Navegando Posts em Cotidiano

O Império como sonho maior

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Eugénio de Andrade (1923-2005)

Nesse conturbado período em que a Ucrânia está a sofrer a invasão russa, mercê dos planos expansionistas de Vladimir Putin (1952- ), estive a pensar na presença de duas figuras que, oriundas de outras áreas, tiveram papel preponderante em seus países. Ligados à Música e à Comédia, tanto o extraordinário pianista polonês Ignaz Jan Paderewski (1860-1941) como o comediante ucraniano Volodimir Zelenski (1978- ), guardando-se as devidas dimensões, expõem qualidades raramente encontradas em políticos profissionais que, ao conseguirem entrar nessa atividade, não a abandonam. Do lado da Rússia, Putin governa o país desde 1999, devendo permanecer no poder até 2036!!! Alternância do Poder, impossível. Almejo da Grande Rússia dos tempos soviéticos, certamente, mercê inclusive de suas raízes, ligado que foi à temível KGB.

A alternância do Poder evita, entre tantos outros males, a sedimentação de conceitos que tendem a se deteriorar, a acomodação da entourage, o opositor sem voz e a vontade daquele que mantém o Poder como verdade absoluta. A frase, apócrifa talvez, L’État c’est moi, atribuída a Luiz XIV (1638-1715), foi e é praticada por ditadores espalhados pelo planeta, antes e após as sempre lembradas palavras.

Nesse desesperador conflito, Davi combate não contra Golias, mas contra um Colosso de Rodes. Não há a menor possibilidade de que uma simples pedra lançada de uma funda o destrua. Se do lado ocidental a Otan fica impossibilitada de intervir pela não adesão da Ucrânia à Organização, sob outro aspecto a Rússia já rechaçou por duas vezes exércitos numerosos e equipados. Em tempos de Napoleão (1812), expulsou um exército multinacional e, dos 450.000 mil soldados da invasão, 250.000 morreram e dezenas de milhares foram feitos prisioneiros. Entre os russos houve baixa aproximada de 300.000 homens (vide blog “Berezina”, 10/06/2017). A segunda Grande Guerra (1939-1945) assistiu à catastrófica retirada do que sobrou do exército do Führer ao se aventurar em terras da União Soviética. Torna-se inverossímil qualquer tentativa futura das forças da Otan  atacarem a Rússia – pregação defendida pelo Presidente Putin – mormente pelo fato de que o sólido armamento nos tantos países que são signatários da Organização lá está como peças defensivas, caso um Estado seja invadido pela Rússia. Todo o vernáculo proferido nas comissões europeias ou na ONU, assim como sanções impostas pelos países ocidentais críticos à invasão, são paliativos, pois a Ucrânia não pertence à Otan, uma das razões da decisão de Vladimir Putin para a invasão.

A Polônia é o país que mais tem abrigado os refugiados desta insana guerra. Foi invadida e dominada pelas tropas nazistas e, finda a Segunda Guerra, anexada à URSS. Essas duas trágicas situações deixaram marcas e dão margem ao afloramento da acolhida aos infortunados ucranianos. Hoje a fazer parte da Otan, revela-se acolhedora, suprindo essenciais necessidades de centenas de milhares que adentram seu território. Rússia e Polônia têm divergências sólidas que se prolongam. Incontáveis ucranianos dessalojados viverão doravante numa tebaida.

Paradoxal a atitude de Putin nesta premeditada invasão à Ucrânia. Considerados como “povo irmão”, cidadãos ucranianos estão sendo obrigados a se refugiar em países fronteiriços ou a resistir em solo pátrio. Quantos já não morreram! Indiscriminadamente, militares ucranianos e civis estão sendo mortos, sem contar a destruição do rico patrimônio arquitetônico da Ucrânia, assim como de seus edifícios residenciais. Certamente é incalculável o que custará ao invasor a restauração do país ou, parte da Ucrânia, se sob a direção de Zelensky. As cenas diárias são horripilantes e evidenciam os horrores da guerra, palavra proibida na Rússia a respeito do conflito, substituída por outras duas, “operação especial”.

