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O olhar do observador frente às manifestações de arte no Japão

Vai, portanto, o escritor, o poeta marinheiro,
com sua acuidade sentimental, sua excepcional sensibilidade,
seu temperamento de artista refinado,
o senso do típico e do pitoresco e, com a sinceridade que lhe é inerente,
traduzindo em páginas-retratos suas impressões
– verdadeiros instantâneos – de todo aquele mundo colorido,
lírico e heroico, ressumante de exótico saber.
Jorge Fonseca Júnior (1912-1985)
(“Wenceslau de Moraes e outras evocações”, 1980)

Neste segundo post a respeito de Dai-Nippon (Grande Japão), do escritor português Wenceslau de Moraes, abordarei as artes sob a observação arguta do autor. A diversidade artística japonesa não está em um capítulo especial. Moraes a dilui paulatinamente, fato que testemunha o apreço constante e amoroso. À medida que o contexto provoca a atenção acurada, a arte é louvada.

Fidelino de Figueiredo enumera da miniatura à grandiosidade, “cujo louvor em todos os tons é um ritornelo constante nos livros de Moraes, e a cerâmica, a porcelana, o cloisonné ou bronze porcelana, os metais, a arquitetura hidráulica, o lar japonês, modelo de ordem, de asseio, de galanteria nas suas leves paredezinhas de papel, tudo visto numa disposição de benevolência afetuosa, único preconceito da alma do nosso cicerone”.

Wenceslau de Moraes não pasteuriza a arte em conceitos estanques; antes, entende as particularidades de cada uma das manifestações. Inexiste a visão do turista, mas a do europeu que se radica no Japão e se amalgama com o que é pertinente às tradições locais. A natural inclinação de Moraes do todo ao pormenor, captando do gigantismo à essência do multum in mínimo, fá-lo entender os resultados da arte nipônica, sempre com um prazer invulgar.

Sobre a pintura, Moraes observa: “Bem o sabeis; a mãe da arte é a pintura; falar da pintura é falar de todas as artes. Havemos, pois, de falar da pintura. Mas antes, visto que não temos pressa, discorramos um pouco sobre os órgãos do artista que mais particularmente se interessam na criação de um objeto, seja um desenho, seja um bronze, seja uma porcelana, seja o que for, isto é, o olho e a mão, o olho que vê e a mão que executa”. Encanta-o a visualização, fruto do culto ao belo que a natureza oferece. Comenta: “Mas o dom assombrosamente predominante desse olhar nipônico, quando se trate da arte, e por ela sobejamente confirmado, é uma qualidade afetiva extrema, inconsciente porventura, pelos encantos da natureza, por tudo que é visível e belo, por todas as concordâncias da cor, da luz, da forma”. A História da arte renderia tributo através do tempo aos pintores Utamaro (1753-1806), Hokusai (1760-1849), Hiroshige (1797-1858), entre outros. Quanto a Katsushika Hokusai, estende-se, e o pormenoriza em precisas observações “…foi um idólatra, tendo na natureza o seu feitiço; e estudou, com o tenaz fervor de um iluminado, as mil e uma formas da verdade, todas as delícias da cor, todos os segredos da vida”. Saliente-se que a influência das estampas japonesas foi notória no impressionismo em França. Claude Debussy (1862-1918) se inspiraria na gravura “A grande onda”, de Hokusai, para o seu tríptico sinfônico “La Mer” e mantinha gravura de Utamaro emoldurada. Em “Poissons d’or”, terceira peça do segundo caderno de Images, o compositor teria como inspiração uma laca japonesa.

