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Um Regresso Amoroso

A noção da composição não pode ser isolada da execução,
a qual comporta evidentemente uma parte do autor e uma do intérprete.
Essa colaboração é mais ou menos estreita e se estabelece numa larga escala.

André Souris (1899-1970) compositor belga

Houve tempo em que, ao citar um fato de blog anterior, citava-o, assinalando a data. Oito anos passados de blogs ininterruptos fazem-me menos preciso quanto à localização de determinada abordagem. É humano, mormente quando os anos vão se acumulando.

Já devo ter mencionado que, após recital em Gent na década passada, um representante de um dos selos mais conhecidos do planeta teve uma conversa amistosa e convidou-me a dialogar com seus superiores no sentido de gravar para a prestigiada casa. As minhas três perguntas: poderia escolher repertório, gravar na Capela de Sint-Hilarius, escrever os textos de meus CDs, que sempre pertencem a uma temática específica? A resposta foi peremptória, a não deixar dúvidas, não. Nessa grande organização, tudo é cuidadosamente planejado, tanto na escolha do que deve ser gravado, local que pode ser Cingapura, Estocolmo, Toronto… e escritos dos encartes a critério da empresa. Enfatizou que, sob contrato, meu nome teria boa divulgação, pois a tiragem desse selo era imensamente superior à da De Rode Pomp. André Posman, diretor do selo belga, passava exatamente naquele momento. Beijei-lhe o rosto e disse-lhe que continuaríamos nossa trajetória, para desaponto do representante. O silêncio que se seguiu após minha observação mostra bem que grandes organizações nunca compreendem a recusa, pois propostas para eles são irrecusáveis. A frase antológica de Saint-Exupéry tem seu sentido: “A vaidade não é um vício, é uma doença”. Sob outra égide, o convite pressupõe mérito, e aqueles que o aceitam estão plenamente cônscios de que a possível porta aberta para a carreira, a divulgação maior, o número maior de apresentações  evidencia a realização sonhada. Rigorosamente não tenho nada contra essa atitude natural do homem.

Entendo que o local eleito para gravação,  o engenheiro de som Johan Kennivé – mestre absoluto do som – e o entorno flamengo fazem parte de meu de profundis. Nossa curta passagem pela Terra pode tornar-nos seletivos, mesmo que notoriedade e divulgação fiquem sacrificadas. Sendo Gent-Mullem tebaidas inefáveis, nada me seduz a mudar. Há inclusive, nesses quase 20 anos de gravações, uma rotina prazerosa que atenua a concentração absoluta que acontece durante o ato da gravação. Nos poucos momentos livres há museus que expõem magníficas coleções dos grandes pintores da Escola Flamenga e da Arte contemporânea, há monumentos por toda parte no centro da cidade e é só ter o tempo necessário para visitá-los. Raramente deixo de visitar a Catedral de Saint-Bavon, cuja menção mais antiga remonta ao século X. A Catedral abriga tesouros da arte sacra e, como obra a preponderar, há o políptico “O Cordeiro Místico”, dos irmãos Hubert e Jan van Eyck, uma das mais importantes criações da arte pictórica de todos os tempos. Extasio-me diante dessa obra-prima. Nessa atmosfera gantoise, que nos envolve e seduz, a mente prepara-se para as gravações. Impossível não sentir os eflúvios, pois Gent é História e a evolução da arquitetura em seus estilos através dos tempos  (romano-poucos vestígios-, gótico, renascentista, barroco, rococó, clássico e os que surgiram nos séculos XIX e XX), dá-nos a possibilidade de apreender as várias etapas artístico-construtivas da esplêndida cidade.

Andar pela Gent medieval tem seu charme, pois há canais, típicas construções, gaivotas com seus “cantos” estridentes, jovens e adultos rodando em bicicletas com a mais extrema segurança, pois não só os Países Baixos são planos, como a educação do povo hors série. Nada foi imposto. Chegaram sem alardes a esse transporte e, como já observava La Rochefoucauld, “tudo acontece naturalmente”. A dimensionar minha relação amorosa com a cidade, as amizades profundas, dádiva absoluta.