Em plena vigência da URSS, os hotéis Metropol e o gigantesco Ukraína – o mais alto hotel do mundo à época, com seus 34 andares – figuravam entre os dois mais destacados de Moscou. Fosse o ucraniano um povo hostil, teria o establishment dado esse nome ao monumental hotel construído por ordem de Stálin, e cuja pedra fundamental foi fincada em 1947? Lá estive hospedado em 1962 durante o IIº Concurso Internacional Tchaikowsky. À noite, da janela do 25º andar observava os contornos do lendário rio Moscova. Perpassava-me parte da história da Rússia. Após reformas, o Hotel Ukraína presentemente é ainda o mais alto da Europa e integra a rede Radisson Collection Hotel. Fico a pensar na monstruosidade da guerra e, no caso Rússia-Ucrânia, na catástrofe atual, em que “irmãos russos” matam diariamente cidadãos indefesos através de ataques cirúrgicos que impossibilitam respostas. Será que Putin sabe - tenho lá minhas dúvidas - que alguns dos mais notáveis pianistas “russos” da história nasceram na Ucrânia: Vladimir Horowitz (Kiev), Sviatoslav Richter (Jitomir), Emil Guilels e Shura Cherkasky (Odessa), assim como o grande compositor Sergei Prokofiev (região de Donetsk)? Ao menos por respeito ao povo ucraniano, Vladimir Putin deveria propor a substituição definitiva do nome do Hotel icônico Ukraína. Máscaras cairiam.

Clique para ouvir, de Sergei Prokofiev, a Sonata nº 3, na interpretação de Emil Guilels:

https://www.youtube.com/watch?v=ogcbQfOMFa8

Chama-me a atenção, sob outra égide, o retalhamento que o Ocidente faz à cultura russa, o que demonstra o estágio atual das cabeças “pensantes” que elaboram programações pelo mundo. Festivais de cinema suspenderam filmes russos, livros russos estão sendo boicotados, temporada do célebre Ballet Bolshoi foi suspensa fora da Rússia, salas de concerto evitam a apresentação de composições do país litigante, intérpretes russos são substituídos.  Atitudes vergonhosas,  que apenas demonstram a obliteração e decadência da Cultura que se acentuam pelo planeta. A Rússia teve e tem um manancial criativo extraordinário em todas as áreas artísticas. Esses dirigentes das programações, cidadãos que na grande maioria não são músicos, tantos deles oriundos de outras áreas –  industrial, comercial, financeira… – não têm sensibilidade cultural e tentam punir a humanidade privando-a de bens perenes, irretocáveis. A estreiteza humana não tem limites. Punir a cultura russa pelos atos do ditador Putin que sonha com a Grande Rússia é algo absurdo. Neste ano se comemora o sesquicentenário de Alexandre Scriabine (vide blogs: “Alexandre Scriabine”, 22 e 29/01/2022). Deverei interpretar, em turnê em Portugal, dez Poemas do compositor russo. Já está programado. Tocarei.

No plano esportivo, sanções do Ocidente para quase todas as modalidades individuais e coletivas punem os atletas que, com dedicação e esforço, prepararam-se para as competições como almejo único.  Burocratas do esporte agem sem pensar na única razão da existência de seus empregos, os atletas, figuras fundamentais não ouvidas. Os dirigentes, orgulhosos pelas sanções; os atletas vendo estiolar-se a esperança. Sanções comerciais devem existir, mas estendê-las às artes e aos esportes!!!

Finalizando, estou a me lembrar da tragédia de Maurice Maeterlinck, “Pelléas et Mélisande”. Após a morte de Pelléas, assassinado pelo irmão Golaud, o avô Arkël dirá: “Se eu fosse Deus teria piedade do coração dos homens”.

O próximo blog será dedicado ao grande pianista, compositor e estadista polonês Ignacy Jan Paderewski, que bem poderia servir de exemplo a Putin, há mais de 20 anos no Poder a sonhar com a restauração do Império da Rússia. Em Citadelle, de Saint-Exupéry (1900-1944), há conceitos referentes ao Império, que deveria ser edificado a partir do fervor, da responsabilidade e da fraternidade.

Everything is indicating that President Vladimir Putin’s premeditation foresaw the catastrophic events arising from the invasion of Ukraine. Some of the greatest musicians of the 20th century were born in Ukraine and were considered “Russian”. Is this President not touched by the millions of refugees, formerly “brothers”, thousands of dead and the destruction of the country? For such tragedy there is only one culprit.

 

 

 

 

 

Recepção à altura da temática

É a razão desde o parto.
É correr pela vida,
Carregando sempre a morte.
Joan Reventós i Carner
(“Os Anjos não sabem velar os mortos”)

Apesar das dificuldades existentes quando se aborda o tema Morte, a recepção ao último post evidencia o interesse dos leitores por algo inexorável. Todas as mensagens recebidas são relevantes; mas, devido ao espaço a que me proponho, selecionei umas poucas, que correspondem ao conteúdo majoritário dos posicionamentos enviados.

