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Um sensível e inusitado gesto de gratidão

Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.

Manoel Bandeira
(“Pensão familiar”)

Figuras ilustres em inúmeras áreas tiveram especial afeto por gatos, cães e pássaros. Inúmeros textos e fotos corroboram o fato. Desde a era das fotografias, são incontáveis as imagens de músicos, pintores, literatos e poetas com seus animais de estimação.

Sob outra égide, o culto à fauna animal em sua extensão, domésticos ou não, encontra-se no Egito, na Antiga Grécia e em outras civilizações e ficou gravado na estatuária, nas pinturas em afresco, cerâmica e outros mais receptores. Cultuar esse zoomorfismo tinha sentido reverencial, máxime aos deuses, dando-lhes a forma necessária a cada destinação.

Meu dileto amigo, o competente editor Cláudio Giordano, tem brindado seus amigos há muito tempo com segmentos literários relevantes. Fê-lo recentemente ao tratar do ‘Grande Sertão Veredas’, de Guimarães Rosa. Poucas semanas atrás, Giordano enviou aos seus leitores a carta que o consagrado pintor, desenhista e poeta Paul Klee escreveu, já nos estertores da existência, a três de seus gatos, que foram fenecendo ao longo. Ela revela o quanto eles lhe foram importantes. Distingue-os, embrenhando-se nas manifestações comportamentais de cada um.

“Queridos Nuggi, Fritzy e Bimbo:

Chegado ao fim da minha vida, dirijo-lhes esta carta para lhes dar conta da importância que tiveram no meu atribulado percurso como pintor.

Creio que não teria chegado onde cheguei como artista do meu tempo sem o amor de vocês e a inspiração que nunca me regatearam.

Fiz questão de mantê-los presentes em tudo quanto fiz, desde as cartas aos poemas, passando, naturalmente, pelos quadros, em que tentei modestamente representá-los.

Vocês acompanharam-me nas horas de sofrimento e incerteza, de exílio e de privação, mas também naquelas que me deram a ilusão da felicidade. Primeiro o meu querido Nuggi, cinzento e meigo, ainda nos anos da juventude; depois, Fritzy, tigrado, brincalhão e matreiro, a que também chamei Fripouille, nos tempos mais intensos da criação pictórica e também do reconhecimento artístico pelo público e pela crítica; por fim, Bimbo, branco e discreto, já nos anos da doença e da decadência física, sempre dedicado, sempre presente, sempre terno e atento.

Agora que estou de partida, levo comigo a recordação do que vocês foram para mim e a convicção de que não teria sido o que fui, nem teria chegado onde cheguei, sem o seu amparo e dedicação. No meu íntimo, sei que voltaremos a encontrar-nos, porque não pode acabar no perecível mundo material e terreno um amor como o nosso.

Eternamente de vocês
Paul Klee”

A literatura e a iconografia destes últimos séculos são ricas no que tange a personalidades da Cultura com seus animais de estimação, muitos deles recebendo o afeto pleno dessas figuras exponenciais. A menção ínfima a essa dedicação se faz necessária:

Charles Baudelaire (1821-1867), em “Le chat”, insere no primeiro verso Viens, mon beau chat, sur mon coeur amoureux; Colette (1873-1954) reverencia os gatos durante toda a existência. Estes adquirem voz. O afeto que a escritora lhes dedicará, a tantos que percorreram sua vida, está presente ao longo de sua obra literária; T.S.Eliot (1888-1965) dedica um livro para crianças com poemas sobre gatos, “Old Possum’s Book of Practical Cats”; Cecília Meireles (1901-1964), no poema “Os Gatos da Tinturaria”, evidencia com maestria a natural nonchalance desses felinos domésticos; Jorge Luis Borges (1899-1986), em “A um Gato”, expõe em versos fulcrais a relação amorosa com seu gato e o último verso evidencia primazia do felino: Eres el dueño de un ámbito cerrado como un sueño.

O compositor português, nascido nos Açores, Francisco de Lacerda (1869-1934), entre as “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste”, percorre extensa fauna e insere “Mon chien et la lune”, acompanhada de sugestiva epígrafe: Viens ici! / Tais-toi! / Que vois-tu? / Des ombres? / Chopin? / Debussy? / Viens ici. / Tais-toi. / Ce sont des Amis à nous. A menção a Debussy faz-me lembrar do afeto de Debussy aos seus cães.

Giacomo Rossini (1792-1868) compôs o divertido “Duetto buffo di due gatti”. Igor Stravinsky (1882-1971) e Dmitri Shostakovich (1906-1975) gostavam de cães e gatos.