Sem ter os requintes e a pujança dos monumentos de Gent, a pequena capela Sint-Hilarius, em Mullem, é meu porto seguro sonoro. Distante uns 30km de Gent, perdida na planura flamenga, Mullem abriga cerca de 300 habitantes. Sei que as paredes da Capela, que remontam ao século XI e que presenciaram e ouviram tantas sonoridades ao vivo, são acolhedoras. O piano fica posicionado abaixo da torre, quase junto ao altar. Johan Kennivé sabe como poucos encontrar o equilíbrio de sua aparelhagem para a melhor recepção de minha interpretação. Amálgama.

 

 

A Capela de Sint-Hilarius em Mullem, na Planura Flamenga

Devemos o que temos a duas espécies de homens:
os que trabalham por gosto,
embora na maior parte das vezes o gosto lhes fosse turvado por outros homens,
e os que sem gosto tiveram de trabalhar nas tarefas impostas.
Agostinho da Silva

Desde 2010 não gravava na Bélgica. A partir de 1995, anualmente visitava o país para gravações e recitais; mas com a interrupção das atividades da De Rode Pomp, excepcional organização que realizava a cada ano cerca de 130 recitais, concertos, gravações e palestras na cidade de Gent, houve um espaçamento. Foram 22 viagens durante esse período! O retorno à cidade que aprendi a amar por todas as oportunidades que lá tive, entre as quais os numerosos CDs gravados e lançados pela De Rode Pomp, traz-me uma alegria profunda. Rever amigos diletos, conviver com músicos e pensadores íntegros e competentes é motivo dessa feliz ansiedade.

Ivan, um bom amigo, questionou-me, poucos dias antes da viagem para Gent, qual a razão da Europa se resumir, hoje, a apenas três países em minha agenda, d’après meus blogs. Respondi-lhe que três aspectos são essenciais. Primeiramente, minha atividade pianística sempre foi, de maneira voluntária, low-profile e essa situação jamais me incomodou, pois adequada ao meu modo de ser. De certo modo, a categoria low profile tem de ser impulso natural e não impositiva ou resultado de traumas ou desilusões. O ato voluntário de escolha deve pressupor harmonia com a existência, um estado de espírito e de ação.  Em segundo lugar, os 76 anos fazem-me pensar no período da síntese e, se tantos países foram visitados para apresentações ao longo, concentrar-me nestes últimos anos na Bélgica, França e Portugal reconforta-me. Finalmente, nesse terço final do existir, a escolha tem razões musicais e afetivas e essas contam, e muito. Bélgica-Gent-Mullem fazem parte do registro da memória e, como dizia meu dileto amigo gantois André Posman, “é aqui que sua herança musical está sendo fixada através das gravações”. A França, por um passado que remonta a 1958 e que me ligou decididamente à música francesa. Portugal, pela paternidade bracarense e pela infinita admiração por sua música do barroco aos nossos dias. São meus países de afeto, pois amizades estão profundamente enraizadas.

No repertório que fará parte dos dois CDs que gravarei, obras rigorosamente contrastantes. Se o primeiro será inteiramente dedicado aos “Estudos Contemporâneos” para piano, fechando um longo ciclo de 30 anos de convites a compositores meritosos, sem contar contribuições espontâneas de vários outros, um segundo CD terá como fulcro obras de nosso romântico maior, Henrique Oswald (1852-1931). Verdadeiras joias musicais serão gravadas e entre elas várias inéditas da lavra oswaldiana. Se o CD dos “Estudos Contemporâneos” já teve longos comentários em blogs imediatamente anteriores, o dedicado a Oswald se caracteriza pela excelsa qualidade das criações. Folga-me verificar que perpassa em tantas das peças, a grande maioria com titulação francesa, essa atmosfera nonchalante do fim do século XIX. Oswald foi um melodista da cepa, extraordinário. A sua escrita pianística é clara, mas a interpretação de suas obras merece um cuidado extremo em quesitos essenciais: dinâmica, articulação e agógica. Busco sempre, ao tocar criações de Oswald, encontrar a flexibilização a mais fluida, pois qualquer tratamento menos envolvente torna sua obra engessada, sem respiração.

