Navegando Posts publicados em junho, 2025

Tchaikovsky e Debussy

“Eu sou russo, russo, russo até a medula!
(carta de Tchaikovsky ao seu irmão Modeste)

Poderia não haver ligação de programa dedicado a Piotr Illitch Tchaikovsky (1840-1893) e Claude Debussy (1862-1918). Tênue razão, se considerarmos apreciação feita pelo compositor russo a uma primeira peça para piano criada por Debussy, a “Danse Bohémiemme” (1880). A protetora de Tchaikovsky, Nadejda von Meck (1831-1894), viúva do construtor-proprietário das duas primeiras ferrovias russas, admiradora inconteste do compositor, proporcionou-lhe a tranquilidade financeira durante muitos anos. Em duas temporadas seguidas, durante as férias escolares de verão (1880-1881), Nadejda von Meck teve a presença do jovem Claude na Rússia como acompanhador ao piano e orientador de alguns dos seus seis filhos e seis filhas. Envia ao seu protegido a primeira composição para piano do jovem compositor francês, a “Danse Bohémienne”. Sem jamais ter conhecido Tchaikovsky, apenas tendo mantido vastíssima correspondência, dele recebe comentário sobre a peça: “Uma bonita obra, mas muito curta. Nenhuma ideia que esteja desenvolvida até o fim. A forma é estranha e carece de unidade”. A inclusão no “Sexto Recital” de outras três curtas e belas peças de Debussy, compostas até 1891, evidencia uma linguagem ainda distante das magníficas criações a partir dos anos 1890. Minha mulher Regina interpretará quatro peças do compositor francês desse primeiro período. Debussy manteria, a partir do final do século, um descrédito relacionado às composições de Tchaikowsky. Um dos “Recitais privés” em 2026 será inteiramente dedicado às obras maiúsculas de Claude Debussy.

As três peças do “Álbum para crianças” op. 39 (1878), coletânea com 24 peças, referem-se a três “estágios” de uma boneca: a boneca doente (6), a morte da boneca (7) e a nova boneca (9). Considere-se aquilo que Léon Davydov, sobrinho de Tchaikovsky e conservador do museu que leva o nome do seu tio em Klin, gravou e enviou ao musicólogo Michel-Rostislav Hofmann (1915-1975): “Toda a minha infância é inseparável da lembrança de Piotr Illitch, que até 1885 viveu constantemente na família de sua irmã Alexandra Davydov, ou seja, minha mãe. Nós o adorávamos. Colocava toda a sua alma em tudo o que fazia, mesmo quando se divertia com as nossas brincadeiras infantis. Ele organizava espetáculos dos quais meus irmãos e minhas irmãs participavam em diversas funções. Impossível não o amar, graças à sua luminosidade, generosidade, seu caráter alegre, tão diferente de sua música, entendida como melancólica”. O depoimento do sobrinho de Tchaikovsky relacionado às crianças contrasta com a realidade do compositor, inclinado à depressão nervosa.

“As Estações” de Tchaikovsky, compostas entre 1875 e 1876, atenderam ao pedido de Nikolai Matveïevitch Bernard, editor de uma revista mensal sobre música de São Petesburgo, que fazia publicar partituras como suplemento do periódico. Duas peças do compositor já tinham sido publicadas em 1873, mas, sob a sugestão do editor, Tchaikovsky compôs mensalmente uma peça, completando assim os meses do ano. Há testemunhos referentes à feitura rápida de cada criação da coletânea. O editor Nikolai Bernard, que sugeriu o título “As Estações”, selecionou para cada mês epígrafes escritas por poetas russos. Ciclo completo, a edição ficou disponibilizada para os assinantes, “As Estações op. 37ª”. Frise-se que o op. 37 corresponde à extensa e, assim entendo, magnífica “Grande Sonata em Sol Maior”, composição infelizmente pouco frequentada pelos pianistas. Lembraria que no centenário da morte de Tchaikovsky, em 1983, apresentei durante o Festival de Campos do Jordão, no Teatro Cultura Artística – recitais também foram realizados em São Paulo – , “As Estações”, a “Grande Sonata em Sol Maior” e “Dumka”.

“Dumka” – cenas rústicas russas – é uma das mais felizes criações para piano de Tchaikovsky. A peça descortina várias motivações voltadas ao sentimento russo. Melodias contrastantes dão espaço às minivariações temáticas, processos que levam a um estágio feérico a anteceder uma cadência de concepção virtuosística. Tratamentos outros encaminham Dumka ao espírito do início da peça, finalizando com acordes de dó menor em fortíssimo. Apesar dos temas originais, o espírito da obra se coaduna em parte com o pensamento do Grupo dos Cinco, formado por Rimsky Korsakov (1844-1908), Modest Moussorgsky (1839-1881), Mily Balakirev (1837-1910), Alexander Borodine (1833-1887) e Cesar Cui (1835-1918), pois seus contemporâneos pregavam, entre outros argumentos, o debruçamento sobre as raízes musicais russas. O musicólogo Michel Rostislav-Hofmann (1915-1975) observa: “Por vezes criticam Tchaikovsky pelo fato de sua música não ser suficientemente russa. Mas o que é realmente ser russo em sua música? Não estão à busca do exotismo a todo custo? Não estariam sido levados a considerar a música russa como um gênero, ao invés de compreendê-la simplesmente como música? Ela é mais ‘erudita’ do que a do Grupo dos Cinco, entretanto a distância que separa Tchaikovsky do cenáculo de Balakirev não é tão grande”.

