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Quando a vontade sucumbe

São Paulo precisa parar de crescer
José Carlos de Figueiredo Ferraz (1918-1994)
(Prefeito de São Paulo – 1971-1973)

Recentemente mencionei a sanha avassaladora das construtoras quando almejam determinado “território”. Uma blitz acontece e, pouco a pouco, moradores são “convencidos” a deixar suas casas e todo o processo é conduzido de acordo com a legislação vigente. Se um morador insiste em não negociar com uma incorporadora, inevitavelmente ficará completamente isolado entre edifícios que atualmente proliferam nos bairros Brooklin e Campo Belo. Uma visita a esses bairros constatará o número extraordinário de novos lançamentos, alguns ultrapassando os trinta andares e edificados quase rentes às calçadas. Nas minhas duas caminhadas de cerca de 8 km pelas ruas dos dois bairros, deparo-me nesses últimos meses com inúmeros distribuidores de folders que anunciam novos empreendimentos na área, lançamentos considerados “únicos na excelência”.

Após 60 anos morando na mesma casa e sofrendo insistência desde 2019 de três construtoras que, ao final de tratativas, sucessivamente desistiram, não houve possibilidade de resistir ao assédio de uma quarta, que conseguira a anuência de todos os meus bons vizinhos. “Resistir quem há de?”, como reza o verso de Luís Guimarães Júnior (1845-1898) em “Visita a casa paterna”.

Reiteradas vezes mencionei uma resposta do escritor, ator e jornalista Plínio Marcos (1935-1999) que, em programa televisivo, perguntado sobre sua cidade, Santos ou São Paulo, onde morava, respondeu que havia anos era de Santa Cecília, seu bairro. Verdade absoluta, que nos levou a não deixar a região após seis décadas, pois depois de tantos anos estabelecemos relações inquestionáveis de amizade e de convívio com um sem número de moradores.

Apesar de comodatos acertados com os meus vizinhos, a construtora, sempre poderosa, diga-se, ainda pressionou alguns para que saíssem antes do prazo final. Há meios de fazê-lo e deles se utilizaram.

O desmonte dos dois bairros contíguos se faz avassaladoramente. Perde-se na história a tradição da região, que inicialmente teve uma considerável parcela de moradores de ascendência germânica, sendo que muitas casas mantinham inclusive semelhanças com as construções da região europeia.

Fato consumado, partiremos, Regina e eu, para a fase final da existência. Quiséramos permanecer, mas, sob outra égide, é a inaudita violência que impera no Brasil com a complacência de órgãos superiores, situação diariamente decantada pela mídia, que nos impele para um apartamento, para gáudio de filhas e netas.

Uma das filhas me perguntou se, morando na mesma rua, a cerca de quinhentos metros de distância, teria eu a coragem de passar diante da casa sendo demolida e após, durante as várias fases de construção de mais um edifício. Fomos realmente felizes nessas tantas décadas e a morada permanecerá indelével no meu de profundis, independentemente das transformações do entorno. Assim foi com tantos livros, gravações e objetos que nos foram caros, mas que terão outros olhares, pois doados aos nossos descendentes, às pessoas que nos privilegiam com a amizade e às entidades culturais. Material que já foi arquivado na nossa mente. Faz-me lembrar uma conversa que mantive com o psicanalista Eduardo Etzel (1906-2003), nome maior da pesquisa da arte sacra popular no país. Analisou-me durante 10 anos sem que eu soubesse, durante a década na qual fiz pesquisas no Vale do Paraíba sobre essa fundamental temática popular. Dizia ele que, quando nos desprendemos de um objeto de estimação, ele já está sedimentado em nossa mente após tantos olhares, e a simples lembrança o faz ressurgir por inteiro em nossos pensamentos.