O afeto do homem aos animais que com ele convivem, cães e gatos, disseminou-se e ganhou a larga preferência das populações, realidade visível, mormente nas vias e parques das grandes cidades em que são vistos em profusão cães das mais diversas raças, puras ou frutos da miscigenação.

Conheci exemplo de pleno afeto por parte do saudoso amigo e notável compositor Gilberto Mendes (1922-2016). Nos últimos anos de uma vida plena de realizações, Gilberto e sua esposa Eliane tiveram a companhia de Mel, um cão dócil. Aqueles que o visitavam puderam compreender esses laços inefáveis. Viúva, Eliane tem hoje a companhia da sucessora da Mel, Pietra.

Não obstante, lembraria o afeto do compositor russo Mikhail Glinka (1804-1857) pelos pássaros, chegando a ter 16 gaiolas em sua morada. Olivier Messian (1908-1992) os venerava, mas na natureza, e o seu “Catalogue des oiseaux” é obra capital.

Em blog bem anterior escrevi sobre um coleirinha ou papa-capim que viveu em nossa morada 33 anos. Durante minhas teses acadêmicas, em que a madrugada era fiel companheira, o coleirinha entoava o seu delicado canto e estimulava-me a continuar (vide blog: Adeus, coleirinha”, 10/05/2008). Sabedor de sua morte, um amigo me deu dois outros, que nos encantam com os seus chilreios delicados.

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), “Le rappel des oiseaux”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=IAdsA8kvcxI&t=8s

A carta de Paul Klee é ato de gratidão. Documento possivelmente único, pois pormenorizado e desprovido de quaisquer artificialismos, a revelar, sim, o mais sensível afeto.

The remarkable painter and cat lover Paul Klee’s letter to the three cats that accompanied him throughout his life, naming each of them, is full testimony to the most sensitive affection. They are portrayed in many of his paintings, photographs and letters.

Domingos Peixoto e a dedicação a um instrumento basilar

Conhecer melhor a história da nossa História,
neste reencontro com as memórias,
faz-nos compreender decididamente Aveiro
e sermos mais competentes
nos caminhos de construção de mais e melhor futuro.
João Ribau Esteves
Presidente da Câmara Municipal de Aveiro (2018)

A literatura específica sobre o órgão, instrumento que acompanha a cristandade e que, desde a Alta Idade Média, teve desenvolvimento extraordinário, tem títulos significativos e reveladores, mercê também dos constantes “progressos” quanto à sua feitura através dos séculos. A bibliografia extensa revela sempre maravilhamentos, graças à abrangência e à majestade do instrumento. Se o cravo, em suas várias feituras, sofreu  modificações, mas permaneceu silente durante o século XIX; se os instrumentos de corda continuaram basicamente sem alterações; se o piano se beneficiou da revolução industrial, que resultou na utilização do aço e na tábua harmônica mais forte, a resistir à tensão das cordas; o órgão estaria sempre in progress devido à sua complexidade, a envolver uma quantidade enorme de materiais, apresentando-se, certamente, como o mais completo entre todos os instrumentos. Entre as suas insofismáveis qualidades tem-se a infinita variedade de timbres.

Domingo Peixoto, professor de órgão, estudioso perspicaz do seu instrumento eleito, já legou vários trabalhos literários relevantes sobre o tema, além de coordenar  temporadas organísticas e dedicar-se à restauração instrumental. Resenhei neste espaço uma obra sua anterior (vide blog: “Júlia D’Almendra e o Movimento Organístico em Portugal”, 09/09/2017).

Nessa derradeira turnê à Europa, recebi de Domingos Peixoto um de seus livros, este a pormenorizar “Os Órgãos Históricos de Aveiro” (Câmara Municipal de Aveiro, 2018). O autor primeiramente relata que registros da presença do órgão em Portugal remontam às primeiras décadas do século XIV. Na história de Aveiro menciona a presença de três comunidades religiosas fundadas durante um século, de 1423 a 1524. O instrumento permaneceu durante os séculos vindouros a ser indispensável nos ofícios religiosos, num amálgama com o coro. O mais antigo órgão barroco em Aveiro, da igreja da Vera Cruz, tem a data no someiro, 1753, instrumento construído por Juan Fontanes de Maqueyra.

