhuma prova nesse sentido.

Confesso ser cada vez mais difícil interpretar o nosso Direito, tendo a nítida impressão de que o Brasil possui duas espécies de hermenêutica jurídica, em que fatos e circunstâncias semelhantes devem ser punidos quando praticados por conservadores e desconsiderados quando quem os pratica milita na esquerda. Pergunto-me, parafraseando o poeta: ‘Mudou o Brasil ou mudei eu?’”.

A posição do meu ilustre irmão Ives Gandra, nos seus 90 anos, reflete uma existência plena de quem interpretou inúmeros Governos, e suas reflexões não partem de irrealidades, mas da observação que leva às evidências cristalinas, hélas, nem sempre entendidas pela Suprema Corte. Ter comentado em 15 volumes a nossa Carta Magna de 1988 não lhe dá uma autoridade opinativa? É só seguir fielmente o que reza a nossa Constituição. Conservar o princípio absoluto da Carta Magna faz jus àquilo que deveria ser sempre o alicerce profundo a clarear as decisões dos senhores Ministros, guardiães da Constituição. Triste não a seguirem fielmente. In adendo, acrescentaria que diversas outras invasões nas Câmaras de São Paulo aconteceram ao longo dos anos, sem consequências maiores para os baderneiros.

No próximo blog retorno aos temas que acompanham a minha também já longa existência. Contudo, nesses dois últimos posts não podia me furtar a expressar minha profunda admiração pelas reflexões do meu querido irmão Ives Gandra Martins, pois me calaram profundamente.

In this second post on a theme so well addressed by my brother, the jurist Ives Gandra Martins, we look at the double standards concerning the invasion of public buildings.

 

 

 

 

 

 

Quando a competência se sobrepõe à interpretação outra

A liberdade não pode ser mero apelo da retórica política.
Ela deve exercer-se dentro daqueles velhos princípios,
que impõem, como único limite à liberdade de cada homem,
o mesmo direito à liberdade dos outros homens.

Liberdade, Soberania, Justiça.
Sobre estas ideias simples construíram-se as maiores nações da história.
Elas serão o âmago da nossa razão comum no trabalho
de dotar a Nação de uma nova e legítima Carta Política.

Discordar, sim.
Divergir, sim.
Descumprir, jamais.
Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição,
Traidor da Pátria.

Ulysses Guimarães (1916-1992)
Presidente da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988)

Longe de ser a minha área, predominantemente voltada à Música, causou-me forte impacto artigo do meu irmão, o jurista Ives Gandra Martins, inserido no Blog do Fausto Macedo e publicado no Estadão aos 3 de Abril. Laços de sangue à parte, Ives Gandra (1935-) e o também ilustre jurista Celso Bastos (1938-2003) foram aqueles que mais aprofundadamente se debruçaram sobre a nossa Constituição de 1988, pois a estudaram longamente, interpretando-a em 15 volumes e cerca de 10 mil páginas! Mutatis mutandi, como pianista, entendo o que representa o conhecimento da opera omnia para piano de um compositor.

À luz da nossa Carta Magna, Ives, sempre a mencionar ministros do STF, alguns deles partícipes de publicações conjuntas, sente-se “muito constrangido de divergir dos meus amigos da Suprema Corte, que tanto admiro. Mas, como cidadão, não poderia me calar”. E não se calou. No artigo em apreço, publicado na coluna Opinião do Fausto Macedo, Ives Gandra Martins penetra no âmago da polêmica decisão da Primeira Turma do STF que tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro réu.

Mercê da dimensão do artigo, selecionei para o leitor segmentos que merecem especial reflexão e que ratificam não apenas a competência de Ives Gandra, como levam o leitor a considerar ainda mais o que reza a nossa Constituição, que jamais poderia ter seu texto distanciado do que determina seu conteúdo intrínseco.

Ives Gandra comenta: “A decisão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em relação ao ex-presidente Jair Bolsonaro, de aceitar a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) e torná-lo réu, entendendo que houve uma tentativa de golpe de Estado com base no que foi, fundamentalmente, encontrado no celular do coronel Mauro Cid e em sua delação premiada, merece algumas breves considerações. Trata-se de uma mudança na jurisprudência do Supremo, pois, no caso da Lava Jato, apesar do prejuízo de bilhões causado ao Brasil por corruptores confessos, a Suprema Corte não utilizou a delação premiada como fundamento de suas decisões e até entendeu que ela não poderia servir para embasar prisões”.