A vida não será alterada, pois frequentarei os mesmos locais de sempre, cruzarei diariamente com pessoas que muito prezo, continuarei os meus estudos pianísticos, as pesquisas, as tantas outras leituras, os quilômetros andados pelo bairro, a escrita dos blogs e outros textos e estarei junto da família, eixo paradigmático de tudo. Regina e eu disso sabemos. Nova e definitiva etapa.

After being pressed for some years by greedy construction companies into selling our houses, my neighbors and I were finally forced to give in. After 60 years in the same house, I’m reluctantly moving into an apartment in the neighborhood. Life won’t change, because I’ll go to the same places as always, I’ll meet people I value very much every day, I’ll continue my piano studies, my research, my readings, my runs twice a week, the writing of blogs and other texts, and I’ll be close to my family, the backbone of everything. A new and definitive stage.

 

 

Uma existência exemplar em todos os níveis

O melhor tesouro que o homem pode acumular é a reputação imaculada.
William Shakespeare (1564-1616)

Quantos são aqueles que, ao atingirem a maturidade plena, mantêm a aura impoluta? Como irmão, acompanhei a brilhante carreira do jurista respeitado em todos os cantos do país. Com a esposa Ruth, falecida em 2021, formaram um casal sem máculas e criaram seus seis filhos em plena harmonia. Verdadeiramente um exemplo para os seus três irmãos e para todos aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo em seu combate infatigável contra a corrupção e a favor da Democracia no seu sentido real, assim como  da Constituição, sobre a qual, juntamente com o notável jurista Celso Bastos, legou comentários fidedignos em inúmeros volumes, sem quaisquer artifícios que possibilitem interpretações outras que levem a desvios da nossa Magna Carta, distorções, hélas, vigentes nos dias atuais. Quantos outros embates Ives não enfrentou, sempre a favor da moralidade e dos costumes! Figura de fé católica intensa, tem a admiração plena daqueles pertencentes às diversas religiões, assim como ateus e agnósticos.

Ives é igualmente poeta e contista. Quanto à poesia, máxime os sonetos, só para a dedicada esposa Ruth, falecida em 2021, escreveu mais de mil poemas. Digo sempre a ele que o seu nome deveria estar no livro dos recordes absolutos nesse quesito.

Para lembrar os 90 anos, Ives lançou livro de versos, “Tempo de Lendas” (Anápolis, Chafariz, 2025). À primeira orelha, a síntese da síntese do seu pensamento voltado aos princípios que o nortearam pela vida: “Em época e país em que os valores culturais são substituídos pelo despotismo dos governantes, pela massificação dos meios de comunicação e pela falta de patriotismo das elites, retorno ao porto seguro da poesia para respirar o ar não poluído dos campos permanentes da esperança e da ilusão. E recuperando as forças necessárias, volto à luta contra aqueles que teimam em não respeitar a nossa pátria e a nossa gente”. No prefácio, Ives comenta que reedita poesias inspiradas em cinco mulheres lendárias, Gul-nazar, Dido, Eurídice, Marabá e Circe, que alimentaram o imaginário através dos séculos. Não obstante, acrescenta que dedica esses poemas à “lenda das lendas, a mulher dos meus sonhos e de meus amores, a eterna Ruth”.

Ives sempre cultivou o poema desde a juventude. Aos 21 anos apresentou seu primeiro livro de poesia, “Pelos caminhos do silêncio” (1956) e, em um dos capítulos, “Pelo caminho da tarde”, Ruth já surge como definição:

Teu olhar tem o brilho amortecido,
O merencório lume infinital
das eternas buscas.
Teu olhar tem a palidez ebúrnea,
Dos crepúsculos cinzentos,
Das noites desvanecidas.
Teu olhar me tem.

Revisitar mulheres lendárias, que já faziam parte da sua veia poética, é um tributo a Ruth e regresso aos anos em que a poesia era para Ives o contraponto aos estudos do Direito, a resultar na harmonia interpretativa entre o rigor das leis e o livre pensamento voltado ao poema. Reimprimir as poesias que ora integram “Tempo de Lendas” representaria, creio eu, para o dileto irmão, distanciar-se, pelo menos por momentos, do quadro atual do país, respirar e regressar majorado para continuar o bom combate frente às incúrias de toda ordem que nos assolam.