Em período efervescente das artes e da literatura em França, causaria admiração o traço único, sem falha, preciso, irremovível, a inexistir espaço para retoque nas criações das gravuras japonesas. Wenceslau de Moraes capta a essência da pintura nipônica. Sua interpretação, habituada anteriormente às pinturas ocidentais, se extasia frente à precisão oriental e às mensagens transmitidas. Eliminado o supérfluo, permanece esse traço que capta o instante do acontecido e a autenticidade do tema em pauta. Escreve: “Uma pintura japonesa é sempre uma invocação. Adivinha-se o trabalho do pincel, não se esforçando em reproduzir a natureza, não em ser criador, mas em traduzir a impressão persistente que nos fica do espetáculo da mesma natureza. Eu me explico melhor, exemplificando: o pincel nipônico não conhece a veleidade de criar uma rosa, o que só pode, bem pensado, fazer o Pai do Céu; prescinde de modelo, fá-la de cor; quando a traça não se preocupa em enganar as abelhas que venham esvoaçar sobre o papel em busca de mel para o seu cortiço; preocupa-se apenas com a flor, no que dela persiste mais intenso na reminiscência, pelos seus atributos dominantes; é como se dissesse que aquele pincel inteligente não pinta, pensa e recorda”.

Admira o kakemono, arte pintada ou caligrafada em longas tiras de seda, cetim ou papel, presentes nas moradas das várias classes sociais. Conservadas em rolos, amiúde são estiradas quando da visita de familiares e amigos, ornando os ambientes desprovidos de excessos. Moraes observa: “Não escapa à observação do amador a íntima preocupação de realces, de harmonias que existem entre o desenho e o mimo de coloração do tecido; há nessa coloração como que um misterioso estímulo do sentimento, predispondo para a melhor compreensão do assunto”.

Clique para ouvir de Tsuna Iwami, “Algo sutil e profundo”, a partir de poema de M.Miyamoto, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=tRgb1y0sStg

Moraes tem posições de interesse sobre a porcelana nipônica, historiando-a e, após, enaltecendo-a, apesar de críticas à industrialização. Considera que, apesar de os processos fabris terem origem na China, os japoneses se serviram da livre fantasia. Enfatiza pormenores dessa arte que “encanta pela gentileza das formas, pelo mimo nos desenhos, pelo brilho nos esmaltes. Na jarra, no vaso, na garrafa, no perfumador, no boião, o mais saltante enlevo está na doçura sugestiva das curvas, na geometria amorosa do nu, inédita, que parece inspirar-se na gracilidade suave de um braço, ou na redondeza túmida de um seio, ou na amplidão serpentina de um quadril. Depois vem a ingenuidade bucólica do desenho, nas florinhas que estrelam os fundos, nos insetos e nas aves que voejam, nos longes cariciosos da paisagem. Depois ainda é a harmonia inimitável das tintas e dos ouros, das cores inefáveis, banhadas na frescura eterna dos esmaltes”. A influência da louça japonesa na Europa não é esquecida pela pena moraesiana e, após mencionar as fábricas de Delft, na Holanda, e a produção em Saxe e Chantilly, comenta: “Estais julgando: é a moderna louça luxuosa da Europa devendo tudo ao Japão”.

Moraes enaltece as olarias japonesas, que datam dos primeiros séculos da era cristã. Escreve: “Acima da porcelana em méritos, como arte nacional, está a olaria japonesa. É neste ramo da cerâmica, no trabalho paciente das argilas, que o sentimento e a viva originalidade indígena atingem um primor adorável”. Após considerar a alta feição artística da faiança japonesa  “…profundamente nacional, mais ornamental que utilitária, amorosa da natureza, das formas animais, por vezes humorística e que é representada principalmente pelas inúmeras formas da estatueta, do boião de perfumes, da caixa de remédios, do perfumador, da floreira. Compreende-se efetivamente o que possa dar essa argila pastosa, obediente a todos os contatos, quando sujeita às mãos habilidosas, mais ligeiras, mais artísticas que se conhecem”.

Wenceslau de Moraes discorre sobre materiais como o bronze e a madeira, do grandioso à miniatura, dos Budas gigantes aos netsukês de madeira ou marfim. Impressiona-o o culto às imensas esculturas em bronze de Buda, os Daibutsus de Nara e de Kamakura.

