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Natal deste ano em período complexo no país

De todas as histórias que nos contava
guardei apenas uma vaga e imperfeita lembrança.
Porém, uma delas ficou tão nitidamente gravada em minha memória,
que sou capaz de repeti-la a qualquer momento
– a pequena história do nascimento de Jesus.
Selma Laferlöf (1858-1940)  Prêmio Nobel de Literatura (1909)
(“Lendas Cristãs”)

O ano conturbado que se escoa não propiciou o clima natalino de tempos passados. Vê-se inclusive num pormenor, a diminuição sensível da iluminação natalina nos prédios da cidade, apesar dos esforços da Prefeitura de São Paulo, através da Secretaria Municipal de Cultura e da Secretaria de Relações Internacionais, no que concerne ao Centro Histórico da capital do Estado. Sob aspecto outro, noticiários televisivos e jornalísticos se concentram nas disputas ideológicas exacerbadas no Brasil, o relacionamento difícil entre os Poderes e, talvez, a maior chaga que acomete o país na atualidade, a insegurança do cidadão frente à violência que se instalou em todos os recantos do imenso território, sem que ações decisivas sejam tomadas.

Décadas atrás, consagrava-se majoritariamente, neste período a anteceder o Natal, noticiário à própria relevância do nascimento de Cristo e à confraternização a festejá-lo, nela contidos os presentes aos miúdos e a ceia a unir as pessoas. Ouve-se e lê-se, neste período tão caro para a cristandade, noticiário a contrapor as mazelas políticas, a contenda acentuada entre os Poderes e as posições antagônicas de jornalistas, a depender dos canais de comunicação. Está a parecer que o Natal, com toda a sua mística e significado para milhões de brasileiros, passou a ser um pormenor na mídia. Se mais acentuadamente o Natal é invocado neste exato período pelos meios de comunicação, é-o mercê do comércio, que recebe um número acentuado de compradores.  Acrescente-se que, nas comunidades religiosas, igrejas, capelas e sobretudo nos lares cristãos, a chama natalina está presente, mas o pensamento da mídia volta-se polarizado para essa disputa ideológica interminável e insana. Mormente neste Natal tem ficado transparente a opção da maioria da imprensa escrita e falada. Contenda traz audiência e a mídia atenta a tem como sustentáculo.

Sob outra égide, o quase que absoluto desaparecimento da troca de cartões de Natal assinala uma realidade. Mensagens de paz vinham acompanhadas de figuras pertencentes ao universo natalino. Tantos desses cartãoes continham votos de Natal redigidos a mão e assinados, diferentes daqueles das inúmeras empresas que também enviavam cartões, esses impessoais, com frases padronizadas e rubricadas pelas organizações. Pondere-se que a internet é uma das responsáveis pela descontinuidade dos cartões, assim como os Correios em pleno declínio.

Clique para ouvir, de J.S.Bach-Kempff, o coral “Acorde, a voz está soando”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=0nQUzeqdu4s

Independentemente dessa situação, os que professam a fé cristã nas suas diversas ramificações cultuam com intensidade o período natalino. Certamente a Praça de São Pedro, no Vaticano, estará lotada durante a célebre Missa do Galo. Catedrais, igrejas e capelas em todo o mundo cristão deverão receber os fiéis. Templos evangélicos receberão os seus seguidores, que cultuarão a data. Todavia, será no interior dos lares que, singelamente, o nascimento de Jesus será celebrado, a partir, na realidade, do que reza o versículo 20 do capítulo 18 do Evangelho segundo São Mateus: “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles”. Creio ser este um dos mais expressivos versículos dos evangelhos, a dar a dimensão da presença do Cristo, do berço à maturidade, acompanhando a saga humana…

Na Catedral de Autun (séc. XII), em França, há em uma das magníficas esculturas, a representação da oferenda dos três Reis Magos à Sagrada Família, na qual São José está com a mão direita apoiada no queixo e o cotovelo sobre a perna dobrada (Saint Joseph pensif). Em 1974, encontrei, em uma feira popular em Minas Gerais, a Sagrada Família em terracota. São José está com o punho direito a sustentar o queixo. Surpreendi-me ao lembrar de Saint Joseph Pensif, quando visitei a Catedral francesa em 1959. Era a segunda e última vez que presenciava a mesma postura.

Clique para ouvir, de J.S.Bach-Myra Hess, o coral “Jesus alegria dos homens”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=flrkpW5L4KQ

The most important date in Christianity, due to the insane ideological polarisation prevailing in the country, received little coverage in the media in general. However, authentic Christians celebrate the birth of Christ with faith, intensity and hope.