Estou a me lembrar de uma nítida atração de Ives por dois itens que corroboraram a sua formação, a oratória e a mitologia. Da primeira, ainda bem jovem costumava, após leitura dos sermões do Padre Antônio Vieira (1608-1697), reinterpretar conteúdos neles contidos. Foi essa oratória “caseira”, frente aos nossos saudosos pais, que o preparou para a oratória embasada como notável debatedor. Da segunda, a literatura da Grécia Antiga o fascinava. Ter em tempos idos homenageado cinco figuras femininas lendárias foi um processo que estava em pleno amadurecimento e que o levou, entre outros temas, a dominar a poesia rimada, da qual se tornou um exímio cultor.

A data é, pois, motivo para que familiares e todos os que o admiram nessa luta diuturna por um país mais digno e justo saúdem Ives Gandra, figura exemplar.

Este testemunho está acompanhado por uma das músicas preferidas de Ives.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, “Estudo Patético”, op. 8 nº12, na interpretação de J.E.M:

https://www.youtube.com/watch?v=6H_T5I4BYn0

Ives Gandra Martins turns 90. One of the most important figures in Brazilian law, he is respected for his irreproachable behaviour when it comes to obeying our Magna Carta. In other spheres, a fighter in favour of morals and customs and, in addition, a poet of merit. It is a source of pride to have him as a brother.

 

A desfiguração plena de dois bairros tradicionais de São Paulo

Não sou um optimista.
O que sou é determinado naquilo em que me apetece ser determinado,
e continuo convicto até entender que a convicção estava errada e tenho de mudar.
Mas isso não tem acontecido muito.
Agostinho da Silva (1906-1994)
(“Entrevista”)

No blog anterior, ao mencionar a pesquisa do site internacional For Travel Advice Lovers publicada na mídia com a lista das 5 cidades mais feias do mundo, a pontuar São Paulo atrás de quatro outras cidades, Tijuana, Kangbashi, Jacarta e Calcutá, o meu dileto amigo Gildo Magalhães, professor titular aposentado da FFLECH, USP, apresentou deduções de interesse: “Bastante apropriado seu blog para o dia de aniversário de São Paulo, com um paralelo entre a arquitetura que se destrói e a fama que permanece. Nem é preciso ir aos tempos coloniais, a São Paulo dos anos 1950 e 1960 já se foi, e a voracidade da cupidez imobiliária liquidou a paz do Campo Belo e do Brooklin Novo, como você sabe melhor do que ninguém”.

Creio que o pensamento do ilustre amigo corresponde a uma realidade que aqueles que vivem no Campo Belo e no Brooklin estão a presenciar. Sendo morador no Brooklin há 68 anos e na mesma morada há 60, impressiona a voracidade das construtoras que, num ritmo acelerado, têm adquirido casas, poucos terrenos ainda existentes e estabelecimentos comerciais para a construção de prédios, muitos deles com mais de trinta andares. No espaço que se estende da Av. Santo Amaro à Engenheiro Luís Carlos Berrini o que se verifica é a presença de imensas áreas que outrora foram preenchidas por casas, hoje em plena ebulição voltada aos novos empreendimentos e a hecatombe se faz sentir no visual e na audição.