A História está plena de registros da Morte nas artes visuais, música, literatura, nas crenças que eclodiram, feneceram ou sedimentaram-se. Persiste sempre o grande mistério relacionado ao infalível término da existência.

Em consonância com a atitude resignada e em paz, testemunhada pelos que cercam meu amigo-irmão nesse fim insubornável, as mensagens recebidas abordam vários aspectos que transmito aos leitores. A resignação de meu amigo-irmão, imbuído de profunda fé cristã, faz-me pensar na atitude diante da morte apreendida nas várias religiões. Estive com meu saudoso amigo, Álvaro Guimarães (1956-2009), poucos meses antes de sua “partida para a outra margem”, como me escreveu sua esposa, a regente coral Katrijn Friant, pois o amigo músico morou parte da existência em Gand, na Bélgica, lá a constituir família. Álvaro, já nos estertores da vida, dizia-me que estava preparado após ler um livro de Sogyal Rinpoche (vide blog: “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer”, 10/10/2009). O autor escreve: “A contemplação profunda da mensagem secreta da impermanência – aquilo que de fato está além da impermanência e da morte – leva diretamente ao coração dos antigos e poderosos ensinamentos dos tibetanos: a introdução à essencial ‘natureza da mente’. A realização da natureza da mente, que pode ser chamada de nossa essência mais profunda, aquela que todos nós buscamos, é a chave para a compreensão da vida e da morte”.

Heitor Rosa, médico gastroenterologista e professor emérito da Universidade Federal de Goiás, escreveu-me, anexando um texto de Rubem Alves, psicanalista, educador, teólogo e escritor, a ele endereçado e do qual separei alguns segmentos relevantes:

“Li seu artigo sobre a morte e imagino sua angústia pelo inexorável desfecho com seu amigo-irmão. Com minha solidariedade, te envio um artigo que o Rubem Alves me enviou antes de morrer”.

Escreve Rubem Alves (1933-2014):

“Mas, o que é a vida? Um materialismo científico grosseiro define a vida em função de batidas cardíacas e ondas cerebrais. Mas será isso que é vida? Ouço os bem-te-vis cantando: eles estão louvando a beleza da vida. Vejo as crianças brincando: elas estão gozando as alegrias da vida. Vejo os namorados se beijando: eles estão experimentando os prazeres da vida. Que tudo se faça para que a vida se exprima na exuberância da sua felicidade! Para isso todos os esforços devem ser feitos. Mas eu pergunto: a vida não será como a música? Uma música sem fim seria insuportável. Toda música quer morrer. A morte é parte da beleza da música. A manga pendente num galho: tão linda, tão vermelha. Mas o tempo chega quando ela quer morrer. A criança brinca o dia inteiro. Chegada a noite ela está cansada. Ela quer dormir. Que crueldade seria impedir que a criança dormisse quando o seu corpo quer dormir. A vida não pode ser medida por batidas e coração ou ondas elétricas. Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um simples sorriso”.

Eliane Mendes, viúva do notável compositor Gilberto Mendes, escreve:

“De fato, o ser humano se impressiona tanto com a morte, mas não se impressiona com a vida, esse milagre tão maravilhoso, em que cada célula de nosso corpo adquire a inteligência de saber o papel a ser assumido segundo o órgão do qual ela fará parte. Fazendo um paralelo, como você citou tão bem, o mundo inteiro lamentando a morte de pessoas da mídia, e praticamente desconhecendo aqueles que se dedicam a preservar a vida das pessoas, passando quase como anônimos, como os que se empenham na medicina, na descoberta da cura das doenças, ou aqueles que se empenham em divulgar o que há de melhor e mais sábio, como o Nelson Freire, que você citou como exemplo. Há alguns anos li uma pesquisa feita na França com a intenção de saber quem as pessoas consideravam como intelectuais, com grande bagagem cultural, isso na época em que ainda viviam intelectuais de alto nível, como Claude Lévi-Strauss (1908-2009), por exemplo. E, para surpresa de todos, o ‘grande intelectual’, eleito com quase 100% de votos, foi o homem âncora do Jornal da Noite, o que aparecia todas as noites na TV dando as notícias. Daí a mensagem do Sábio, no Tao Te King, dizendo: “O Sábio é aquele que permanece anônimo, sorrindo, observando o ser humano fazer uso de seu conhecimento, pegando para si a propriedade desse conhecimento, apregoando como se ele fosse o dono desse conhecimento”. O que seria de nós sem a Sabedoria da Grandeza da Humildade para fazer frente ao grande vazio da humanidade, não é mesmo, José Eduardo? Que a Sabedoria Divina acolha o seu amigo-irmão neste instante derradeiro, com a percepção da verdade que nos escapa durante nossa vida, dando-nos apenas uma visão muito pequena da razão plena de nossa existência”.

