Navegando Posts em Impressões de Viagens

Opiniões Contundentes

Como nada entenderam do passado,
nada podem sonhar para o futuro.
Agostinho da Silva

Foram inúmeros os e-mail recebidos a respeito do último post. Os de nossos conterrâneos ratificariam, por vezes com acentos sombrios, a atual situação de nossos aeroportos, enfatizando os preços das passagens internas e das tarifas abusivas, a desorganização e a falta de espaço para os passageiros na hora do check-in, a limpeza pouco eficiente de nossos toilettes, a  insegurança quase que total, entre tantos outros problemas.

Concentrar-me-ei em duas mensagens vindas do Exterior, uma curta, a sintetizar a veracidade; outra reflexiva e com olhar de lince.

Maria Elizabeth Atristain escreve do México:Realmente é um horror o Aeroporto Internacional de São Paulo. O da cidade do México é bonito, limpo e organizado. Infelizmente quando alguém viaja pelo mundo percebe as carências brasileiras… O que será da Copa? Não há estrutura nem bases sólidas para receber a quantidade de estrangeiros que chegará ao Brasil”.

O compositor e pensador francês François Servenière escreve texto sociológico, a observar com isenção o drama do descaso de governo e empresa privada num conluio estranho, a resultar no esquecimento da figura mais importante em todo o processo: o ser humano. Preocupa-se com a imagem que será difundida de nosso país durante e após a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas, imagem hoje em alta nas considerações europeias. Salientemos que é pouco divulgada além-mar a endêmica corrupção no Brasil, mãe incontestável de todas as nossas dificuldades. O desconhecimento de tantos problemas que nos afligem faz com que paire uma visão onírica por parte de muitas mentes esclarecidas do hemisfério norte.  Insiro parte substancial do texto de Servenière, pois o músico por vezes penetra em outras áreas, mas seu pensamento não perde contato com o tema, no caso, os aeroportos brasileiros. Nossa correspondência, trocada semanalmente, já está a atingir 500 páginas!   

“Fiquei chocado ao ler a descrição catastrófica que você fez do Aeroporto de São Paulo e o tempo despendido para a chegada à sua casa após o desembarque. É incompreensível, e você tem razão ao dizer que, nas circunstâncias de eventos mundiais que se aproximam para 2014 e 2016, essa desorganização, com forte dose de um descaso administrativo, corre o risco de custar muito caro se nada for feito para remediá-la. Esse o dilema do mundo capitalista atual, pois uma reputação se faz e se desfaz num simples estalo dos dedos. Não somente o risco do fracasso organizacional desses dois eventos mais populares do mundo (não é certo, mas pode acontecer), mas o fracasso de uma política que leva sempre os investidores do mundo inteiro a duvidar da perenidade de suas aplicações num país incapaz de se organizar. Isso nós verificamos hoje em França… Nossos aeroportos são belos, mas as greves afugentam as pessoas que a eles se dirigem, preferindo os TGV para vir a centros como Paris. O fracasso na organização (primeiramente nas portas do país, os aeroportos) da Copa do Mundo de Futebol e dos Jogos Olímpicos será um duro golpe para a reputação do Brasil em termos mundiais. O seu artigo é um verdadeiro sinal de alarme. Se é certo que nossa Copa do Mundo de 1998 foi um incrível sucesso quanto a transporte, infraestrutura, recepção, retransmissões televisivas, a equipe local a ganhar o campeonato… espera-se algo semelhante do Brasil em 2014. Deverá ser a maior festa do Football Association jamais organizada, no país do futebol. Torna-se necessário arregaçar as mangas urgentemente para a melhoria dos aeroportos, senão os estádios ficarão muito distantes dos centros e a festa estará estragada.

Na realidade, o seu artigo criou um paradoxo na minha cabeça, aquele que eu chamo o Paradoxo Wall-E. Inicialmente, você professa a admiração pela organização dos aeroportos europeus, no que tem toda razão pela forma e conteúdo, o respeito às pessoas, à organização, mesmo que sob o prisma da forma econômica capitalista. O capitalismo não é um mal, pois cria trabalho para um número grande de pessoas, inventando necessidades sempre novas, serviços e produtos impensáveis anteriormente. O que diriam nossos avós se vivessem hoje? Assim eles próprios deveriam pensar em relação aos antepassados dos séculos XVIII e XIX. O paradoxo de Wall-E é esse: “quanto mais nos dirigimos a um mundo perfeito, portanto com pouco a acrescentar, mais as pessoas estarão entediadas”.