Poucas décadas atrás, essas edificações obedeciam a critérios razoáveis no número de andares. Presentemente, verificamos que as elevações fazem pensar numa verdadeira concorrência entre as construtoras. Sob outro aspecto, nova regulamentação permite aos projetos atuais se aproximarem mais das calçadas sem necessidade do recuo e a distância se torna irrisória entre elas, o que resulta numa impressão feia, pois está a desaparecer o espaço que separa a portaria do prédio, geralmente em forma de jardim ou mesmo passeio interno. Em uma das construções de cerca de trinta ou mais andares, o “terraço” do 1º andar se debruça sobre a calçada! Em uma outra, também rente à calçada, os primeiros andares são fechados e mais parecem uma casamata. O denominado rés-do-chão será preenchido por lojas. Todavia, haverá piscinas, quadras de tênis…

Nessa busca avassaladora pelos espaços ocupados por moradias, há inclusive uma dicotomia no que concerne ao plano de cada construtora. Apartamentos de 2, 3 ou quatro dormitórios têm suas procuras. Contudo, há uma verdadeira febre voltada à construção dos hoje denominados estúdios, alguns de dimensões realmente minúsculas. De um lado se explica pela presença recente do metrô Campo Belo da linha Lilás. Contudo, em algumas construções de trinta e tais andares, esses diminutos espaços proliferam. É fácil verificar a multiplicação de estúdios, muitos deles inseridos na maioria dos edifícios atuais. Em conversa com diversos corretores que exercem o trabalho junto aos bairros do Brooklin e Campo Belo, obtive a informação que é imensa a lista de estúdios prontos, à espera de inquilinos ou proprietários para sua comercialização.

É bem possível que a apreciação da For Travel Advice Lovers tenha avaliado a parafernália de edificações, sem quaisquer preocupações com a harmonia arquitetônica da cidade. Ao observador atento basta constatar a estrutura montada pré-edificação, luxuosa quase sempre, com a maquete do futuro prédio, funcionários temporários gentilíssimos, recepção calorosa aos prováveis compradores, chamativos folders distribuídos nas imediações, toda a cena a evidenciar que “aqueles” futuros apartamentos serão os mais modernos e aconchegantes da cidade!!! Aparência da verdade. Esses por vezes gigantescos estandes camuflam o que está por vir. Logicamente, o gasto com o aparato promocional estará incluso no preço final da aquisição.

Nesse vendaval, a resultar em edifícios que desafiam as alturas, torna-se praticamente impossível enfrentar a sanha das construtoras, sob o risco de se ficar isolado num entorno por elas adquirido. Há exemplos dessas “ilhas” que, empreendimentos realizados, tornam-se rigorosamente desvalorizadas.

O que é lamentável é que o lucro das construtoras esteja acima de quaisquer outros interesses. Projetos faraônicos destinados às classes abastadas, outros tantos seguindo critérios a atender às diversas classes sociais, não tiveram a atenção do poder público para que houvesse a mínima harmonia arquitetônica na cidade, a resultar no lamentável lugar atribuído a São Paulo e que ficará registrado na história da metrópole paulistana.

O site que realizou a pesquisa provavelmente deve ter considerado o todo, centro e periferia, onde comunidades constroem edificações sem o menor planejamento e estrutura, assim como avaliado os índices voltados à criminalidade, trânsito, poluição e pobreza na cidade.

Como não considerar uma das razões da São Paulo feia, os fios expostos. Pouquíssimas vias os têm enterrados, porcentagem infinitesimal se comparada ao todo. Quando tombam árvores devido às intempéries, o caos e a escuridão assolam ruas ou por vezes bairros. Preocupação das autoridades? O subsolo não rende votos, seja qual for a ideologia no poder. Se há alguma alegria nesse emaranhado de fios, ela está atrelada à passagem de famílias de saguis, que os percorrem com extrema habilidade.

Como não considerar a cidade feia ao observarmos a maioria de nossas calçadas esburacadas, irregulares, sem qualquer harmonia. Incontáveis as árvores que ocupam as passagens das calçadas, sendo que o transeunte tem obrigatoriamente de andar pela via! Perigosas, máxime para os idosos, estão espalhadas pela urbe à espera do impossível…

Independentemente dessas “feiuras”, São Paulo é a nossa cidade e dependerá de cada cidadão que nela nasceu e de milhões que aqui vivem extrair virtude do caos.

Consideration of an international evaluation of the world’s ugliest cities prompts reflection.