 

 

 

A interpretação em causa

Consiste o progresso no regresso às origens:
com a plena memória da viagem.
Agostinho da Silva (1906-1994)
(Espólio)

O blog anterior apresenta tema polêmico e deriva da pergunta de jovem músico sobre progresso na interpretação musical. Tema controverso, motivou uma série de mensagens, curtas na grande maioria, majoritariamente concordando com a ausência do progresso nessa área. Poucas entendendo a interpretação como progresso. Acredito que, em muitos casos, a interpretação pianística da música clássica, erudita ou de concerto possa sofrer influências, por vezes tênues, advindas das várias modalidades de músicas voltadas ao grande público mais jovem e realizadas em grandes espaços abertos, precedidas por fantástica divulgação. Traduz-se mormente no vestuário e no gestual de alguns super ventilados pianistas clássicos. É evidente que, nesses casos em especial, a interpretação possa sofrer alterações, principalmente quanto aos andamentos mais acelerados em criações já compostas nesse propósito, para gáudio de parte dos que frequentam as salas de concerto. Há também casos de excelentes pianistas do repertório consagrado que frequentam com insistência gêneros de outra índole. Determinados atributos da música popular vazam periodicamente quando no repertório-mor do pianista.

Num blog bem anterior, “Progresso em Arte”, http://blog.joseeduardomartins.com/index.php/2014/09/27/progresso-em-arte/, já abordei a temática, igualmente a considerar não haver progresso na criação musical. Sob aspecto outro, quantidade enorme da música contemporânea é apresentada em festivais específicos apenas uma vez e fenece. Razões teve o compositor francês Serge Nigg (1924-2008) que, nos estertores da existência, afirmava que, contrariamente ao que ocorria num passado em que dialogava com intérpretes, compositores e musicólogos, nesses tempos finais só era apresentado a jovens compositores. No blog mencionado acima citei pertinente observação de Mario Vargas Llosa (1936-1925) que, à certa altura, não mais visitava Bienais de Arte “pelo descompromisso com a essência do termo, arrivismo de autores a qualquer custo e banalização conceitual da arte na atualidade”. Ambos os posicionamentos apenas ratificam que a obra-prima, desde o remoto passado à contemporaneidade, permanece indelével. Não há o progresso em direção aos tempos atuais, mas a aparição de novas técnicas e tendências, sendo que  poucas permanecerão. Se existisse progresso na arte musical o repertório do passado não seria largamente majoritário nas programações.

O insigne compositor e regente Pierre Boulez (1925-2016) reestruturou várias obras, dando-lhes novas versões. Denominaria works in progress (trabalhos em curso), que também poderiam ser considerados, com outras palavras, versões, adaptações, transcrições. Em entrevista ao jornal Le Monde (27/03/1985), afirmaria: “Não estou em paz se não estiver satisfeito, e como posso estar? Na composição, por exemplo, como conseguir o equilíbrio musical, como fazer com que a realização se apodere do especulativo e lhe dê um conteúdo efetivo?” (Le Monde, 27/03/1985), frase que bem exemplifica a perene curiosidade do compositor no desiderato de dar novas configurações a determinadas criações. Pli selon pli (1957) teve várias versões para diferentes formações, sendo a definitiva na década de 1990. Outras obras seguiram o mesmo roteiro.

De relevado interesse a longa exposição de Gildo Magalhães, Professor titular jubilado da FFLECH-USP na área da História da Ciência.

“Esta é de fato uma pergunta que suscita muita reflexão. Por um lado, há a questão da interpretação, onde é difícil avaliar como eram as interpretações antes das gravações; há apenas as descrições de pianistas fabulosos como se escrevia a respeito de Liszt; hoje podemos comparar o Chopin de Hoffmann com o de Horowitz e assim por diante. Já a composição se presta ao filtro do tempo, como você sempre assinala, ainda que de vez em quando alguém seja salvo do soterramento a que foi submetido e reaparece na sua grandeza – podemos dizer que é também uma questão de tempo, mas com retardo.

Uma área estética onde há alguns autores que acreditam no progresso parece ser nas artes plásticas, mas é sempre uma celeuma. Um critério proposto é o de que a arte serve para elevar o espírito humano, elevar num sentido amplo, que inclui aproximar o homem da divindade (alguma divindade) e de aproximar os homens uns dos outros – aliás, o sentido dado por Barenboim para sua orquestra do Divã Oriental-Ocidental (título que é uma referência à obra poética a 4 mãos de Goethe e Schiller)”.