Gildo Magalhães, professor titular da FFLECH-USP, comenta:

“Eu já ficara sensibilizado pela notícia por você adiantada e achei tocante sua mensagem com reflexões sobre a morte, em geral a ‘indesejada das gentes’. Quando se reflete que o objetivo da vida é gerar vida, isto pode soar muito mecanicista, mas não deixa de ser verdade. Só que importa muito o que fazemos com o dom da vida que nos foi dado. E você, em particular, maravilhou-nos todos com a beleza da sua música ao piano, também registada para gerações futuras. E, mais ainda, terá um legado de escritos que espalham um firme humanismo, além de conhecimento e um puro sabor de viver intensamente, mesmo nas minúcias, e penso que seu amigo-irmão também deixará esta marca de sua passagem, transformando o efêmero em duradouro”.

Humberto Lopes, que durante décadas teve função destacada em empresa nos Estados Unidos, em sua mensagem teceu comentários paralelos ao post anterior, em que mencionei a morte trágica da cantora sertaneja Marília Mendonça e a massacrante cobertura da mídia durante praticamente dois dias inteiros, a motivar multidão incalculável, assim como a morte do notável pianista Nelson Freire, que teve uma cobertura, diria, protocolar. Humberto menciona dois exemplos ocorridos nos Estados  Unidos, demonstrando que essa “prática” existe não apenas em nossas plagas.

É possível que estejamos a viver um período de insensibilidade coletiva frente à morte. A pandemia, tendo ceifado incontável número de contaminados, persistindo em ondas sucessivas a dizimar humanos, colocou-nos diante da morte como probabilidade real e “imediata”. As vacinas, mesmo que “incompletas” em suas eficácias, são as únicas vias no momento. Quanto ao meu amigo-irmão, seu mal, após determinada etapa, é inexorável. O homem envia drones a Marte, perscruta ínfima parte do universo, aperfeiçoa tecnologias de maneira vertiginosa e não descobre vacinas contra o câncer. Os séculos passam e o interior do corpo humano continua a ter lá os seus mistérios. Estranho, muito estranho.

I appreciate the numerous messages on a difficult subject. I have separated some of them which highlight positions of interest.

 

 

 

Tema natural, mas sob incontáveis apreensões

A morte dos outros me afeta:
e seu morrer, a sua morte,
são parte da minha vida,
são marcos ao limite último.

Joan Reventós i Carner (1927-2004)
(“Os anjos não sabem velar os mortos”)

Às voltas com momentos críticos que está a passar um de meus mais intensos amigos, amigo-irmão, estive a pensar sobre a morte e a percepção que dela se tem a partir de tantas circunstâncias. Apreendida com naturalidade e resignação, mercê de fatores voltados às religiões; recepcionada na solidão de quem perde um ente querido; exacerbada por multidões quando atinge figuras mediáticas, a morte, sem se importar com essas reações, segue inexorável. Mors certa hora incerta, como reza o latim.

O notável filósofo e musicólogo Vladimir Jankélévitch (1903-1985), em seu livro “La Mort” (France, Flammarion, 1977), a tratar do mistério e do fenômeno da morte, no capítulo inicial, escreve sobre o cotidiano do destino final: “Podemos considerar que o problema da morte seja propriamente um problema filosófico. Se ponderarmos objetivamente e de um ponto de vista geral, não podemos basicamente saber o que seria uma ‘metafísica da morte’; contrariamente, ‘entendemos’ muito bem uma ‘física’ da morte, seja ela referente à biologia ou medicina, sociologia ou demografia: a morte é um fenômeno biológico, como o nascimento, a puberdade e a velhice; a mortalidade é um fenômeno social como a natalidade, o casamento ou a criminalidade. Para o médico, o fenômeno letal é determinável e previsível, segundo especialidades, em função da duração média da vida e das considerações gerais dos meios. Sob o aspecto jurídico e legal, a morte é um fenômeno também natural: nas prefeituras, a seção voltada às mortes é como as outras existentes e, ao lado dela, há uma subdivisão do estado civil, outras para nascimentos e casamentos; o serviço funerário é um órgão municipal, nem mais nem menos do que o das vias públicas, dos jardins públicos ou da iluminação das ruas; a coletividade mantém indistintamente suas maternidades, suas escolas e suas casas de saúde. A população aumenta com os nascimentos, decresce com as mortes: nenhum mistério, simplesmente uma lei natural e um fenômeno empírico normal, ao qual a impessoalidade das estatísticas e dos meios retira todo o caráter de tragédia”. Essa percepção, que condiz com a realidade cotidiana, mesmo que dela muitas vezes não tenhamos consciência, minimiza até certo ponto a extensão da tragédia, a depender de convicções, crenças e idolatrias.