Sobre o teatro, Moraes está atento: “O teatro japonês cultiva um naturalismo estranho, minucioso nos ínfimos detalhes, por vezes duma perfeição inconcebível. Não é o enredo, o mistério sentimental do drama que procura interessar o espectador; é o jogo físico, mecânico, que sugestiona a vista, e assim encaminha por indução o espírito a um grau de sentimentalidade individual e vaga, que borboleteia certamente em cada um em mil divagações, de que cada um se constitui o exclusivo auto; um surdo poderá compreender o drama, um cego, nunca”. Os Teatros Nô e Kabuki estão entre os mais renomados.

Ao comentar os cultos xintoísta e budista, Moraes escreve: “Insinua-se fortuitamente no Japão, pelo século VI da era cristã, a crença budista trazida da Coreia”. Acrescenta: “Os dogmas dos dois cultos acomodam-se, contemporizam-se de parte a parte”. Entre os deuses familiares está “Benten, a deusa das artes e da beleza, representada como uma formosa cortesã dedilhando numa espécie de guitarra indígena, o biwa”.  A gravura de Hônen Metamorfose da Lua não estaria a render culto a Tsukiyomi-no-Mikoto, o deus lua, um dos deuses da crença xintoísta?

Moraes não deixa de pontuar alguns instrumentos musicais, estes sob os dedos etéreos das gueixas: “Os instrumentos indígenas, onde pousa a alvura das mãos das gueixas, são o shamisen, o koto, o biwa, outros ainda lembrando a guitarra. O bandolim, a harpa; instrumentos de corda, adaptando-se assim obedientemente à intenção, ao vago, ao incompleto da trova, dos cantares”. A imaginação moraesiana viaja ao som instrumental e das vozes: “As cordas que gemem em trêmulos, soltam exclamações súbitas, acompanhando a voz em melancolias arrastadas; é a música da vida, o ramalhar das árvores, o sussurro das águas, o ciclo dos insetos e dos pássaros , o grito insólito do corvo cortando o espaço; por sugestão, adivinha-se nela o eterno enlevo dos sexos, a curva dardejante das borboletas brancas perseguindo-se sem se alcançarem, todos os dramas da simpatia e do desejo, da alma e dos sentidos, que constituem a lei da existência universal”.

Quanto à arte singela das moradas japonesas, Moraes as compara às “habitações dos chamados povos cultos nas civilizações ocidentais”. Nessa visão, compara o luxo das moradas europeias plenas de móveis e objetos, com a casa japonesa: “Para o lar japonês, entra-se deixando à porta os sapatos, como para um místico santuário; não procureis a sala, que não existe; o lar é da família e dos amigos íntimos; todos os aposentos são iguais, sem mobília, sem ornamentações, com a simples esteira de repouso sobre a qual os corpos se entendem em grupos afetuosos, bebendo chá, fumando, palestrando, espraiando o olhar pelos caprichos do jardim, pela paisagem distante: maciços verdes de arvoredo, lombadas flexuosas de colinas, espumas de cascatas, azuis serenos do céu e de águas que são, afinal, a portentosa ornamentação da casa japonesa”. Essa comparação com moradas ocidentais não evidenciaria o âmago do despojamento ao qual Wenceslau se propôs nessa japonização voluntária?

Não sendo possível abordar em dois posts, com o espaço a que  me proponho semanalmente, toda a riqueza de Dai-Nippon, que permeia uma multiplicidade de temas através de um olhar agudo e de um pensar privilegiado, recomendaria ao leitor que deseje saber mais sobre o escritor buscar preciosa bibliografia portuguesa, mas também brasileira, assim como as obras de Wenceslau de Moraes elencadas no post anterior.

Clique para ouvir de Tsuna Iwami, “Idade Madura”, a partir de poema de M.Miwa, na interpretação de J.E.M.:

(62) Tsuna Iwami – Maturity – José Eduardo Martins – piano – YouTube

In this second post about Wenceslau de Moraes’ “Dai-Nippon”, I focus on the artistic manifestations he has punctuated. The evidence of a voluntary and loving japanization is clear in Moraes, who gives Western readers a fascinating glimpse into old Japanese culture not with a tourist’s view, but that of the European who settles in Japan and adopts the local traditions.