Ives Gandra enumera elementos de interesse a respeito do suposto golpe: “Fato é que, primeiro, para haver uma tentativa de golpe, seria necessária uma ação concreta, que só poderia ser realizada por militares. No entanto, nenhum militar com comando de tropas saiu às ruas para essa tentativa. Lecionei durante 33 anos para coronéis que seriam promovidos a generais e, em 2022, creio que aproximadamente 90% dos generais haviam assistido às minhas aulas de Direito Constitucional. Lembro-me perfeitamente de que, durante as aulas, nos momentos de debate, não havia ambiente para que algum deles cogitasse golpes de Estado, até porque minhas aulas eram sobre o respeito à Constituição, jamais sobre sua ruptura. Reafirmo: para haver tentativa, é necessário que exista um ato de execução do crime. E, nesse caso, as Forças Armadas seriam as únicas que poderiam executar um eventual golpe. No entanto, não houve tentativa, pois sequer houve o início de uma ação. Em segundo lugar, afirmar que o evento de 8 de janeiro foi um golpe é algo muito difícil de aceitar. Como acadêmico da Academia Paulista de História, nunca vi, ao estudar a história mundial, um golpe de Estado sem a participação das Forças Armadas. Destaco, ainda, que a minha segunda tese acadêmica foi sobre o impacto das despesas militares nos orçamentos públicos, analisando todas as conhecidas batalhas mundiais até o ano 1.200, quando se tornaram tão numerosas a ponto de não ser mais possível citá-las individualmente. Insisto que o ocorrido em 8 de janeiro não foi um golpe de Estado, também porque ninguém estava armado.  Foi uma baderna, mas não foi um golpe de Estado. Uma das participantes estava com batom e alguns tinham estilingues. Ora, com batom e estilingues não se faz uma revolução. O terceiro elemento que me impressiona é chamar de documento golpista um papel sem assinatura, onde constava uma declaração de estado de sítio. Ora, o estado de sítio é uma figura constitucional que existe para garantir o Estado de Direito e não para rompê-lo. Para ser decretado pelo presidente, o estado de sítio deve ser autorizado por maioria absoluta do Congresso Nacional. Trata-se, portanto, de um papel sem valor algum, já que o Congresso Nacional jamais autorizaria o estado de sítio. Sendo assim, não vale nada, não é um documento. Quarto ponto que, como advogado, me parece importante: muitos dos advogados que eu conheço, alguns brilhantes e respeitadíssimos no Brasil, não tiveram acesso completo à delação premiada e a todos documentos. Como é que eu vou defender o meu cliente sem conhecer todos os elementos que levaram à acusação? A Constituição, no inciso LV do artigo 5º, prevê a garantia da ‘ampla defesa’. A palavra ‘ampla’ é um adjetivo de uma força ôntica impressionante. Não é, portanto, qualquer defesa judicial e processual”.

Significativo o entendimento que Ives Gandra estende à defesa ampla: “Mesmo assim, a defesa queixou-se de ter tido acesso a apenas àquela parte que constava dos autos. Tratou-se, portanto, de uma defesa limitada e cerceada”. Entende Ives Gandra que a matéria, graças à importância, deveria ser decidida pelo Plenário da Suprema Corte.

Um segmento que merece reflexão atinge o cerne daquilo que o cidadão comum apreende da realidade atual quanto a algumas das decisões dos ministros do STF, consideradas de cunho político: “Embora, nas decisões judiciais, nossa convergência seja muito grande, nossa divergência ocorre quando entendo que eles se transformaram em poder político. Por essa razão é que, hoje, são obrigados a andar acompanhados de seguranças. Algo que não ocorria quando eu saía com os Ministros Maurício Corrêa, Moreira Alves, Oscar Corrêa, Cordeiro Guerra, Sidney Sanches, enfim, todos aqueles que foram meus amigos de tempos imemoriais, como os de Aliomar Baleeiro, Hahnemann Guimarães ou José Néri da Silveira. Não era necessário uso de seguranças, porque era o STF apenas Poder Judiciário. Significa dizer que os nossos atuais Ministros recebem um tratamento típico de políticos: quando estão na rua, quem os aprova, aplaude, enquanto quem não gosta, os ataca”. Estou a me lembrar de dois Ministros expressivos do STF, Eros Grau, com quem tive contatos durante convívio na USP, e Carlos Velloso, em viagem cultural à Romênia. Pessoas vinham cumprimentar o Ministro Velloso no aeroporto. Ambos andavam tranquilamente sem seguranças.