O autor observa que, já na primeira metade do século XVIII, “o organista terá cada vez mais a função de acompanhar o canto litúrgico, cujo texto passará progressivamente a ser cantado na íntegra. Começará, assim, a desenhar-se um novo cenário no palco litúrgico: o diálogo passará a ser não entre o órgão e o coro, mas entre dois grupos de cantores, ou entre os cantores e uma comunidade/assembleia, que o organista acompanhará de forma contínua”.

Domingos Peixoto mostra-se didata vocacionado, pois desde o primeiro capítulo, “Contextualização”, o leitor se familiariza com os porquês do órgão na comunidade em três basilares contextos: socioeconômico, religioso e litúrgico. Em todos os outros nove capítulos referentes a órgãos de Aveiro, Peixoto historia e pormenoriza, da procedência à feitura, revelando intimidade com todo o material utilizado em cada órgão, fruto da engenhosidade de organeiros, fato que amplia enormemente a pesquisa, mercê da diversidade. Se o resultado sonoro tem certa similaridade entre os vários instrumentos, a estrutura de cada órgão determinaria timbres personalizados. Peixoto detém-se nessa investigação criteriosa, na diversificação dos tubos verticais nas suas variadas dimensões; naqueles em chamada, geralmente não uniformes no que tange ao direcionamento das cornetas, podendo ser horizontais, verticais ou com inclinações diversas; na tubaria como um todo. A ausência de pedaleira nos órgãos ibéricos, que inibe os graves mais profundos, talvez tenha privilegiado a feitura de tubos menores para determinados órgãos. Atento aos registos de cada instrumento, pormenoriza-os. As talhas barrocas em madeira, realizadas por mestres especializados, merecem também a atenção do autor.

Domingos Peixoto reserva especial atenção ao “Órgão Grande” da Igreja de Jesus. Escreve: “Lançada a primeira pedra da igreja em 1462 com a presença de D. Afonso V, o edifício do novo mosteiro seria inaugurado solenemente em 31 de Dezembro de 1464 e 1 de Janeiro de 1465. O monarca deslocar-se-ia de novo à Vila de Aveiro em 1466 para assistir à profissão das princesas religiosas. As últimas décadas do século XV foram marcadas pela presença da Infanta Dona Joana entre 1472 e 1490, ano do seu falecimento, e pelo despertar do culto à Santa Princesa”. Na realidade, cultuada, Santa Joana Princesa é apenas reconhecida pela Igreja Católica como beata.

O autor lamenta estar o “Órgão Grande” desativado. Comenta: “Uma particular interpelação é feita pela majestosa obra de arte que representa o ‘Órgão grande’ da igreja de Jesus – o ex-libris da nossa vida organística – cuja opulência rivaliza com o esplendor setecentista das festas em honra de Santa Joana; mas, dele subsiste in loco apenas a fachada”.

Domingos Peixoto constata que “… apenas dois desses órgãos estudados foram restaurados: o do coro alto da igreja de Jesus e o da igreja da Misericórdia, faz agora quinze anos… Resta-nos esperar que destas linhas brote um impulso novo à recuperação do conjunto dos órgãos históricos da cidade, uma ‘maioria silenciosa’ à espera de quem lhe dê a palavra”.

De muito interesse os apêndices de “Os Órgãos Históricos de Aveiro”, pois Domingos Peixoto aborda instrumentos já desaparecidos, outros órgãos de menor dimensão, alguns domésticos, espalhados pela cidade e vizinhança, os modernos, utilizados também em ambientes laicos, sendo que vários fabricados no Exterior. Tanto nos órgãos Históricos como em outros mais, o especialista Domingos Peixoto analisa os poucos restauros realizados.

De suma importância o debruçamento através de décadas a que se dedicou Domingos Peixoto, sempre com o olhar amoroso, legando ao leitor e à História uma obra basilar em bela edição e plena de ilustrações que corroboram o entendimento.

Dos pouquíssimos órgãos barrocos que ainda subsistem no Brasil, apenas quatro, localizados em Minas Gerais, funcionam bem. O órgão da Igreja Matriz de Santo Antônio em Tiradentes, encomendado em 1779 e construído na cidade do Porto, chegou à cidade em 1798 e teve moldura entalhada, pintura e douramento realizados por artistas no Brasil. Nos anos 1982 e 1991 dei recitais a privilegiar composições de Manuel Rodrigues Coelho (1555-1635), Champion de Chambonnières (1601/2-1672), Johann Kuhnau (1660-1722), Carlos Seixas (1704-1742) e Sonatas para órgão e cordas de Mozart (1756-1791), no âmbito dos Festivais de inverno em Prados, MG (1982-1991), fundado pelo Maestro Olivier Toni (1926-2017).

