Navegando Posts em Impressões de Viagens

Os 12 Cantos Sefardins como revelação

Deu-se a travessia. Anualmente o destino é a Europa, centrada em três países fulcrais: Portugal, França e Bélgica. Minha faixa etária permite-me a concentração em países de afeto, e estes três me são particularmente caros. Diria que de tantas outras geografias visitadas para recitais ou mais atividades musicais, são eles os que permanecem vivos em meus anseios. Nesta viagem, apenas Portugal, que está a aguardar a primeira apresentação em seu solo de obra-prima do grande compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994), os 12 Cantos Sefardins para canto e piano. Apresentados em primeira mundial em São Paulo, em Outubro último. Na série de quatro concertos em cidades portuguesas, o ciclo tem a mezzo-soprano Rita Morão Tavares na difícil interpretação em ladino,  acompanhada por mim numa escritura singular para piano. O idioma ladino, também nomeado sefaradi, teve suas origens ao final do século XV, período em que os judeus foram expulsos da Espanha. Era falado na península ibérica pelo povo judeu. Em Portugal aguardam a obra com ansiedade. Sob aspecto outro, a apresentação de duas outras criações para piano solo, Canto de Amor e de Morte e Viagens na Minha Terra, pela segunda vez interpretadas por este pianista em solo português, desperta interesse. Longamente gestado, o datashow sobre Viagens…, preparado pelo professor e musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso, penetra no afeto mais profundo de Lopes-Graça, o povo mais simples das aldeias, freguesias e vilas do país. À medida que as 19 peças que compõem a coletânea forem interpretadas, uma imagem a situar a localidade, geralmente distante das cidades, será apresentada com mínima, mas pertinente, referência. Canto de Amor e de Morte, reiteradas vezes por mim citado em blogs, é ao meu ver uma das mais importantes criações para piano da segunda metade do século XX em termos mundiais. Só de pensar que o original para piano, que daria motivo para duas versões posteriores realizadas por Lopes-Graça, estava depositado no acervo do compositor, localizado no Museu da Música Portuguesa, com a palavra “inutilizar” assinalada pelo compositor – tardiamente a meu ver -, dá o que pensar. A obra-prima que não pode ficar oculta. Graças ao estudioso Romeu Pinto da Silva, autor da magnífica Tábua póstuma musical de Fernando Lopes-Graça, que me envio o original para piano e as duas versões posteriores (camerística e orquestral) Canto… veio à luz, já apresentada e gravada para o selo PortugalSom/Numérica. Realmente comove-me sempre executá-la, tal a intensidade emotiva que depreende da criação austera, de difícil percepção inicial para o grande público. Diria que em 1961 Lopes-Graça descia à mais profunda introspecção, causada por tantos fatores…

Este blog, como sempre, está à disposição do leitor a partir dos cinco minutos de sábado. Pretendo inserir um adendo já no dia sete, a comentar a entrevista que o professor Pedrosa Cardoso e eu concedemos ao respeitado programa Antena 2 da RDP e o recital em que a primeira audição em Portugal dos 12 Cantos Sefardins se deu.

 

Um Fim de Semana a Ficar Gravado

Ora et Labora
Fundamento da Ordem de São Bento

Nossa filha Maria Fernanda há anos insistia para que fizéssemos um retiro no Mosteiro São João, em Campos do Jordão. Resistia sempre à ideia movido por afazeres do cotidiano, que existem apesar da aposentadoria universitária em 2008. A Música não cessa e assim será, textos solicitados para publicações internacionais prosseguem, o blog é sistemático, a fazer parte da respiração, e a corrida de rua, incluindo treinamentos, a grande descoberta desde 2008. Portanto, o apelo da filha, netas e genro passava sempre ao largo. Enfim, acabei cedendo.

Conhecia bem Campos do Jordão. Por seis vezes apresentei-me no Festival de inverno (décadas de 1980-1990) e, apesar de sentir-me bem nessas apresentações, sempre me incomodava uma certa afetação existente na vida da cidade devido ao afluxo de turistas, na maioria pseudamente envolvidos com a Cultura, descaracterizando o ambiente, a dar-lhe uma atmosfera sensível de esnobismo vão. Comércio, restaurantes e outras atrações buscam transmitir uma sensação alpina, resultando num nítido artificialismo, quando seria possível atrair esses turistas imprimindo características típicas da região, como aliás assim procedem cidades ao sul do país.

Em Agosto, fora da grande temporada, a vida parece que volta à normalidade e outra categoria de turista aflui a Campos de Jordão aos fins de semana. Diferente. Visitantes chegam geralmente em caravanas, retornando às suas respectivas cidades no próprio dia ou no domingo.