Jankélévitch desenvolve considerações sobre um quadro de Domenico Fetti (1589-1623), “Melancolia” ou “Meditação”, alegoria a representar a Sabedoria meditando sobre um crânio.  Ao ver do filósofo, “não há nada a se pensar sobre a morte e a Sabedoria está tão vazia quanto o crânio sobre o qual ela medita. Diante da morte, o homem está como se estivesse diante da profundeza superficial do céu noturno: ele não sabe o que fazer”.

Deparamo-nos com a morte nesses tempos pandêmicos. Parentes e amigos partiram e legião de infortunados, que não resistiram,  fizeram-me refletir sobre o tema. A apreensão da morte num meio familiar tem uma  dimensão, mas quando atinge figuras amplamente mediáticas recebe por parte da multidão recepção desconcertante.

Estou a me lembrar de três fatos determinantes. Quando do assassinato da atriz de novelas Daniela Perez, aos 28 de Dezembro de 1992, uma turba compareceu à Delegacia e em número maior ao cemitério. O fato serviu para que escrevesse ao jornal “O Telégrafo” da Horta, sede da ilha Faial, pertencente ao Arquipélago dos Açores, pois era correspondente do Suplemento Literário “Antilha” do diário faiense, artigo a responder texto precedente do ótimo poeta da ilha, Heitor Aghá Silva, sobre o malefício que as novelas traziam à língua mãe praticada no arquipélago (vide blogs: “A Voz e o Eco Captados Além-Mar” e “Um trágico amalgamar”, 20 e 27/03/2010, respectivamente). Em “Um trágico amalgamar”, publicado no “Antilha” aos 12 de Março de 1993, fazia referência a essa multidão: “No cemitério ou junto à Delegacia de Polícia, durante dias, um público absurdo buscava vaticinar o veredicto para os réus e, na histeria, idolatrar os mitos vivos que compareciam aos lugares citados”.

A colocação se faz necessária após dias recentes, quando mídias nacionais voltaram-se sem tréguas para noticiário semelhante, ou seja, a trágica morte da jovem Marília Mendonça, quiçá tão ventilada e abrangente como o foram as mortes de Tancredo Neves e Airton Senna! Tantos pronunciamentos de figuras conhecidas profetizando a “eternidade” da jovem cantora. Tancredo Neves faz parte essencial de nossa história e Airton Senna está perpetuado como herói nacional.

Dias antes morria um dos maiores pianistas da atualidade em termos mundiais, Nelson Freire (1944-2021). Sem exagero e sem ter o mínimo conhecimento de “leis” estatísticas, ousaria dizer que a divulgação de sua morte nesses recentes dias talvez tenha correspondido a bem menos de 0,1%, se comparada for à dispensada à morte e ao sepultamento da cantora. Nelson Freire se apresentou durante cerca de 60 anos nas mais importantes salas de concerto do planeta e foi glória absoluta de nossa arte. A perenidade certa já lhe foi garantida, pois Nelson Freire está no panteão onde só os iluminados repousam.

Resignado, cercado de amigos e familiares que o amam, meu amigo-irmão aguarda o momento de partir.

A imagem inicial, “L’arbre des morts”, da artista Jeanne Esmein, inspira-se num poema de Louis Gillaume (1907-1971) que rememora lenda nórdica, segundo a qual, à chegada do recém-nascido, plantava-se uma árvore, futuro esquife a deslizar rio baixo após a existência. A primeira estrofe…

“L’arbre funèbre atteint la pleine mer
il se croit seul quand mille autres l’entourent
offrant leur flambée obscure à la lune”

The critical condition of a friend who is like a brother to me made me think about death. I quote remarks by the noted philosopher Vladimir Jankelévitch on the subject and also comment on the public’s reception of death.