Na verdade, os estudos sociológicos, os testemunhos de viajantes, na terra, no mar, no espaço aéreo (Stevenson, Saint-Exupéry, Théodore Monod, de Monfreid…), falam-nos de um mundo antigo onde a precariedade, a desorganização, os costumes tribais constituem a norma. Eles testemunham e denunciam um mundo ‘ainda’ desorganizado. Foi o material dessa desorganização, como esse de seu aeroporto, que lhes serviu para os relatos e testemunhos, para os romances, ficções e filmes. Num mundo perfeito, haveria a possibilidade de temas para filmes, livros, comentários, artigos? A vida inteira é um risco permanente. O nascimento é um risco. Temos de estar terrivelmente conscientes de que a sociedade moderna é asséptica, socializante e normativa, e tem como meta confessa a supressão do risco. Verificamos que as estradas apresentam maior segurança, o tráfego aéreo é mais confiável, os toilettes dos aeroportos mais limpos, etc… Todavia, os escritores não mais escrevem sobre os aeroportos modernos, a não ser para montar um quadro kafkiano, para descrever o universo organizado, concretado, asséptico, mas transitório e desumano! Se eles querem o exotismo, o fervor, o excitante,  partem para o sudeste asiático, ou Ushuaia ou o interior da Amazônia. Um tema sobre o aeroporto de Roissy (Charles de Gaulle) faz cair os picos de audiência a zero. Um tema sobre os traficantes de ouro entre a Guiana Francesa e o Brasil banhados pelo rio Oiapoque, as escaramuças entre os catadores de ouro brasileiros e os militares franceses é história épica e causa entre nós picos de audiência. O mundo perfeito é, pois, a direção escolhida pelas sociedades modernas social-liberais, mas creia-me, este mundo deve ser entendido com desconfiança, pois deixará cada vez menos espaço ao exotismo e ao risco (compor música e interpretá-la são riscos enormes em termos de vida e de precariedade, os músicos não integrados ao cinema, aos conjuntos orquestrais, ao mundo da educação pública ou privada, ao show business ‘morrem de fome’, da mesma maneira que pintores e escultores que não mais têm os mecenas de antigamente). Será que produzirão obras notáveis quando todos os artistas forem obrigados a descrever um mundo perfeito? Você conhece a resposta como eu. O mundo imaginário da criação alimenta-se da imperfeição e da desordem. A ordem é desejável porque melhora a vida cotidiana, mas a desordem é mágica, pois ela nos dá a nossa dose de aventura. A parábola ilustra bem o destino e a vida de meu pai. Era ele político e farmacêutico, realizado não apenas pelo sucesso de sua empresa, mas também pelo conceito que desfrutava merecidamente como homem público. Contudo, ele se chateava em sua farmácia e encontrava um grande prazer fazendo teatro, momentos em que ele se tornava uma verdadeira criança. As pessoas adoravam vê-lo representando, pois meu pai mostrava-se o homem de duas faces, um personagem janusiano. O homem sério e responsável na vida profissional e política e o clown que entusiasmava o público ao atuar. Na verdade, tudo isso é uma metáfora da vida. Temos a necessidade imperiosa da ordem e da desordem. ‘Ordem e Progresso’, a fim de que o país não se esqueça de que a festa trará desapontamento se não houver uma organização perfeita. Pode parecer paradoxal para um país como o Brasil, que tem as festas mais incríveis do planeta. Sob essa égide, é verdadeiramente o país onde se inventa o futuro do mundo, o país antikafkiano e ‘anticomunista’ por excelência. É necessário fazer de suas qualidades os defeitos e dos seus defeitos as qualidades. O Brasil por sua natureza incrível é livre. Mas não se pode quebrar essa liberdade por uma devastação irresponsável da Amazônia ou pela desordem desmesurada dos aeroportos, dos transportes, ou ainda, pela criação de cidades tentaculares nas quais é difícil viver. Caso haja essa quebra, o mito do Brasil corre o risco de desaparecer no século XXI, pelo menos é o que eu penso, talvez equivocadamente.

Há ainda um espaço até 2014 e 2016 e os brasileiros são trabalhadores e inteligentes. O Maracanã quase pronto! Incrível proeza! O mesmo estádio mítico de outrora, é incrível! É a prova do talento de um povo. Nada resiste ao trabalho!” (tradução: J.E.M.).

The post of last week on Brazilian airports received much feedback. I selected two messages (from Mexico and France) for this week’s post.     