Domingos Peixoto, an authority on organology, presents us with “Os Órgãos Históricos de Aveiro” (Historic Organs of Aveiro), a book that adds to other researches by the author, establishing a milestone in the unveiling of the existing organs in Aveiro, from baroque to modernity.

 

François Servenière e a perenidade do sagrado

Para mim, a criação musical não exige somente talento, mas também,
e antes de tudo, caráter, personalidade,
a certeza de que temos um caminho a seguir,
e que nada conseguirá nos tirar do caminho.

Serge Nigg (1924-2008).

Fui impactado ao receber do ilustre compositor francês François Servenière (1961-) sua última criação, gestada longamente, plena de simbologia, rica nos processos escriturais. Sendo conhecedor das múltiplas tendências da música contemporânea, Servenière há décadas professa alguns contextos delas derivantes, mas optou por uma linguagem desviando-se do cerebralismo tantas vezes inócuo.

François Servenière escolheu o seu caminho voltado à criatividade sem se submeter ao Sistema, mas sem perder de vista o passado glorioso da música. Essa escolha, se de um lado lhe deu a possibilidade de se expandir em diversos direcionamentos, fruto do acúmulo musical e humanístico adquiridos com critério, sob outra égide, devido ao culto ao passado, sem dele se tornar refém, cerceou-lhe várias possibilidades de expansão junto ao público e às fontes do Estado, estas que seguem majoritariamente ideologia precisa.

Tendo conhecido inúmeras obras de François Servenière, “The Sacred Fire”, para dois pianos e orquestra, coloca-se entre as maiúsculas criações do compositor, entre elas “Seasons Vertigo” (1993-2007) para quatro pianos e orquestra. Quando a escrita destina-se ao piano, poder-se-ia acrescentar que Servenière tem seu idiomático. Há virtuosidade plena na escrita pianística do “Fogo Sagrado”, característica que o autor sempre desenvolve sabiamente, pianista que foi. Em “The Sacred Fire”, a virtuosidade pianística diante de uma orquestra, avassaladora por vezes, amalgama-se magnificamente. Poderíamos acrescentar que o apreço do compositor pelo jazz, que vem da juventude, está presente em vários segmentos. Como bem enumerou o ilustre compositor pátrio Ricardo Tacuchian, haveria entre as tendências composicionais da atualidade quatro fundamentos e suas ramificações, sendo que em um desses caminhos não há exclusão ao culto a determinados procedimentos que têm origem na tradição. François Servenière, estando bem atualizado quanto aos novos processos, mantém-se fiel à sua escrita enriquecida pelo acervo adquirido, mas a saber selecionar atributos novos, excluindo aqueles nitidamente panfletários e sem lastro, cultuados em guetos

Tive o privilégio de gravar várias de suas obras, entre as quais os sete  “Études Cosmiques”, mais o “Outono Cósmico”, inspiradas nas magníficas telas do artista plástico Luca Vitali (1940-2013), coletânea que ao meu ver situa-se entre as mais significativas do gênero. Figuram os oito Estudos no Youtube.

Sobre o seu Concerto para dois pianos e orquestra, “The Sacred Fire”, a presente apresentação está toda programada através dos meios eletrônicos, a antecipar uma futura première instrumental. Servenière respondeu à pergunta que lhe formulei sobre o processo atual: “A respeito dos procedimentos informáticos que levaram ao presente resultado, não se trata mais de uma questão, pois todas as músicas hoje, mesmo as clássicas, são fabricadas ou recopiadas sobre softwares informáticos… Que você utilize Finale, Studio Vision, Studio One, Pro Tools, Presonus, Sony ou Apple, a resposta será sempre extraída do cérebro do criador”.

Quanto à origem da obra, Servenière é enfático: “O Fogo Sagrado’ é uma permanência dos escritos bíblicos desde Moisés e sua sarça ardente. É uma metáfora para a vida, para a reprodução através da sexualidade, para a energia vital e simbólica que reaparece regularmente na história humana, quando a existência biológica é confrontada com seu pior inimigo: o niilismo, a negação da criação, o desejo de controle político da natalidade através da manipulação genética e ideologias não naturais, como o malthusianismo. Nos primórdios, os humanos lutaram contra o Bezerro de Ouro, enquanto a moda deletéria atual é a do transumanismo… Uma das manifestações mais grandiosas do ‘Fogo Sagrado’ é a do milagre do Santo Sepulcro, renovado com certeza todos os sábados santo desde o Século IV dC na liturgia ortodoxa”.

