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A Música como Companheira de Horizontes a Desbravar

Recital no Musée Debussy, Maison Natale de Claude Debussy, 11/01/2014. Vê-se ao fundo o célebre quadro do compositor pintado por Jacques-Émile Blanche e a foto da notável pianista e professora Yvonne Léfebure. Foto: Regina. Clique para ampliar.

Vim assim a descobrir uma nova verdade:
que é vão e ilusório ocuparmo-nos do futuro.
Que a única operação válida é exprimir o mundo presente.
E que exprimir é construir, com a discordância presente,
o rosto uno que a domina, é criar o silêncio com as pedras.
Qualquer outra pretensão não passa de vento de palavras…
Antoine de Saint-Exupéry (Citadelle, cap. XX)

Ao longo das últimas décadas, reiteradas vezes neste espaço observei que a música me acompanha sob a égide do inusitado. Sentir-me-ia desconfortável se tivesse de atravessar o oceano para repetir indefinidamente os mesmos repertórios. Se, ocasionalmente, isso ocorre, esteja certo o leitor, é pelo fato de que algo extraordinário motivou a repetição. Seria essa a postura, talvez sob outro contexto, que me faz estar tão próximo da ação e do pensamento contidos nas obras de Sylvain Tesson, o wanderer ou vagabond, eremita por vezes, que não se permite a trégua num mesmo lugar, pois sua mente e seu corpo exigem que fronteiras sejam transpostas. Todavia, Tesson não poucas vezes observa em seus livros que não há necessidade, para tal mister, de que a geografia seja outra, mas sim que haja intenção de propiciar a viajem da mente. No meu caso, para partituras não percorridas anteriormente ou, então, em esporádicas revisitações, há a presença de um novo olhar do wanderer musical. Fundamento essencial, a curiosidade. Percorrer o planeta desconhecido ou visitar a criação inédita – insisto sempre, qualitativa – não têm um princípio básico? O que acredito impossível para o meu pensar é repetir-me, seguindo rotina aceita mundialmente, ad infinitum. Essa atitude é possível, extremamente comum, e o intérprete, nesse caso, vai ao encontro daquilo que o público, acostumado à rotina repertorial, quer ouvir. A meu ver, é missão do intérprete revelar obras de qualidade, que mereçam, vir à luz.

Voltava às cidades já visitadas durante decênios, exceção à Saint-Germain-en-Laye. A ligação amorosa que mantenho em França com amigos, alguns do final da década de 1950, traz-me a lembrança de encontros passados, sedimentados na amizade sem subterfúgios, que leva ao pleno congraçamento. Sabem eles que, ao chegar, sou o mesmo de sempre, mas também entendem que mensagem pianística renovada faz parte da bagagem. É ilimitada a alegria que este intérprete sente ao se deparar com o novo de valor, seja ele de outrora ou do presente. O acervo acumulado através das décadas faz antever a nova leitura, e processos, utilizados por tantos nos vários períodos da história, são luzes a indicar caminhos.

Recital no Musée Debussy, Maison Natale de Claude Debussy, 11/01/2014. Foto: Regina. Clique para ampliar.

O recital em Saint-Germain-en-Laye transmitiu a mensagem às várias gerações. Sou sempre admirador da obra de qualidade que atinge o coração do ser humano, mesmo a criação contemporânea quando administrada por talentosos compositores, conscientes e, sobretudo, sinceros. A menina que, após ouvir as duas extraordinárias obras lúdicas de Debussy e Moussorgsky, procurou-me a dizer que gostara imenso das duas composições, não sintetizaria a  apreensão da mensagem?

As crianças entenderam a mensagem lúdico-musical. Recital no Musée Debussy, Maison Natale de Claude Debussy, 11/01/2014. Foto: Regina. Clique para ampliar

Nessa passagem pela França tive a felicidade de conhecer pessoalmente Alexandre Martin-Varroy, jovem artista cênico que tão bem elaborou textos a respeito do repertório apresentado. Sua leitura a anteceder as obras de Debussy e Moussorgsky entusiasmou o público. Dias após, no Théatre Trevise,  fomos vê-lo na peça teatral, musical diria, Ce soir,  il pleuvra des étoiles. Excepcional seu desempenho como autor, cantor, ator e mímico.