 

 

Presenciada Lastimável e Vergonhosa Situação

Entre as palavras e as ideias detesto esta: tolerância.
É uma palavra das sociedades morais em face da imoralidade que utilizam.
Agostinho da Silva

O número cada vez maior de viajantes brasileiros pelo mundo, mercê do aumento da população, dos créditos cada vez mais elásticos, propiciando, sob um prisma, o fluxo mais acentuado e, sob outro, a inadimplência de parcela de turistas frequentadores dos aludidos cartões, deveria ter provocado, entre os governantes e as entidades privadas, nas quais se incluem as companhias aéreas e as administrações dos aeroportos pátrios, um estudo apriorístico e atento a toda essa realidade que só tende a ser mais caótica com o decorrer do tempo.

Se considerarmos, como exemplos, alguns aeroportos importantes da Europa, como os de Frankfurt, Paris, Londres, Bruxelas, Amsterdã, Madrid e o do Porto, que, apesar de menor, recebeu premiação de grande relevo, verificaremos que há respeito ao cidadão. Consideram-no como a figura central de todo o processo. Sim, há a visão do lucro nesse mundo capitalista, perceptível nas menores coisas, mas as comodidades oferecidas por esses aeroportos e tantos outros refletem a intenção da preservação da dignidade. Consideremos também o estágio de consciência coletiva, que realmente parece evidente.

Saímos do belo aeroporto da cidade portuense (Sá Carneiro) em direção ao de Madrid (Barajas). Ali chegando, observamos a impecável sinalização. Assim como em outros excelentes aeroportos europeus, há verdadeira infraestutura, como longas esteiras intermediadas que se sucedem após breves interrupções, que correspondem às portas de embarque. Em cada segmento dessas esteiras há toilettes femininas, masculinas e para deficientes físicos. Limpas.  O trem interno (comum em vários outros aeroportos europeus) é pontualíssimo, a ligar os terminais concernentes ao dos voos mais curtos pela Europa e proximidades e àqueles de longo alcance, transoceânicos e transcontinentais. Tudo automatizado. Ao viajante basta seguir as indicações para chegar ao local indicado no bilhete.

Nós, brasileiros, conhecemos bem nossos aeroportos. Numa cidade da dimensão de São Paulo, entre as dez maiores do planeta, é inadmissível o que ocorre em Guarulhos após o desembarque, no longo, estreito e tortuoso trajeto que leva às escadas que darão acesso à Polícia Federal. Sem sanitários, os passageiros caminham, tantos sôfregos, mormente os idosos e portadores de alguma deficiência física. O nosso desembarque se processou numa lentidão absurda. Das 6:25 da manhã, assim que saímos do finger, às 8:00! Surrealista o cenário. Passos lentíssimos e a aglomeração congestionada, com a agravante de todos carregarem as bagagens de mão. Metros adiante, de outro desses fingers saía outra leva, esta vinda de Miami. Congestionamento intolerável. Após um tempo enorme descobrimos a causa, retrato de um Quarto Mundo. Três baldes ocupavam mais de metade do estreito corredor, a fim de receber as goteiras que caíam da laje, pois chovia bastante. Uma placa onde se lia “DANGER – Piso molhado”, indicava um estreitíssimo espaço que permitia apenas uma fila indiana. Nativos e estrangeiros diziam impropérios os mais diversos. De um espanhol ouvi constrangedora frase,  a aludir que o avião tomara outro rumo e chegara ao centro da África. Há dezenas de anos que São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais ouvem reclamações procedentes. Incúria administrativa, descaso total. Outras são as preocupações de governantes e empresários. Deles só ouvimos promessas vãs e paliativas!

Após a liberação das bagagens, mais um transtorno que o cidadão sofre. A depender do horário demora-se horas para se chegar à cidade e aos seus bairros próximos ao centro. Levamos três longas horas. No total, do desembarque às 6:25 até nossa cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo, foram 4:35!

Taxas de embarque exorbitantes cobradas em nossos aeroportos,  inexistência de trem e metrô que desafogariam o tráfego, serviços internos ineficientes, fila de check-in a atravessar toda a área de circulação, preços rigorosamente abusivos a partir do estacionamento e de um simples cafezinho, congestionamentos diários e a total alienação das autoridades estão a encaminhar os  brasileiros para o grande constrangimento coletivo, que será a recepção de grande quantidade de turistas durante a Copa e as Olimpíadas. Realmente não estamos preparados minimamente. O controvertido ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol ao menos em uma afirmação acertou plenamente ao dizer, referindo-se à Copa de 2014, que o problema do Brasil estava resumido: “aeroportos, aeroportos, aeroportos”. Esperemos que haja algum milagre. Seria pedir muito?