A Ordem de São Bento (Ordo Sancti Benedicti), fundada em 529 por São Bento de Núrsia (480-547), é a mais antiga Ordem religiosa do ocidente e uma das maiores Ordens católicas existentes, criadora da Regra de São Bento (Regra Benedicti), conjunto de preceitos que direcionam o comportamento da vida monástica. Entre esses: castidade, obediência, ensino, abrigo aos peregrinos, assistência ao menos favorecido. PAX é um dos lemas da Ordem. O retiro no Mosteiro Beneditino faz bem ao corpo e à alma. Respira-se paz e… ar puro. Há um verdadeiro bosque muito bem cuidado a circundar toda a área, aberta ao público aos fins de semana, pois na belíssima e austera igreja celebram-se missas com a frequência de fiéis de várias procedências. Se fosse escolher do que mais gostei, diria que foram as preces que as irmãs beneditinas realizaram ao final da tarde de sábado. A Iª Solenidade das Vésperas da Assunção de Maria nos conduz à meditação. Como não entrar em comunhão com o canto gregoriano cantado pelas 29 monjas, presididas pela Superiora? Convidado pela abadessa, toquei dois corais de J.S.Bach (órgão eletrônico) na entrada e na saída das monjas. A cerimônia religiosa tem duração aproximada de uma hora.

Sentar-se em um dos bancos espalhados pela área fartamente arborizada, ler e escrever, ouvir os muitos e variados pássaros levam aquele que frequenta os espaços do Mosteiro à interiorização, mormente se vindo das grandes cidades. Se distrairmos o olhar, é reconfortante a visão das monjas em seus afazeres cotidianos, que não são poucos.

Em uma das conversas com uma das monjas, comentamos as representações das imagens de São Bento. Sanctus Benedictus, tendo-se livrado de duas tentativas de envenenamento, dimensionadas pela literatura e oralidade através dos séculos, está acompanhado, em determinadas esculturas, estampas e medalhas, pela presença do corvo com um pedaço de pão no bico – o pássaro que faz lembrar a morte em tantas lendas e contos do hemisfério norte – e da serpente, corroborando o imaginário. A Ordem dos Beneditinos chegou às nossas terras em fins do século XVI. Tracei um breve relato concernente ao Vale do Paraíba, pois beneditinos transmitiram aos moradores dessa extensa região montanhosa a história de São Bento. Para o santeiro – homem simples do campo -, que aprenderia a arte da confecção de paulistinhas (imagens de barro cozido) e aquelas em madeira com habilidosos artesãos da Ordem,  a escultura de São Bento teria a entrelaçá-la uma serpente, que poderia ser cobra coral, jararacuçu, urutu, jararaca, entre outras. O santo estaria doravante a proteger os campesinos das picadas de serpentes peçonhentas, escorpiões, aranhas e marimbondo caboclo ou fogo.

Dois dias apenas no Mosteiro, onde permaneci caminhando ou lendo, enquanto Regina, filha, netas e genro encontravam passeios agradáveis pela cidade. Não obstante, em manhã plena de sol realizamos um passeio de trenzinho de Campos do Jordão até Santo Antônio do Pinhal. Entre ida e volta nesse mini comboio de um só veículo foram duas horas e meia. Lentamente, o trenzinho percorre, sacolejando, os 19km até Santo Antônio do Pinhal, permanece meia hora para visão de panorâmica do Vale do Paraíba no mirante e degustação de renomado bolinho de bacalhau, retornando após à cidade. Fico a pensar, ao olhar a imensidão de uma infinitesimal parcela de nosso  território verdejante e montanhoso,  e vem-me à mente frase do notável intelectual português António Cândido (1850-1922) e que me foi enviada pela saudosa e ilustre gregorianista Júlia d’Almendra “É que, à beira-mar, eu tenho que escutar o mar, mas na montanha é ela que me escuta”.  Acrescente-se que António Cândido se notabilizaria, entre outras atividades, como notável orador.

Estávamos para partir quando desce de um pinheiro um gracioso esquilo. Permanece estático durante poucos segundos, mas não escapa do reflexo rápido de Maria Fernanda, que o fixa em bela foto.

Certamente regressaremos ao Mosteiro São João. Bálsamo para a mente, invadida diariamente pelas notícias de um país completamente à deriva. Dá-nos força para enfrentar o cotidiano, as atividades às quais nos dedicamos e à família, que o Sistema teima em desagregar. Sanctus Benedictus…

A weekend in Campos de Jordão, the highest city in Brazil., located in the mountains about 180 km from São Paulo. My family and I stayed at Mosteiro de São Bento (St. Benedict Monastery), an island of peace and quietness in the heart of this tourist town. Two days reading, writing and listening to the birds in the woods that surround the monastery are a soothing balm to the soul, giving me strength to meet the challenges of living in a country misruled to the point of political and economic collapse.