Quantos não foram os motivos para me lembrar da Capela Sint-Hilarius, em Mullem. Se fatos variavam, a essência essencial para que as pegadas através das gravações ficassem registradas sempre foi a mesma. Johan Kennivé, mestre irretocável como engenheiro de som, este pianista e as paredes milenares e cúmplices da Capela abrigando as sonoridades que ecoam pelos espaços. Há mística em Sint-Hilarius, razão primeira para preferenciá-la desde a década de 1990. Creio igualmente que a personalidade tranquila de Kennivé promove o amálgama. Paradoxalmente, inexiste o relógio do tempo da gravação, que se pode prolongar até que este intérprete entenda necessária a interrupção. Psiquiatra de formação, antimercantilista por vocação, Johan registra os sons, aconselha seus microfones e a parafernália eletrônica, interrompe-me ao sentir que uma xícara de chocolate quente e fatia de torta de maçã, cuidadosamente preparada por sua mulher Tineke, far-me-ão bem. Como não estar na mais profunda harmonia com essa atmosfera criada? A música agradece. Sei que essa será a rotina prazerosa de intensa dedicação, pois os aspectos mencionados deverão se repetir, assim espero. O repertório é sempre renovado, diria, basicamente inédito, mas a compreensão das obras em questão dá-me a certeza de que estamos diante de criações excepcionais. Na medida em que desdobramentos da estadia na Bélgica e em Portugal forem acontecendo, transmitirei ao leitor, que, em meu primeiro post de 2 de Março de 2007, foi convidado a ser partícipe e cúmplice de meus blogs. Continuemos.

E seguimos rumo a Gent…

This post addresses my forthcoming trip to Belgium to record two CDs: one with contemporary Etudes and another entirely dedicated to works by the Brazilian composer Henrique Oswald. I’m looking forward to meeting old friends and the magic scenario of St. Hilarius chapel, in Müllem.

 

 

 

 

 

Subtítulo do Livro: “L’Aventure Continue”

A rosa imagina, talvez,
que seu perfume a absolva de seus espinhos.
Sylvain Tesson

A constante presença das mensagens transmitidas pelo excelente compositor e pensador francês François Servenière tem suas razões. Aos sábados pela manhã, ao abrir meu computador, já lá está o e-mail do dileto amigo a comentar e enriquecer o conteúdo do blog. As horas de defasagem Brasil-França explicam parte dessa presteza. Soma-se a cultura abrangente de Servenière, que lhe possibilita inserir  novo olhar, pleno de clareza, a subsidiar comentários argutos e pertinentes. Ambos somos profundos admiradores da magnífica obra de Sylvain Tesson que, nos percursos pelo planeta, sabe filtrar essencialidades. Portanto, é com prazer que partilho com meus leitores as reflexões argutas de François Servenière.

“Sublime livro que eu devorei há 10 anos atrás em apenas um dia, como um doce preferido desde a juventude e com o apetite de um faminto. Sempre preferenciei a geografia à história, contrariando legião de historiadores. Esses pretendiam superioridade interdisciplinar, acreditando que a história domina a geografia desde sempre, que os homens e sua vontade arbitram os elementos… Li numerosas obras sobre geografia, apaixonado como você pelas paisagens, estepes, desertos, mares e civilizações que surgem. Como você, eu descobri Sylvain Tesson, presidente da Sociedade de Exploradores Franceses, Sociedade da qual gostaria de ser membro após realizar projetos em mente. Sei que você leu quase toda a obra de Tesson.

Particularmente gostei do livro em pauta pelo fato de que ele coloca a geografia em primeiro plano, tese que eu sempre defendi, pois ela molda as sociedades humanas bem antes da história. Condiciona os modos de vida, os comportamentos, as regras e, após, as leis. Dizia recentemente que o Islã (não se trata de ser original, mas é bom relembrar) era incompatível na sua forma original com a Europa por uma razão apenas. O Corão, um texto originário do deserto e produzido conforme obrigações necessárias à vida naquelas terras. Seria fácil compreender. Uma sociedade e as leis de países férteis têm pouco a ver com uma sociedade e leis de países desérticos. Não se trata de juízo de valor, pois o caráter e o comportamento dos povos e das pessoas são diferentes. O stress hídrico, o sol, as tempestades de areia e o calor resultam em povos com outros anseios comparados àqueles nascidos sob outra condição climática.

Não sei por que nossos políticos não têm essa inteligência dos exploradores. Fariam melhor se lessem ou escutassem Sylvain Tesson, ao invés de dizerem bobagens a todo instante sobre uma religião que eles não compreendem em sua essência, unicamente para a manutenção do poder e de suas poltronas aquecidas. Que falta de curiosidade, que falta de pertinência, reflexões e decisões; que distanciamento do povo que deveria ser ouvido; que cinismo!!! Os políticos são cegos em todos os rincões e sempre, de maneira voluntária em primeiro lugar e, após, naturalmente. O poder é cego e o político não vê, não ouve e não compreende mais nada. Essa situação tornou-se ontológica na Europa, ligada à burocracia que asfixia tudo, diria, quase letalmente. Sabemos que os povos estão revoltados, em todos os lugares. Isso poderá explodir.