Tentando entender o talento transcendente

É necessário ter, diante da obra que ouvimos,
interpretamos ou que compomos,
um respeito profundo como em frente da própria existência.
Como se fosse questão de vida ou morte.
Pierre Boulez

No esteio do tema tratado no blog anterior, não foram poucos os que hesitam em acreditar que haja os não apreciadores de música e entendem o fato de que, entre os que dela gostam, segmento privilegiado de aficionados a ela se dedicará, mas poucos se destacarão. Quantos, na busca de compreender a palavra gênio, ela também tão questionada, recorrem ao divino, ao sobrenatural, à reencarnação…

Em áreas específicas que, no meu entender, têm muito a ver com o aspecto físico, referindo-me aos intérpretes musicais e aos atletas nas várias modalidades, é possível entender que, entre milhares que se destinam a determinado mister, um ou dois  tornam-se ícones, e assim perduram sem concorrentes à altura. Estudos são elaborados por especialistas, mas as conclusões são sempre sujeitas a questionamentos, mercê também das pesquisas sempre in progress. Não obstante, cientistas entendem que, nas áreas do pensar, cérebros daqueles com QI bem alto não são diferentes dos QIs dos cidadãos comuns, mas que leituras “subjetivas” das engrenagens cerebrais detectam diferenças entre pessoas que praticam modalidades afins. Quanto às aptidões físicas, há também “engrenagens” que permitem que determinados atletas ou instrumentistas sejam mais aptos do que a extensa maioria de outros nas mesmas funções. Não me estendo nesse complicado mister por motivos óbvios, o fato de ser leigo na matéria, mas o leitor tem à sua disposição, via internet, resultados de muitas pesquisas científicas sobre o tema.

Na esfera musical, tanto na composição como na interpretação, alguns luminares se destacaram em ambas as categorias, casos específicos de Niccolò Paganini (1782-1840), Franz Liszt (1811-1886), Camille Saint-Saëns (1835-1921), Sergei Rachmaninov (1873-1943), Sergei Prokofiev (1891-1953), Pierre Boulez (1925-2016) e outros mais. A porcentagem dos que praticaram composição e interpretação é restrita, mas esses notáveis músicos desenvolveram paralelamente duas categorias que, apesar de distintas, têm ligação intrínseca. Possuidores de QIs altíssimos, alguns poucos tiveram predisposição a outras atividades correlatas à música, como Saint-Saëns e Ferrucio Busoni (1866-1924), pois igualmente editores e revisores consagrados. Muzio Clementi (1752-1832), além dessas duas atividades suplementares ainda foi fabricante de pianos quando em Londres. Sob outra égide, lembraria as observações do compositor, pianista e “visionário ou místico” russo Alexandre Scriabine (1872-1915) que, num café na Suíça, teceu intrigante dedução ao ver pessoas e carruagens transitando. Observou que, ao compor, ele se sentia Criador com C maiúsculo e na plenitude, um messiânico, mas ao estar sentado tranquilamente a olhar a movimentação na rua sentia-se um cidadão rigorosamente comum, sem mais. Sua filha, a musicóloga Marina Scriabine (1911-1998), escreve, a prefaciar “Notes et Réflexions” de seu pai: “Scriabine chegara a um solipsismo de caráter bem singular. Só ele existia, ele era Deus e criador do universo, mas somente no ato da  criação” (Alexandre Scriabine “Notes et Réflexions”, Paris, Klincksiech, 1979). Impossível dissociar o compositor-pianista do pensador místico que legou textos de real importância. Os super talentos transitam normalmente em campos precisos de atuação, excluindo-se quase todos os outros fora do interesse dessas figuras singulares, que, não poucas vezes, deles têm compreensão bem pueril. Não obstante, há aqueles que extrapolaram a(s) área(s) de interação, caso de Pitágoras (ca a.c. 570 – ca a.c. 500), Leonardo Da Vinci (1452 – 1519), René Descartes ( 1596-1650) e inúmeros outros luminares que, através de curiosidade e vocação, não se restringiram a um objetivo preciso.