Ives Gandra, tendo presenciado as discussões durante a elaboração da nossa Carta Magna, considera que “nos 20 meses em que participei comentando a Constituição fui ouvido em audiências públicas pelos Constituintes, mantendo contato permanente com Bernardo Cabral e visitando Ulisses Guimarães em sua casa, perto do Jóquei Clube, para discutirmos pontos da Constituição. Naquele momento, o objetivo era, ao sairmos de um regime de exceção, onde havia um poder dominante, estabelecer três poderes harmônicos e independentes. Retrato, pois, aquilo que vi na discussão e na formulação de uma Constituição ampla, prolixa, mas que tinha uma espinha dorsal fantástica, baseada na harmonia e independência dos Poderes, além da previsão dos direitos e garantias individuais, que são os dois maiores sustentáculos da Constituição de 1988. Como um idoso de 90 anos, gostaria de trazer essas minhas reflexões para aqueles que me leem e viram a decisão de ilustres Ministros do STF, a quem respeito, mas que têm, entretanto, neste nonagenário, advogado e professor universitário, uma interpretação que, infelizmente, em relação ao direito, é bem diferente daquilo que foi decidido”.

I’m reproducing segments of an important article by my brother, the jurist Ives Gandra Martins, on the judgment of the first panel of the Supreme Court that made the former president of the Republic, Jair Bolsonaro, a defendant for coup attempt.

 

 

 

 

 

 

 

 



 

Homenagens ao “Poeta do Mar”

Olhos encantados, olhos cor do mar,
Olhos pensativos que fazeis sonhar!
Vicente de Carvalho (1866-1924)
(Extraído do poema “Olhos verdes”)

O poeta, escritor e crítico literário Flávio Viegas Amoreira fez por bem organizar um precioso livro no ano do centenário de morte de Vicente de Carvalho (1866-1924), grande poeta santista.

Flávio Amoreira convidou três especialistas na matéria antecedendo seu instigante texto crítico, “Vicente de Carvalho redescoberto”: Vicente Augusto de Carvalho, um dos vinte netos do poeta, rememora episódios e pincela dados biográficos; Lúcia Maria Teixeira e Sílvia Ângela Teixeira Penteado, doutoras especialistas em Psicologia da Educação e em Educação, respectivamente, evidenciam com sensibilidade o comprometimento perene do poeta com o mar; meu irmão Ives Gandra da Silva Martins, em sua avaliação, consagra: “os três maiores representantes do parnasianismo foram Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Vicente de Carvalho”.

Flávio Viegas Amoreira, um louvável cultor dos valores de sua cidade natal, Santos, em seu texto crítico erudito aborda as qualidades inalienáveis do notável poeta: “Vicente foi um clássico nascido clássico, equidistante das escolas e idiossincrasias das ‘patotas literárias’, e segue poetizando cada vez melhor porque vivo através dos novos leitores internéticos em blogs, sites específicos, declamando em saraus e entronizado pela cornucópia pós-moderna de resgate do antigo em simbiose com os novíssimos”. O texto em apreço é um convite à leitura da poesia e dos contos de Vicente de Carvalho. Para tanto, Amoreira insere um conto, “Em roda de fogo”, e 14 poemas.

A inserção de estrofes de dois dos seus poemas se faz necessária para uma mínima percepção do grande vate santista:

Canção

Quando passa, bem amada,
- Clarão, perfume, harmonia –
Raia o sol e rompe o dia
Na minh’alma deslumbrada

E, vendo-te, ó meu suplício,
Tenho a vertigem imensa
De uma criança suspensa
Na borda de um precipício.

Como um sonâmbulo errante
Que vai pela noite afora
Vendo o olhar hesitante
Vagos prenúncios de aurora,

No olhar com que nem me fitas,
Noite, noite sempre escura,
- Cheio de ilusões benditas,
Sonho auroras de ternura.

E do mar, esse infinito amor do poeta pela instável riqueza das ondulações, duas estrofes do poema

Palavras ao Mar
Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Junto da espuma com que as praias bordas,
Pelo marulho acalentada, à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam
Na beirada das ondas – a minha alma
Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio

Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras:
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro;
E as leves garças, como folhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas…

Vicente de Carvalho foi um polímata. Formado em Direito, desempenhou vários cargos na política, teve atividade empresarial e, com o irrestrito apoio de Machado de Assis, pertenceu à Academia Brasileira de Letras. Contudo Santos, sua adorada cidade, pontificou durante toda a existência do poeta.

Saúdo Flávio Viegas Amoreira pela organização da preciosa homenagem, convidando neste espaço o leitor atento a consultar artigo da professora e tradutora Aurora Bernardini sobre o livro em apreço, publicado em “Estado da Arte” de O Estado de São Paulo (25/03/2025).

“Vicente de Carvalho (1866-1924), one of the most important Brazilian poets, has been honored in the year of his centenary by a precious book organized by the poet, writer and literary critic Flávio Viegas Amoreira.