“Dumka” é uma das obras para piano solo mais interpretadas do compositor, e peça obrigatória no Concurso Internacional Tchaikovsky, em Moscou.

Clique para ouvir, de Tchaikovsky, “Dumka” op. 59, cena rustica russa” (1886), na interpretação de J.E.M. Gravação realizada ao vivo no Conservatório Tchaikovsky em Moscou (Abril de 1962), durante o Concurso mencionado:

https://www.youtube.com/watch?v=S1IQtIpZCJA&t=5s

A respeito da “devoção” de Tchaikovsky à sua amada Rússia, um fragmento de carta do compositor à Nadejda von Meck revela o essencial: “Qual seria a razão para que uma simples paisagem russa, um passeio através do campo, a floresta ou a estepe ao anoitecer emocionem-me a ponto de me fazer deitar sobre a relva, invadido por um torpor, por um élan de amor pela natureza, por esta atmosfera acinzentada de uma inexplicável doçura que me envolve, vinda da floresta, da estepe, do riacho, do vilarejo distante, da humilde pequena igreja – em síntese, de tudo o que constitui a pobre decoração da minha Rússia Natal”.

Glorificado até o advento do modernismo, que depreciou sua música por julgá-la impregnada de um melodismo “exagerado”, Tchaikovsky readquiriu sua posição entre os grandes compositores da História. Inúmeras obras de Tchaikovsky permanecem indeléveis: Concertos para piano e orquestra e violino e orquestra, as Sinfonias 4 e 6, os Balés o Lago dos Cisnes, A Bela Adormecida, O Quebra Nozes e a Ópera Eugène Oneguine. O restabelecimento dos acertos históricos felizmente ainda existe.

The “Sixth Private Recital” will be dedicated to Tchaikovsky. The Russian musician’s appreciation of a composition from  Debussy’s youth  led me to include three other works from Debussy’s first phase.

 

 

 

 

 

 

 

“Mediocridade”

Fala-se que os seres humanos buscam a paz. Será mesmo?
É como quando se diz que os seres humanos buscam a liberdade.
Não, os seres humanos buscam a paz em tempo de guerra,
e a guerra em tempo de paz;
buscam a liberdade quando estão sujeitos à tirania,
e buscam a tirania quando gozam da liberdade.
Miguel de Unamuno (1864-1936)

Ao receber do meu estimado amigo Cláudio Giordano (1939-) o livro “Mediocridade”, primeiramente me surpreendi, pois anteriormente já escrevera um post sobre “Mediocridade”, publicação do autor bem mais reduzida, mas não na essência (vide blog “Mediocridade”, 01/06/2014, há exatamente onze anos).

A presente publicação (Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2024) aborda período crítico de Cláudio Giordano, escritor, editor, tradutor e uma das figuras culturais mais íntegras que conheci. Cético, pessimista e agnóstico, Giordano tem convicções aparentemente serenas sobre a Humanidade, o seu transcurso através dos séculos e o desvirtuamento acentuado, máxime nos últimos tempos. O mundo em plena crise, sem possibilidades de melhora, muito pelo contrário, em acentuado esgarçamento. Contudo, acredito que “Mediocridade” é um título que na realidade não condiz, data venia, com o substancioso material literário que desfila pelo livro, fruto do pensamento de luminares da história da Humanidade. Não obstante, o leitor entenderá o tempo de desalento vivido pelo sensível escritor e editor.

Tem-se, à guisa de Prefácio, texto de Plínio Martins Filho, notável editor, que sublinha a trajetória cultural do seu dileto amigo. Traça com precisão a figura de Giordano: “Editor singular, Cláudio faz de seu ofício uma devoção. Trabalhador incansável, solitário e obstinado, empenha-se em descobrir relíquias bibliográficas, que por vezes imprime e faz circular entre amigos”. Plínio Martins Filho interpreta o título da presente publicação: “No caso desse editor e daqueles que desfrutam de sua amizade, remete à expressão, comumente atribuída a Aristóteles, in médio virtus est (no meio está a virtude)”.