Seria evidente a constatação de que os seres muito dotados só concretizam suas obras através do labor obstinado. O velho preceito que atribui mínima porcentagem à inspiração e índice superlativo à transpiração é regra. Compositores que permaneceram na História produziram muito e na excelência. Georg Friedrich Händel (1685-1759) comporia em brevíssimo tempo o célebre oratório “O Messias”, uma das obras referencias da humanidade. A capacidade descomunal de Mozart traduzia-se inclusive em suas composições, jorradas em cascata e sem rasuras, fato raríssimo na criação musical, literária e artística. Fruto de labor intenso, Modest Moussorgsky (1839-1881), apesar de todos os seus transtornos, comporia uma de suas obras-primas, “Quadros de uma Exposição”, durante quinze dias sem sair de seu quarto, após visitar a exposição de aquarelas de seu grande e saudoso amigo Victor Hartmann (1834-1873). O manuscrito autógrafo, claríssimo, contém algumas rasuras e alterações durante a efervescente gestação. E, portanto, apesar da grandiosidade, trata-se de uma obra lúdica.

Claude Debussy (1862-1918) escreveria ao seu editor Jacques Durand, tão logo finda a composição da possivelmente sua mais importante obra para piano, os Douze Études: “Escrevi como um louco ou como aquele que deverá morrer no dia seguinte” (1915).

Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude pour les huit doigts, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=D85tz0ibqRk

Clique para ouvir,  de Claude Debussy, Étude pour les arpèges composés, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=VCAH8fYHjSo

Compositores e escritores ditos “geniais” deram um passo à frente no que tange à criação. Inovaram e todos têm aquilo que considero impressões digitais inalienáveis, fato que não ocorre com outros nessas categorias do pensar que, detentores de real talento, não deram esse passo adiante e cujas marcas dos dedos não são tão evidentes. Paradoxalmente, alguns compositores não “inovadores” têm as impressões digitais nítidas e suas obras apresentam real interesse. Conheço alguns assim descritos cujas composições me encantam. Mas há tantos em que o pastiche evidencia a pobreza das ideias…

A contemporaneidade tem suas características próprias. Nas múltiplas tendências que continuam a pulular na área da “criação musical” há aquelas baseadas em pesquisas sérias e meritórias, assim como outras que se entendem por vanguardistas, mas que traduzem o vazio do pensar.

O recuo do tempo é lição obrigatória para avaliações. Decanta-se como o bom vinho. Os assim denominados gênios ou super talentos permanecem, à la manière da ação de uma peneira que retém os resíduos, deixando passar a essência essencial para gáudio dos que a desfrutam.

The present post deals with the differences between a great talent and the so-called genius, a very rare figure found in all areas. There are composers who go beyond the limits and possess the attributes of genius and others who, even though non-innovative, produce works of reference. Only the composer who relies on pastiche will be forgotten by History.

 

Haverá esperanças neste mundo tão conflitante?

Cada um de nós emergirá, ao fim do Ano Novo,
ou maior ou menor; ou então,
absolutamente não teríamos crescido,
permanecendo em completa inércia,
exatamente aquilo que agora somos.
Porém, para aqueles dentre nós que sentem fervor,
qual o significado do Novo Ano? Não poder ter esta significação?
Somos semelhantes a viajantes,
penetrando, em nossa longa jornada,
por um país novo e desconhecido,
onde fados estranhos e estranhas aventuras nos esperam.
Jiddu Krishnamurti (1895-1986)
(“Mensagem de Ano Novo”)

Após o blog anterior, em que narro um Natal inesperado em Paris no ano 1958, ao verificar imagens para o referido post deparei-me com duas já mencionadas em outros blogs muitos anos atrás, mas que no presente têm muito a ver com a situação que se abre a partir do início de 2023.