Ao ter mencionado no post anterior o avião alemão Junkers Ju 52, recebi do meu querido irmão, o ilustre jurista Ives Gandra Martins, mensagem de interesse: “Da mesma forma que evoluímos dos barulhentos ‘junkers’ – voei num com papai, mas não me lembro do barulho, mas só da empolgação do voo em 1943 – para os silenciosos A-380. Creio que também na interpretação da arte há evolução. A própria ‘Sinfonia Clássica’ de Prokofiev, em que ele pensava reviver Mozart, hoje, muitas vezes é interpretada com toques diferentes propostos por Prokofiev”.

Diria que há evolução a atingir os devidos fins, melhores ou, tantas vezes, piores resultados. Todavia, a obra-prima que é a “Sinfonia Clássica” permanecerá, ratificando o conceito do não progresso da obra, mas tendências quanto à interpretação. Estou a me lembrar de fato curioso ocorrido num Congresso sobre Música em Salvador nos anos 1990. Como em determinada sessão o professor que deveria presidi-la faltou, convidaram-me para a tarefa. Em certo momento, utilizei a palavra evolução e um antropólogo no auditório imediatamente observou que o termo não mais poderia ser empregado. Felizmente, estava com um livro recente em inglês em minha pasta que abordava a evolução do cravo para o pianoforte e posteriormente para o piano.

Certamente haverá ao longo da história defensores das duas correntes concernentes às Artes nesse quesito progresso. A dialética sempre presente.

I’ve received countless messages on the subject of Progress in the Art of Music. There will always be considerations about progress and evolution, the latter of which is banned in certain areas.

 

Alguns aspectos sensíveis

Na Arte, a obra em si é a ideia geral
- é simultaneamente uma fórmula da mente e uma aplicação da sensibilidade.
Georges Migot (1891-1976), compositor, poeta e pintor.

Foram muitas as mensagens recebidas a respeito do blog anterior, quase todas breves, outras abordando um certo pessimismo de minha parte quanto aos intérpretes atuais. Para esses últimos, diria ter sido interpretado equivocadamente. No último blog preciso os “dons inalienáveis” de muitos pianistas atuais, apenas considero que, sem generalizar, a plena atenção na transmissão da mensagem musical no ato da apresentação está a ser compartilhada com interesses outros, mundanos alguns, teatrais outros.

Recentemente, mensagem de um jovem músico trazia uma pergunta sobre matéria prolixa, que motivou inúmeros debruçamentos através da História abordando as mais variadas atividades humanas. No caso específico: “Haveria progresso na interpretação musical?”. O tema é bem controvertido, pois há correntes que sustentam o progresso em arte, outras que discordam. Argumentos não faltam. Independentemente de inúmeras leituras sobre a temática, lembrei-me de um livro percorrido há décadas por este leitor. Tratava-se de ensaios do compositor francês Georges Migot, “Essais commentés et complétés en vue d’une Esthétique Générale” (Paris, Les Presses Modernes, 1937), recolhidos por Jean Delaye. Polêmico, o livro aborda, entre vários ensaios, “Progresso em Arte”, chamando minha atenção para as diversas proposições apresentadas a partir de um histórico bem estruturado pelo autor desde a Grécia Antiga. Inicialmente, Georges Migot escreve “Não há progresso em Arte, existem sim cumes que podem atingir as mesmas alturas. A palavra progresso não pode ser aplicada para comparar duas obras de arte”. Para o autor, “toda obra-prima é um milagre, mas não devemos esquecer que todo milagre mata a fé, desde que queiramos impô-la como dogma”. Tem interesse o argumento de que não há períodos de decadência na Arte, mas sim “período de turbulência quando artistas vislumbram a continuação de um caminho”.

Um aspecto, já esboçado em vários blogs através dos anos, refere-se à obra contemporânea, tantas vezes sem raízes, dir-se-ia produzida por “livre atirador”. Quantas não são hoje as tendências nas artes visuais e na composição musical sem os alicerces – o conhecimento histórico – que poderiam torná-las menos vulneráveis? Tive o privilégio de apresentar em primeira audição mundial bem mais de 100 composições, que acredito permanecerão. Mencionaria apenas, como exemplos, criações de Gilberto Mendes, Almeida Prado, François Servenière, Jorge Peixinho, Eurico Carrapatoso, Ricardo Tacuchian, Paulo Costa Lima… Gravei CD pelo selo belga De Rode Pomp, dele constando criações de dez compositores da Bélgica, Estudos magníficos de várias correntes composicionais, todas bem fundamentadas.