 

 

 

Bélgica e Portugal em Pauta

Não sou um optimista.
O que sou é determinado naquilo em que me apetece ser determinado,
e continuo convicto até entender que a convicção estava errada e tenho de mudar.
Mas isso não tem acontecido muito.
Agostinho da Silva

O evento a comemorar os vinte anos da Associação Lopes-Graça na Câmara Municipal de Moita foi marcado por muita emoção. Houve jantar a preceder breves intervenções de cinco membros escolhidos pela Associação. Fui um deles e enfatizei o vergonhoso desconhecimento que se tem no Brasil de Fernando Lopes-Graça, a meu ver, ao lado de Villa-Lobos, um dos nomes maiores da composição luso-brasileira em toda sua história. Sem primazia alguma. Dois coros se apresentaram, o Alius Vetus e o da Academia de Amadores de Música caríssimo a Lopes-Graça, e dirigido amorosamente por José Robert.

Em termos brasileiros, nossos músicos não frequentam a obra de Lopes-Graça e nem sequer a música de concerto portuguesa, com raríssimas exceções. Mesmo a popular, o fado, fica restrito basicamente ao culto que lhe professam descendentes lusos. E de pensar que esforço considerável tem sido realizado quanto às edições e gravações de Lopes-Graça em Portugal, sem que se sensibilizem consciências musicais no Brasil. Recentemente foram editadas as “Músicas Festivas” para piano, coletânea com as 23 peças gravadas recentemente pelo notável pianista português António Rosado. A Associação Lopes-Graça presenteou os participantes da mesa que se pronunciaram antes do concerto coral, com duas gigantescas caixas contendo as 267 Canções Regionais Portuguesas (coro a capella) reunidas em 24 cadernos!!! (Fermata, Associação Lopes-Graça). O revisor da obra, José Luís Borges Coelho, músico competente em várias áreas, escreve texto a dar a ideia geral da planificação do conjunto magnífico das Canções e cita depoimento de Lopes-Graça a justificar a recolha dos cantos e suas adaptações esmeradas e fiéis ao impulso original da manifestação vocal popular.

Em resumo, a tournée pela Bélgica e por cidades portuguesas atingiu objetivos almejados. Os longos dias a gravar na mágica capela de Sint-Hilarius em Mullem, sempre perdida na planura flamenga, o recital em Gent, assim como as masterclasses e recital em meu outro templo europeu, a Academia de Amadores de Música em Lisboa, a apresentação precedida de palestra na Canto Firme de Tomar ficaram registrados em minha memória.

Na tarde de 13 de Maio, o encontro com alunos e professores na AAM da capital portuguesa, a versar sobre a obra para piano de Henrique Oswald, quando falei e toquei inúmeras obras do mestre, ratificou em alunos e professores a ascendência francesa na escrita do autor de “Il Neige”.

Foram três semanas de intensa atividade musical na Bélgica e em Portugal. Após a sequência de eventos, os amigos diletos, musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso e Manuela, e mais a gregorianista Idalete Giga, levaram-nos a passeios que sempre trazem captações que o olhar  não assimilou anteriormente. O Convento de Mafra; Sintra e seus palácios, moradias e o Castelo dos Mouros; Queluz e seu palácio, que nos faz pensar sempre, miniaturizado, no palácio de Versalhes, foram visitados e os diálogos que travamos com tão cultos amigos ainda nos levam a acreditar que a preservação do belo é o eixo de equilíbrio de que necessitamos frente ao mundo atual.

Regina e eu ainda assistimos à missa na Igreja de Santo Antônio em Lisboa, junto à Sé. O coro, dirigido por Idalete Giga, transporta o fiel, fá-lo estabelecer um elo com o Criador. A absoluta segurança e a leveza com que Idalete conduz os cantos gregorianos fazem-me lembrar de sua mestra, a grande gregorianista Júlia d’Almendra, figura ímpar na cultura portuguesa, que nos deixou em 1992. Idalete é sua herdeira legítima, insofismável, e tem com coragem e competência mantido a chama desses cantos que, desde a Idade Média, elevam o ser humano, cristão ou não.

Algumas imagens recapitulam a digressão intensamente musical. Não seguem uma ordem cronológica. Outra longa digressão já está sendo agendada. Novos projetos. Oxalá vinguem. Assim contamos.

Apesar da intensidade houve espaço para a prova de rua em Ninove, entre Gent e Bruxelas, já mencionada em um dos posts anteriores. Frio de 5°, vento cortante e chuva. Tineke, esposa do excepcional engenheiro de som, Johan Kennivé e eu participamos. Alegria contagiante. Nossos tempos registrados foram compatíveis.

This post is a summary of the musical and “sports” activities taking place during my recent trip to Belgium and Portugal.