Contatos foram mantidos em França e Portugal e, para 2015, estarei a gravar na Bélgica dois CDs com inéditos da atualidade e do passado. Também apresentarei música de câmara com piano em Paris, além de três artigos a serem publicados na capital francesa, já em processo de ebulição. Entender a passagem dos anos com naturalidade e estar grato a um Poder Maior por continuar no caminho traçado desde a infância. Contudo, importa-me o presente, pois através dele poderei edificar as interpretações almejadas.

Se hoje apenas três países fazem parte de meu universo musical, Bélgica, França e Portugal, diria que diferenças teriam de existir entre eles, a partir da gastronomia, como exemplo “palatável”. Impossível que não fosse igualmente na criação musical. Gent e Mullem na Flandres permanecem na minha memória, e lá gravar é ter a certeza de estar num epicentro extraordinário para esse mister. Profissionalismo absoluto, a corroborar com o pensamento sem subterfúgios dos músicos do pequeno país. Paris, local de meus estudos na juventude, permanece como guia mestra nos aprofundamentos, décadas após, relacionados à música francesa. Os seis CDs a ela dedicados, mais artigos sistemáticos em revistas arbitradas, acentuam o compromisso. Témoignages, livro publicado pela Université Sorbonne no final de 2012, traduz o envolvimento.

Quanto a Portugal, as relações musicais profundas estão espalhadas nestes quase sete anos de posts publicados no blog. Também seis CDs gravados na Bélgica a envolver a música portuguesa, do barroco aos nossos dias. Ir a Portugal para recitais e palestras é parte do todo a envolver o enriquecimento a partir dos longos diálogos com musicólogos portugueses, intelectuais e outros amigos que pertencem ao meu universo de afetos, assim como o conhecimento de composições lusíadas e obras literárias ainda não percorridas e que estão a me surpreender permanentemente.

Recital na Academia de Amadores de Música, Lisboa, 17/01/2014. Foto: Ana Clara. Clique para ampliar.

O recital apresentado na Academia de Amadores de Música, Templo do grande compositor Lopes-Graça, foi precedido de palestra durante a qual busquei traduzir a imensa relação existente entre os “Quadros de uma Exposição”, de Moussorgsky, e “La Boîte à Joujoux”, de Debussy. Frise-se, os dois compositores estavam entre os eleitos de Lopes-Graça.

No Algarve deu-se a descontração e pudemos, Regina, nossa neta Ana Clara e eu, desfrutar do convívio sensível e amistoso em casa dos pais de Manuela, esposa do musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso. Firmino e Maria Elias são dadivosos, e a recepção – a quarta em poucos anos – esteve sob a égide amorosa do congraçamento.

Ao retornar a Oeiras recebi generoso convite de José Maria Pedrosa Cardoso para substituí-lo na palestra que daria em Centro da Terceira Idade no Estoril. Versou o tema sobre o romantismo de Robert Schumann, o afloramento do Eu, as duas facetas características do compositor, Eusebius e Florestan, e inúmeros exemplos foram mostrados. Alunos excepcionalmente atentos.

Aula na Faculdade da Terceira Idade, Oeiras, 24/01/2014. Foto: Prof. Pedrosa Cardoso. Clique para ampliar.

Mais uma digressão. Quantas mais? Enquanto houver projetos, estarei a atender aos convites d’além mar. Oxalá continuem.

In this week’s post I make an assessment of my recent trip to France and Portugal: the recitals in Saint Germain-en-Laye and Lisbon, the emotion of meeting faraway friends, plans for the future.

 

Um Passeio com Firmino, o Homem do Mar e do Vento

Firmino, o pescador, e o farol do Cabo de São Vicente. Foto: Ana Clara.

Assim o povo, que tem sempre melhor gosto
e mais puro do que essa escuma descorada
que anda ao de cima das populações,
e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade…
Almeida Garret (Viagens na Minha Terra)