Clique para ouvir, do compositor belga Daniel Gistelinck (1948-), “Résonances”, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=4XflfeoeAl8&t=89s

Quando sentia o “achismo” composicional, declinava polidamente. E ele existe. Em blogs bem anteriores relatei um fato que ocorreu em Londres durante um Congresso sobre Debussy na década de 1990. Um jovem compositor, sabendo do meu projeto de Estudos para piano, ofereceu-me um com dedicatória. Ao lê-lo, verifiquei ser impossível executá-lo, pois ultrapassava qualquer lógica relacionada ao técnico-pianístico. Perguntei se alguma vez compusera uma Fuga. Disse-me que nunca pensara, pelo fato de ser uma forma ultrapassada. Na realidade, já não é mais praticada, mas torna-se base fundamental para o conhecimento dos caminhos das transformações formais. Lembremo-nos que os dois cadernos de Prelúdios e Fugas de “O Cravo Bem Temperado” (1722-1744), de J.S.Bach (1685-1750), continuam a ser interpretados como obras-primas absolutas e criações basilares na formação de um pianista.

Georges Migot há quase um século já abordava o problema desses achismos. “Constatamos efetivamente que, quando uma obra surge oferecendo um estilo novo, propicia o nascimento de outras obras defendidas pelo esnobismo, obras sem valor que são sustentadas por todos aqueles que não sabem sequer adivinhar a origem da ordenação nova”.

Contudo, a honestidade intelectual é um termômetro a ser considerado quando da criação. Migot afirma: “É isto que dá ao artista a possibilidade de continuar a encontrar belas obras novas, ou seja, de captar, graças à sua sensibilidade apurada, relações onde os seus antecessores ainda não as tinham percebido. É talvez algo mais do que um refinamento: uma nova ordem da nossa percepção sensorial”.

Pode-se aplicar a noção de progresso ao vasto campo da ciência e da tecnologia, pois conquistas obtidas fazem esquecer, assim que consagradas, as tentativas anteriores que, sim, serão estudadas como fontes históricas, levando às descobertas que, essas, também tendem a ser superadas com o passar do tempo. Estou a me lembrar das viagens de meu saudoso Pai nos Junkers alemães, aviões com três motores e poucos assentos que faziam a ponte São Paulo – Rio nos anos 1940. Dizia ele que a aeronave era ótima, mas bem barulhenta. Sim, na área da aeronáutica os progressos são constantes e as antigas aeronaves são mantidas em museus ou cemitérios adequados.

A ênfase dada por Georges Migot à inexistência do progresso em Arte fica bem clara quanto às possibilidades da criação musical. Incontáveis composições dos grandes mestres do passado são obras-primas que continuam a ser consagradas. Houve inúmeras alterações nas formas musicais através dos tempos e tendências composicionais surgiram e mais obras-primas foram criadas sucessivamente. Estas independem do século em que foram e são compostas. Elas simplesmente permanecem e exemplos proliferam, como criações de Guillaume Machaut (c.1300-1377), Josquim des Prez (1397-1474), Giovanni Pierluigi Palestrina (c.1525-1594), Claudio Monteverdi (1567-1643) e as incontáveis criadas ao longo dos séculos. O notável escritor português Guerra Junqueiro (1850-1923) já afirmava: “Sim, o crítico dos críticos é só ele – o tempo. Infalível e insubornável. As grandes obras são como as grandes montanhas. De longe, veem-se melhor. E as obras secundárias, essas quanto maior for sendo a distância, mais imperceptíveis se irão tornando”.

Finalmente, quanto à interpretação musical, não entendo progresso na interpretação, mas sim outras abordagens a respeito das obras eleitas. Acredito mesmo que a interpretação dos notáveis pianistas do passado continha lirismo mais autêntico e maior respeito às ideias do compositor. Os andamentos propostos pelos compositores eram majoritariamente seguidos, apesar do emprego do denominado rubato de maneira mais acentuada, mas basicamente inexistia a arbitrariedade. Como mencionei a posição de um diretor francês de importante conservatório chinês, afirmando que dentro de pouco tempo os chineses teriam técnica pianística imbatível quanto à velocidade, acrescentaria que, nesse quesito, pode-se considerar uma “evolução atlética”, tão comum na área esportiva, mas não progresso interpretativo, pois estaríamos a macular a ideia criativa dos compositores do passado no que concerne à dinâmica, à articulação e aos andamentos. Mencionei anteriormente o fato de o público desejar que a renomada pianista chinesa Yuja Wang  execute “O voo do besouro”, de Rimnsky Korsakov, sempre mais rapidamente. Sinais dos tempos.

A young musician wrote to me asking if there had been any progress in piano playing. It reminded me of a book by the French composer Georges Migot (1891-1976), “Essais commentés et complétés en vue d’une Esthétique Générale” (1937), in which, in one of the essays, he denies Progress in Art.