A anteceder os inúmeros textos elaborados por figuras que permanecem na história desde a antiguidade, Giordano apresenta, após breve explicação, sete escritos curtos que refletem seu posicionamento frente ao mundo em que vivemos e suas reflexões, por vezes ácidas, dimensionam o pensador que, após uma existência mergulhada nos livros, mormente raros, pois bibliófilo por vocação, observa a Humanidade à deriva, em estado crítico. Se admite avanços sensíveis do homem sobre a Terra, considera que “…sob a óptica da razão o ser humano não se encontrou e age cada vez mais irracionalmente, levado pela força do egoísmo e de sua incrível inteligência”. Ao mencionar “O Homem Medíocre”, do escritor ítalo-argentino José Ingenieros (1877-1925), comenta: “Esse livro acompanhou-me até bem pouco tempo e cheguei a ter uma edição original castelhana, mas jamais o li. Creio que receava ver-me enquadrado entre os medíocres e devo ter criado uma couraça semiconsciente que me tolheu sua leitura; com certeza te-lo-ei folheado – se o fiz, apagou-se-me da memória qualquer registro do seu conteúdo”. Abro um brevíssimo parêntesis para dizer que meu Pai nos fez ler na juventude o livro citado, pois afirmava que não gostaria de ter filhos medíocres. A mensagem de Ingenieros ficaria gravada indelevelmente na mente dos seus quatro filhos.

Há nesses minicapítulos introdutórios a presença do cético consciente, que entende que desde a adolescência caminhamos para a morte. “Ignorando se há alguma coisa depois desta vida, entristeço-me; e mais triste fico em vendo como as pessoas não se conscientizam de que, independentemente de existir ou não uma continuação, nossa vida é única e deveria ser realizada em toda sua gratuidade…”. Após uma primeira apresentação de “subsídios”, textos extraídos de figuras fundamentais para a cultura humanística, como Platão, Thomas More, Jean-Jacques Rousseau, Cervantes, Étienne de La Boétie, Nikos Kazantzákis…, a sessão “Retalhos” evidencia um Cláudio Giordano ainda mais cáustico em relação aos caminhos da civilização, a evidenciar todas as possibilidades destrutivas vindas dos poderosos e as impossibilidades de uma “salvação”, apesar de ratificar a inteligência humana. Alguns textos apresentados numa segunda sessão de “subsídios”, redigidos igualmente por autores ilustres, servem de amparo para ratificar muitas das posições de Giordano voltadas à morte: Arthur Koestler, Miguel de Unamuno, Eugène Ionesco, Augusto Forel, Machado de Assis…

Agnóstico, Giordano afirma ser “hoje convicto de que minha inteligência é absolutamente incapaz de afirmar a existência ou não-existência de Deus. E fé não tenho. Não tenho fé em Deus, isto é, não creio pura e simplesmente que ele exista, pois a minha inteligência não tem a mínima capacidade de concebê-lo”. Explica as razões: “O Deus que a mim faz sentido jamais criaria um universo tão contraditório como este em que vivemos, povoado de dor, de atrocidades, de seres que se devoram ou se matam, seja por instinto inelutável seja por crueldade, vale dizer, por uma ação voluntária”. Em suas reflexões, saliento o seu pensamento sobre a razão: “Razão para mim é a capacidade do animal humano de, tendo consciência de si, do habitat em que está inserido e do universo; enxergando, desvendando e manipulando as forças da natureza, e delas podendo extrair benefícios para sua própria existência – valer-se dessas vantagens todas para estabelecer uma qualidade de vida que lhe dê prazer, em convívio harmonioso com seus semelhantes”. Entende Giordano que o mundo carece de compaixão, mas que não será ela que trará solução para o sofrimento da humanidade.

Nos estertores de “Mediocridade”, Giordano apresenta ilustrações – como redenção? –, “imagens primitivas que dessem ideia plausível da fisionomia de Cristo”. Trata-se do trabalho de Thomas Heaphy que, na obra The Likeness of Christ (A figura de Cristo), “articula seu trabalho com base na seleção de imagens primitivas que encontrou e reproduz no livro”.

No “Epílogo” do precioso livro, Cláudio Giordano se desvela por completo, finalizando: “Posto tudo isso e tendo subjacente carradas de objetividades expostas à exaustão nos cartapácios de Harari e quejandas,

Já não consigo dar gracias a la vida;
E porque A eutanásia não está disponível,
resta recolher-me em minha mediocridade e solidão
E aguardar o fim do meu tempo,
Torcendo para que seja sem dor nem sofrimentos”

“Mediocridade” foi um dos livros que mais me impactou nesses últimos anos. O planeta em crise e, para aqueles que viveram as tantas décadas sob o manto da Alta Cultura, como assim propalam em Portugal, assistir na atualidade à hecatombe cultural, dos costumes, da moralidade, da política e suas consequências, hecatombe das entranhas da civilização que, divulgada abertamente sem pejo por vários meios de comunicação, esfacela a célula mater, a família formadora das mentes das novas gerações, a provocar no cerne, o desalento de figura expressiva e de dimensão ainda não totalmente avaliada, caso específico de Cláudio Giordano.

Recomendo vivamente o livro em apreço.

In his second book with the same title, “Mediocrity”, the editor and bibliophile Cláudio Giordano outdoes himself and presents a collection of selected literary texts with their authors’ thoughts on humanity. Giordano also presents his thoughts on existence and death, even though he is an agnostic.