Creio que, das visitas que realizei a tantas catedrais francesas, portuguesas e belgas com o desiderato de compreender o resultado gravado nas pedras de tantas criações extraordinárias relativas à história da cristandade, uma visita ficou indelével, a da Cathédrale d’Autun, em França, na Borgonha Romana. Denominada Église Saint-Lazare, foi construída entre os anos 1120-1146, mercê da visita de peregrinos que se prostravam diante das relíquias de São Lázaro, irmão de Maria Madalena e amigo de Jesus. Tem um magnífico tímpano realizado por Gislebertus, fato raríssimo àquela altura o escultor legar aos pósteros a autoria. Os inspirados capitéis no interior da Catedral têm igualmente Gislebertus como autor. Nessa visita em 1960 ficaram gravadas perenemente duas imagens, a dos peregrinos no majestoso portal e a de Saint-Joseph pensif, no interior do templo. Adquiri as duas estampas e não raras vezes, ao longo das décadas, elas me levam à reflexão.

Passaram-se pouco mais de quinze anos após essa visita à Cathédrale d’Autun quando, em viagem à Pouso Alegre, em Minas Gerais, parei num restaurante da estrada para tomar café e, ao passar por várias barracas de artesãos populares, uma delas chamou-me a atenção. Fiquei surpreso ao ver um rústico presépio em terracota, que imediatamente acionou minha memória. Tratava-se das figuras de José, Maria e a de Jesus no berço. São José levava a mão direita ao queixo. Qual a razão? 850 anos após a construção da Catedral d’Autun, novamente me deparava com a mesma postura de São José no templo da Borgonha, neste, a mão direita a sustentar a cabeça do Santo, sendo que o braço se apoia sobre perna esquerda, no de terracota amparado na mão esquerda. O mais extraordinário foi ouvir do artista popular mineiro, figura simpática que, com simplicidade, respondeu à minha pergunta referente ao porquê dessa mão no queixo. Coçando a cabeça e a sorrir considerou que a posição da mão significava o problema que o Santo estava a trazer para o mundo e que poderia ter sido o que São José pensou, completaria.

Aquelas palavras têm transcendência e certamente atravessaram centenas de anos, pois Gislebertus, com toda a sua genialidade, poderia ter pensado de maneira similar. O notável Auguste Rodin (1840-1917) criaria a escultura definitiva de “O Pensador”, mão direita a apoiar a cabeça e o cotovelo sobre a a perna esquerda…

As imagens de São José pensativo e a dedução do artista popular levam-me a pensar no alcance da frase. Iniciaremos um novo ciclo a partir do começo de 2023. Sob o plano mundial, entre tantas escaramuças internas em inúmeros países, sobressai a guerra Ucrânia-Rússia, insanamente provocada por um tirano, brevemente a completar um ano de bárbaras contendas, com cenários dantescos de destruição e mortes. No plano interno, a troca de poder traz incertezas e encontra um Brasil dividido. Quanto ao nosso torrão natal, há nítida degeneração em áreas como costumes; moralidade; lhaneza; decadência nítida da imprensa escrita – inclusive em termos de redação; programas televisivos em que o supérfluo e a degenerescência comportamental imperam, mormente nos reality shows; o desprezo pela cultura erudita; a não confiabilidade na classe política; o quase absoluto desaparecimento do respeito às religiões e crenças; a corrupção como a mãe de todos os vícios que, hélas, deverá prosseguir, pois majoritariamente anulada em breve tempo.

Aos 84 anos assisto à inegável decadência nas áreas apontadas. Se a tecnologia avança a passos largos para o bem e para o mal, se mentes esclarecidas e sérias buscam o aprimoramento do país, estas raramente encontram respostas dignas. Não podemos deixar esperanças fenecerem.

A todos os leitores que me honram com sua atenção semanal, desejo que 2023 lhes possibilite crescer, emergindo maiores ao final de mais uma etapa, como nos propões Krishnamurti.

Two images 900 years away in time led me to reflect on why a master sculptor in the 12th century and a rural artisan in the south of Minas Gerais came up with the idea of depicting the figure of Saint Joseph with his hand on his chin. The Romanesque sculptor Gislebertus in France and a rustic countryman who carved in his spare time had the same idea. From the popular artist I heard that the hand on the chin would reflect Saint Joseph’s thought “what trouble have I brought into the world!” It makes we think that possibly the medieval sculptor might have had the same idea. Thinking about troubles, I make some observations about a marked decay of civilization in numerous areas.