A montagem visual de “The Sacred Fire”, na presente modalidade, teve por parte de Servenière uma magnífica exposição de imagens caracterizando o transcorrer da obra. Riquíssima escolha de paisagens, mas especialmente de pinturas da Idade Média ao presente. Para tanto, separei “O Fogo Sagrado” em três links que, ao gosto do leitor, poderão ser acionados na sequência ou em partes.

A construção da primeira secção da obra baseia-se estruturalmente num ostinato, a consolidar intenções. Esse ostinato é rítmico e formado de acentuações incisivas. Quanto às imagens, Servenière apresenta uma série de paisagens áridas do Oriente Médio em sítios onde manuscritos foram encontrados e que corroboram o entendimento dos Testamentos Bíblicos. Cenas a anteceder e a assinalar o nascimento de Cristo, o batismo de Jesus por João Batista, a entrada em Jerusalém até à prisão de Cristo enriquecem a composição.

Passacaglia orientalis

https://www.youtube.com/watch?v=fqoAuj_Zb7I&list=PL3ycBpUN-VORx9toHcV0tfcOpPI3SR5od&index=1

A segunda parte do Concerto é ilustrada com imagens do calvário de Jesus, da prisão ao julgamento, da longa trajetória até a crucificação e a morte. Incisivamente, um tema principal apresentado sob tantas vestimentas percorre o “Lento Lamento”. Em determinado segmento, a enriquecer o discurso musical, imagens se sucedem à maneira de flashes, com aparições contundentes a seguir as acentuações em alta frequência sonora contidas na partitura. Por vezes, Servenière sobrepõe imagens, a potencializar intenções.

Lento Lamento

https://www.youtube.com/watch?v=9p2laHw0VXo&list=PL3ycBpUN-VORx9toHcV0tfcOpPI3SR5od&index=3

O terceiro movimento se caracteriza por um feerismo total, rítmica implacável e eflúvios jazzísticos. Poder-se-ia pensar numa redenção plena da humanidade. Servenière explora, com raro talento, não apenas o diálogo pianos-orquestra, mas extremadas e incisivas atuações de acordes em fortíssimo, que surgem como em um relampejar. O compositor, na montagem audiovisual, ratifica a inserção das imagens nesses “relâmpagos sonoros”, a provocar o ouvinte nessa volúpia voltada aos extremos. Após verdadeira apoteose de sons, Servenière finaliza a obra com um lento e breve arpejo solado pelo piano e em baixa sonoridade, seguido de brevíssima aparição orquestral, levando “The Sacred Fire” à paz. Jamais alcançada ?

Allegro quasi presto

https://www.youtube.com/watch?v=9p2laHw0VXo&list=PL3ycBpUN-VORx9toHcV0tfcOpPI3SR5od&index=3

O título da obra já sugere intenções precisas e o conteúdo musical já bastaria. Não obstante, em “The Sacred Fire” as imagens, sob a imaginação do compositor, não apenas permitem ao leitor-ouvinte integrá-las ao conteúdo musical, mas também a sua penetração em parte no de profundis de Servenière. Quão mais conheço as suas criações, mais me convenço de que o misterioso universo criativo musical através dos séculos tem sempre suas origens na imaginação, majoritariamente não revelada pelos autores. Quando poemas, libretos, natureza e outras mais inspirações servem de bússola, o amálgama pode se dar. Como bem reza Vladimir Jankélevich, “o segredo pode ser revelado, mas o mistério é insondável”. Não é uma dádiva saber que o misterioso universo interior que propiciou a criação pode ser inspiração possível para a reinterpretação? Ao músico intérprete consciente a resposta ao tornar viva a partitura.

Creio que em “Promenade sur la Voie Lactée”, para piano solo, François Servenière não apenas expõe outro momento criativo, mas nos leva a uma verdadeira experiência etérea.

Clique para ouvir “Promenade sur la Voie Lactée”, de François Servenière, na interpretação de J.E.M.:

https://www.google.com/search?q=youtube+Promenade+sur+la+Voie+Lact%C3%A9e+Serveni%C3%A8re+-+Martins+piano&oq=youtube+Promenade+sur+la+Voie+Lact%C3%A9e+Serveni%C3%A8re+-+Martins+piano&aqs=chrome..69i57.35927j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8

“The Sacred Fire”, the last creation of the remarkable French composer François Servenière for two pianos and orchestra, is a singular work. To the technical compositional mastery, Servenière adds fertile imagination. Initially produced by electronic means, hopefully it will soon be performed in concert halls. Consider the excellent selection of images in the montage for the Internet.