Tchaikovsky e Debussy

“Eu sou russo, russo, russo até a medula!
(carta de Tchaikovsky ao seu irmão Modeste)

Poderia não haver ligação de programa dedicado a Piotr Illitch Tchaikovsky (1840-1893) e Claude Debussy (1862-1918). Tênue razão, se considerarmos apreciação feita pelo compositor russo a uma primeira peça para piano criada por Debussy, a “Danse Bohémiemme” (1880). A protetora de Tchaikovsky, Nadejda von Meck (1831-1894), viúva do construtor-proprietário das duas primeiras ferrovias russas, admiradora inconteste do compositor, proporcionou-lhe a tranquilidade financeira durante muitos anos. Em duas temporadas seguidas, durante as férias escolares de verão (1880-1881), Nadejda von Meck teve a presença do jovem Claude na Rússia como acompanhador ao piano e orientador de alguns dos seus seis filhos e seis filhas. Envia ao seu protegido a primeira composição para piano do jovem compositor francês, a “Danse Bohémienne”. Sem jamais ter conhecido Tchaikovsky, apenas tendo mantido vastíssima correspondência, dele recebe comentário sobre a peça: “Uma bonita obra, mas muito curta. Nenhuma ideia que esteja desenvolvida até o fim. A forma é estranha e carece de unidade”. A inclusão no “Sexto Recital” de outras três curtas e belas peças de Debussy, compostas até 1891, evidencia uma linguagem ainda distante das magníficas criações a partir dos anos 1890. Minha mulher Regina interpretará quatro peças do compositor francês desse primeiro período. Debussy manteria, a partir do final do século, um descrédito relacionado às composições de Tchaikowsky. Um dos “Recitais privés” em 2026 será inteiramente dedicado às obras maiúsculas de Claude Debussy.

As três peças do “Álbum para crianças” op. 39 (1878), coletânea com 24 peças, referem-se a três “estágios” de uma boneca: a boneca doente (6), a morte da boneca (7) e a nova boneca (9). Considere-se aquilo que Léon Davydov, sobrinho de Tchaikovsky e conservador do museu que leva o nome do seu tio em Klin, gravou e enviou ao musicólogo Michel-Rostislav Hofmann (1915-1975): “Toda a minha infância é inseparável da lembrança de Piotr Illitch, que até 1885 viveu constantemente na família de sua irmã Alexandra Davydov, ou seja, minha mãe. Nós o adorávamos. Colocava toda a sua alma em tudo o que fazia, mesmo quando se divertia com as nossas brincadeiras infantis. Ele organizava espetáculos dos quais meus irmãos e minhas irmãs participavam em diversas funções. Impossível não o amar, graças à sua luminosidade, generosidade, seu caráter alegre, tão diferente de sua música, entendida como melancólica”. O depoimento do sobrinho de Tchaikovsky relacionado às crianças contrasta com a realidade do compositor, inclinado à depressão nervosa.

“As Estações” de Tchaikovsky, compostas entre 1875 e 1876, atenderam ao pedido de Nikolai Matveïevitch Bernard, editor de uma revista mensal sobre música de São Petesburgo, que fazia publicar partituras como suplemento do periódico. Duas peças do compositor já tinham sido publicadas em 1873, mas, sob a sugestão do editor, Tchaikovsky compôs mensalmente uma peça, completando assim os meses do ano. Há testemunhos referentes à feitura rápida de cada criação da coletânea. O editor Nikolai Bernard, que sugeriu o título “As Estações”, selecionou para cada mês epígrafes escritas por poetas russos. Ciclo completo, a edição ficou disponibilizada para os assinantes, “As Estações op. 37ª”. Frise-se que o op. 37 corresponde à extensa e, assim entendo, magnífica “Grande Sonata em Sol Maior”, composição infelizmente pouco frequentada pelos pianistas. Lembraria que no centenário da morte de Tchaikovsky, em 1983, apresentei durante o Festival de Campos do Jordão, no Teatro Cultura Artística – recitais também foram realizados em São Paulo – , “As Estações”, a “Grande Sonata em Sol Maior” e “Dumka”.

“Dumka” – cenas rústicas russas – é uma das mais felizes criações para piano de Tchaikovsky. A peça descortina várias motivações voltadas ao sentimento russo. Melodias contrastantes dão espaço às minivariações temáticas, processos que levam a um estágio feérico a anteceder uma cadência de concepção virtuosística. Tratamentos outros encaminham Dumka ao espírito do início da peça, finalizando com acordes de dó menor em fortíssimo. Apesar dos temas originais, o espírito da obra se coaduna em parte com o pensamento do Grupo dos Cinco, formado por Rimsky Korsakov (1844-1908), Modest Moussorgsky (1839-1881), Mily Balakirev (1837-1910), Alexander Borodine (1833-1887) e Cesar Cui (1835-1918), pois seus contemporâneos pregavam, entre outros argumentos, o debruçamento sobre as raízes musicais russas. O musicólogo Michel Rostislav-Hofmann (1915-1975) observa: “Por vezes criticam Tchaikovsky pelo fato de sua música não ser suficientemente russa. Mas o que é realmente ser russo em sua música? Não estão à busca do exotismo a todo custo? Não estariam sido levados a considerar a música russa como um gênero, ao invés de compreendê-la simplesmente como música? Ela é mais ‘erudita’ do que a do Grupo dos Cinco, entretanto a distância que separa Tchaikovsky do cenáculo de Balakirev não é tão grande”.

“Dumka” é uma das obras para piano solo mais interpretadas do compositor, e peça obrigatória no Concurso Internacional Tchaikovsky, em Moscou.

Clique para ouvir, de Tchaikovsky, “Dumka” op. 59, cena rustica russa” (1886), na interpretação de J.E.M. Gravação realizada ao vivo no Conservatório Tchaikovsky em Moscou (Abril de 1962), durante o Concurso mencionado:

https://www.youtube.com/watch?v=S1IQtIpZCJA&t=5s

A respeito da “devoção” de Tchaikovsky à sua amada Rússia, um fragmento de carta do compositor à Nadejda von Meck revela o essencial: “Qual seria a razão para que uma simples paisagem russa, um passeio através do campo, a floresta ou a estepe ao anoitecer emocionem-me a ponto de me fazer deitar sobre a relva, invadido por um torpor, por um élan de amor pela natureza, por esta atmosfera acinzentada de uma inexplicável doçura que me envolve, vinda da floresta, da estepe, do riacho, do vilarejo distante, da humilde pequena igreja – em síntese, de tudo o que constitui a pobre decoração da minha Rússia Natal”.

Glorificado até o advento do modernismo, que depreciou sua música por julgá-la impregnada de um melodismo “exagerado”, Tchaikovsky readquiriu sua posição entre os grandes compositores da História. Inúmeras obras de Tchaikovsky permanecem indeléveis: Concertos para piano e orquestra e violino e orquestra, as Sinfonias 4 e 6, os Balés o Lago dos Cisnes, A Bela Adormecida, O Quebra Nozes e a Ópera Eugène Oneguine. O restabelecimento dos acertos históricos felizmente ainda existe.

The “Sixth Private Recital” will be dedicated to Tchaikovsky. The Russian musician’s appreciation of a composition from  Debussy’s youth  led me to include three other works from Debussy’s first phase.