A paisagem do Algarve, em seu trajeto de algumas dezenas de quilômetros a partir de Lagos rumo a Sagres, ganha sentido outro quando percorrida de ônibus a ligar localidades da região. Percorrer freguesias, distritos e pequenas cidades nessas condições proporciona um outro olhar. Firmino, o pescador aposentado que, certo dia, confessou-me que o segredo do mar é o vento, acompanhou-me, e minha neta Ana Clara quis apreender o pensamento de vida e de sobrevivência nas águas algarvias, onde, durante 60 anos, Firmino viveu sua saga. Lentamente, o autocar deslizou pelas tortuosas vias e desfilaram Espiche, Almádena, Val do Boi, Budens, Salema, Figueira, Raposeira, Vila do Bispo (lá dei recital em 2011) e Sagres. Em todas, uma parada com direito a algumas curtas conversas do motorista com passageiros que subiam. Uma mulher, que desde o início da viagem falou em voz alta ao telemóvel, fez bem entender a fala da região, por vezes ininteligível. Sua narrativa era do cotidiano sem esperanças. Outros mais dialogavam sem emoção assuntos ligados ao tempo, ao frio e à chuva. As paisagens, passando rapidamente pela janela, mostravam um solo cansado, mas propício ao cultivo do milho, cevada e forrejo (forragem). Para tanto há necessidade da vontade, que existe para alguns e mostra-se desesperançosa para muitos. O maravilhoso das paisagens próximas ao mar mostra-se paradoxalmente antagônico à aridez de um solo sujeito aos ventos fortes que sopram acima das altas falésias.

Sagres. Em blogs anteriores já descrevi o deslumbrante espetáculo. Para quem vai ao Cabo São Vicente, ponto mais sudoeste da Europa e epicentro da Arte da Navegação através da Escola de Sagres, fundada pelo Infante D. Henrique no século XV, impossível não imaginar a intrepidez dos navegantes portugueses que deslumbraram o mundo com suas descobertas no período. Das altas falésias de São Vicente, serpenteadas além de Sagres, o mar se apresenta como desafio maior. A linha do horizonte sinaliza caminhos marítimos para o oeste, em direção às Américas, e para o leste, a fazer imaginar tantas histórias vindas do norte da África.

Falésias da região de Sagres. Foto: Ana Clara.

Dessas falésias, ao lado de Firmino, conta-me o amigo os desafios costeiros em seu barco, que à noite enfrentava águas tantas vezes bravias. Respeita profundamente a voz da natureza, pois bastam alguns minutos para que ventos e ondas gigantescas se formem, elevando às alturas a adrenalina do timoneiro. O mar é sempre soberano e tem-se de atentar aos seus humores. Como todo homem de profundo bom senso, Firmino conheceu a face da morte. Sim, foram repetidas as oportunidades em que se defrontou com o medo. Qual herói não o sentiu?

O amigo encontrou-se com velhos companheiros pescadores. Deles ouvi relatos do cultivo de ostras e da grande produção, que segue preferencialmente para a França. Mostraram-me curiosos utensílios. Por sua vez, Firmino Pereira fez-me conhecer os alcatruzes (potes) com uma entrada,  que servem para a captura dos polvos, e também a maneira como as redes são estendidas para a pescaria. Um sábio nesse tema tão apaixonante. Fica-me a impressão do comprometimento pleno desses heróis, que enfrentam mares inóspitos e não se intimidam ante a possibilidade do não regresso.

Num dia que se iniciou sombrio, frio e chuvoso, ao fim de tarde ensolarado e com temperatura bem mais amena, a luz da região sofre mutações. Como os impressionistas souberam captar essas nuances da cor nesse choque atávico das águas contra as rochas! Dá para minimamente entender o encantamento que esses pescadores sentem com essas transformações. Reservados em suas narrativas, de nenhum ouvi “histórias fantasiosas” de pescador. Essa gente algarvia denota sinceridade e o que é, simplesmente é, sem subterfúgios.

Vieram ao nosso encontro, conduzidos por Zé, irmão de Maria Elias, mulher de Firmino, Pedrosa Cardoso e Regina. Visitamos a igreja de Sagres, outros grandes paredões rochosos, pequenos vilarejos e praias de forte beleza, tendo como fronteiras as falésias.

A se pensar na atividade desses pescadores, hábitos, costumes, tradições e maneira de viver, percebemos que ainda não foram influenciados pelos grandes centros urbanos. O sentido da coletividade simples, do congraçamento, da ajuda mútua se faz presente. O dia, reservado ao descortino de uma atividade que sempre me surpreende, enriqueceu-me.

O homem do mar, em condições muitas vezes solitárias, tem no barco a tebaida exemplar. Não seria essa solidão, comum a tantas comunidades pelo mundo que sobrevivem daquilo que vem do mar, o eremitismo mais sagrado?

Fotos dos recitais em Saint-Germain en Laye e Lisboa, assim como as do encontro com o escritor Sylvain Tesson durante palestra, debate e noite de autógrafos de seu último livro, serão postadas tão logo chegue em São Paulo.