Sylvain Tesson nos dá o recuo do tempo vindo do deserto e da longa estrada. Que inteligência, que pertinência, que lição de história! Comparado com os que vivem nas torres de marfim, nos escritórios ministeriais, mais preocupados com a nova máquina de café ou com o funcionamento do ar condicionado. É isso, meu caro amigo! As fotos tiradas pelos satélites focalizando o Mar de Aral deixam-me entristecido. Como marinheiro, eu teci minhas reflexões. Vi fotos de cargueiros que antes navegavam pelas águas, hoje deitados em leitos de areia, tendo perdido toda a esperança do retorno à suas origens, razão da existência. De singradores dos mares, estendidos presentemente como esqueletos de animais mortos sob o sol do deserto. Cenas que me trazem lágrimas aos olhos. Você sabe o quanto um barco é caro ao espírito do marinheiro, ‘homem livre sempre amará o mar’. O barco é o instrumento de sua liberdade. Matar o instrumento é matar a liberdade. O Mar de Aral era um paraíso antes do desvio criminoso dos rios empreendido pelo poder centralizador, totalitário e imbecil da União Soviética. Verdadeiro crime contra a humanidade. Há muitos outros. Nos Estados Unidos, a barragem Hoover, do Colorado, unicamente para alimentar Las Vegas e sua consumação excessiva de água, é indecente. A biologia do Golfo da Califórnia transformou-se, os pescadores locais passam dificuldades e o Colorado chega ao mar com déficit inferior ao de um rio menor em França. O lago Mead baixou 40 metros em relação ao nível original depois da construção da barragem. Verdadeira calamidade! Certos homens, determinados sistemas são os verdadeiros predadores da natureza. Como pará-los, sobretudo quando têm o poder?”. Há tantas posições divergentes aos projetos da transposição do Rio São Francisco e da Usina de Belomonte no Brasil. Projetos megalômanos não teriam no cerne interesses outros? O tempo, insubornável, dirá.

Continua Servenière “Adoro também a maneira como viajantes e exploradores têm de redesenhar mapas, realística e sentimentalmente. Um outro componente mágico em ‘La Chevauchée des Steppes’ é a integração de Priscilla Telmon com a medicina etnológica. Ela oferece-nos as chaves da compreensão das primeiras formas médicas, das carências patológicas para a luta contra insetos, bactérias e ácaros, pureza da água e dos alimentos, dados esses tão distantes de nossos hospitais e sociedades tecnologicamente ultramodernas… mas infestados de bactérias e de vírus. Doenças de toda espécie, perda de resistência frente às múltiplas formas virais e bacteriológicas antigas (a história de Sylvain Tesson que você relata no post anterior). Há pouco tive experiência junto a um hospital da Normandia. Visitava um amigo hospitalizado por problemas cardíacos e, ao conversar com o médico, falei-lhe de fato comprovado relacionando lua cheia e maré alta com o aumento de distúrbios humanos, inclusive concernentes à hospitalização. Retrucou o respeitado médico “Eu sou um homem da ciência, senhor” e de bate pronto afirmei que eu também era. Sylvain Tesson e Priscilla Telmon, estou certo, teriam berrado frente à afirmação do cirurgião! Dramas psicosociológicos de nossas sociedades superorganizadas, onde a inteligência não tem mais qualquer contato com a natureza… Esquecimento e ocultação voluntária e construtivista de nossa origens, psicanálise lógica e provável a advir do mundo e de seus indivíduos. Seríamos ainda naturais e teríamos esse direito? Certamente seremos sempre seres biológicos, afeitos ao que gira ao nosso redor!

Magnífico livro! Seu blog reitera brilhantemente a assertiva”. (tradução J.E.M.).

Last week’s post, “La Chevauchée des Steppes”, deserved extensive comments from the French composer François Servenière, like me a great admirer of the adventurer Sylvain Tesson, who travels the world observing different ethnic groups and their customs, man-made environmental disasters and the fate of our natural habitat. Relevant as ever, Servenière’s comments have a strong interest, since they offer a fresh perspective on topics covered by this blog.