 

Os 100 Anos de “La Boîte à Joujoux”

Claude Debussy Modest Moussorgsky

Confesso que, durante a passagem oceânica, por várias vezes veio-me à mente tantas outras travessias. Jamais iguais. Quando a dedicação foi à não repetição repertorial, toda viagem tem o cunho da diferenciação. O leitor perguntaria: “Não pertenceriam os ‘Quadros de uma Exposição’, incluído no recital, ao repertório tradicionalizado”? Só poderia responder afirmativamente. No presente caso, o que importa é a essência da proposta. Do momento em que levantei posicionamento de uma influência que Debussy teria recebido da monumental obra de Moussorgsky, tornou-se imperativo para este intérprete apresentar “La Boîte à Joujoux” junto aos “Quadros…”. Doravante amalgamaram-se na mente do intérprete.  Quanto ao ballet pour enfants, essa extraordinária criação que apresentei no Musée Debussy, na casa em que o compositor nasceu, é pouquíssimo apresentado. Tocado isoladamente já se sustentaria, graças à raríssima feitura e beleza rara. Pode-se juntar a obras consagradas de compositores super ventilados quando da montagem de um recital. Ousariam fazê-lo? Mas não, a frequência às criações de Debussy é quase sempre a mesma e, hélas, é insistentemente apresentado em recitais pelo mundo em obras que “penetraram os ouvidos”. Interessa aos empresários, satisfaz a mídia, acomoda a escuta do ouvinte, que não se preocupa com o descortino de outras composições do músico francês. O compositor é voluntariamente diminuído quando não se tem consciência de que tantas de suas obras são importantíssimas. Como exemplo, o ballet “Khamma”, escrito no mesmo período de “Jeux”, não é interpretado. Porém, um excelente músico francês, Charles Koechlin (1867-1950),  considerava-o superior a “Jeux”.  Princípio básico, “La Boîte à Joujoux“, original para piano, é obra prima para o instrumento, mas minimamente tocada. A versão para orquestra mostrou outros caminhos, assim como a transcrição para orquestra dos “Quadros…”, empreendida por Maurice Ravel. Frise-se, outros caminhos.

Nesse centenário que se está a comemorar, minha alegria é ainda maior, pois sempre que visito “La Boîte…” faço-o amorosamente, mormente nestes 100 anos de existência e na casa em que Debussy nasceu.

Sob a égide do entendimento o recital transcorreu a contento. A pequena, mas aconchegante sala do Muséé Debussy, abrigou admiradores da obra do grande compositor. Alexandre Martin-Varroy, ator, comediante, musicista e cantor preparou textos criando clima para a apresentação. Escritos de Debussy, de André Hellé e Moussorgsky foram lidos com rara expressão. Poderia acrescentar que estive sempre absolutamente à l’aise durante todo o recital que não teve intervalo. “La Boîte à Joujoux” e os “Quadros de uma Exposição” transcorreram no plano amalgamado, irmanados. A recepção não poderia ser mais intensa. Figuras ilustres da musicologia e criação fizeram-se presentes, entres as quais Myriam Chimènes, Alexandra Laederich, Anik Lesure, François Servenière e José Maria Pedrosa Cardoso.

A escolha individual tem de seguir o impulso natural. No final dos anos 1960 encontrei a minha senda. Ao atravessar o oceano na semana que passou estava consciente que a mensagem a ser transmitida não comportaria a repetição. Esse caminho pessoal faz-me, à maneira do viajante que busca o desconhecido, encontrar uma surda alegria. A renovação que nasce com a mudança das estações, com a vida que reencontra seu fluxo em todas elas, não seria a luz a nos indicar que a permanência no ar rarefeito, pode prolongar a vida, mas nunca oxigenar a contento nossas intenções?

Corroborando o pensamento, estive neste domingo pela manhã no lançamento do livro de um de meus autores preferidos, Sylvain Tesson. O acaso levou-me a ter conhecimento do evento. Durante a viagem estava a ler “Dans les Forêts de Sibérie“, e o novo livro “S’Abandonner à Vivre” era o centro do encontro. Durante mais de uma hora Sylvain Tesson respondeu aos questionamentos. Teremos tempo brevemente para voltar ao tema. Dizia o autor que esse renovar planejado é a essência da vida. Não importa o caminho encontrado. São tantos. A mente se abre ao descortino. Reflexões…