On the poor conditions of Brazilian airports, their inadequacy to handle increasing passenger traffic and the possible national embarrassment Brazilians will face during the World Cup and the Olympic Games if their aging infrastructure is not renovated.

          

 

História e Natureza, Expressões do Belo

 

Finda a tournée plena de tantos eventos, ficaram as recordações, mormente quando ilustrações documentam episódios inusitados para nós. As viagens a Portugal, sempre a tocar ou a realizar outras atividades musicais, possibilitam tempo restrito para a visão extra-sonora. Todavia, sempre que momentos livres existam, não deixo de ver aquilo que é história: igreja, mosteiro, convento, castelo, museu, biblioteca, livraria, construções outras e… a natureza que está a pedir eternamente que a deixem em paz para a sobrevivência de todos nós.

A preceder a  descida ao Algarve, após as apresentações em Évora, ainda tivemos o prazer de passar por Castro Verde, vila portuguesa pertencente ao Distrito de Beja, na sub-região do Baixo Alentejo. José Maria insistiu em que conhecêssemos a Basílica Real – Igreja Nossa Senhora da Conceição -, mandada construir por D.João V (1707-1750). A extraordinária Basílica, de uma só nave, abriga nas laterais do amplo espaço painéis de magnificente azulejaria, a representar os feitos da batalha de Ourique, que se deu aos 25 de Julho de 1139, em que as tropas cristãs, comandadas por D. Afonso Henriques (1109-1185), derrotaram as muçulmanas que contavam com número superior de combatentes. Causa um grande impacto o conjunto de azulejos do século XVIII e a expressividade gestual de centenas de personagens guerreiras. O Museu da Basílica apresenta raras peças da imaginária cristã.

Da viagem ao Algarve, entre um recital e outro, tivemos a alegria de um regresso à região algarvia, hospedados uma vez mais em casa dos sogros do amigo e professor José Maria Pedrosa Cardoso. Nas várias idas a Lagos, a recepção em casa dos pais de Manuela, Firmino e Maria Elias, é fraterna, descontraída, de intensa troca de afetos. Naturalmente, sabem levar-nos à emoção, tão intensa e sincera a acolhida se faz. Regina e Manuela mais parecem irmãs nas tantas afinidades.

Enquanto Regina tem seus programas com os amigos, José Maria e eu gostamos de caminhar pela orla marítima, mormente à noite, quando o vento que sopra do mar traz parte da história das navegações. Tudo aconteceu naquela região que se estende até o Cabo de São Vicente. Nunca penso nesses ventos como outros de mesma intensidade. Sagres, a epopéia das navegações, que levou intrépidos navegantes a deslizar pela costa de África e por fim contorná-la, a fim de atingir as Índias; o caminho em direção a oeste, que os conduziu à costa brasileira, são episódios que me vêm à mente quando estou a caminhar com José Maria a falar sobre música, literatura, artes, história e tantos outros temas. Em Lagos, passamos pela janela em que D. Sebastião (1554-1578), o jovem e infortunado rei, despediu-se para a tresloucada aventura  para nunca mais voltar, sucumbindo, juntamente com significativas figuras da nobreza portuguesa, na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, motivando a crise dinástica de 1580, com consequências seriíssimas para Portugal. O corpo de D. Sebastião jamais foi encontrado, o que gerou mitos e lendas. Criou-se o Sebastianismo, presente na mente do povo de Portugal e do nordeste brasileiro, que, no rico imaginário, “acredita” no regresso do rei.

Lagos é cidade única. Da orla pode-se ver, a leste, Portimão iluminada; a oeste, durante o dia, os contornos, das formações rochosas e falésias que convivem com o mar, tantas vezes bravio, e que se estendem além de Sagres até o Cabo de São Vicente. O Algarve é realmente uma região de rara beleza.

José Maria, ao sentir meu interesse traduzido em tantas perguntas, convida-nos para um passeio inusitado, a visita às grutas que se situam a oeste de Lagos, sempre a ter as falésias e as pequenas praias como decorações marcantes. Em uma manhã de maré baixa partimos em uma canoa a motor conduzida por Gilberto, barqueiro bem experiente, e fomos a contornar essa forte paisagem. Passeio de uma hora. Entramos em várias grutas de rara beleza, e que no imaginário popular adquirem nomes curiosos: elefante, gorila, bolo de noiva… Podíamos, por vezes, tocar as rochas, mercê da extrema habilidade do barqueiro. O mar, que nessas grutas tem  transparência absoluta quando à luz do sol, torna-se sombrio ao nelas adentrarmos, o que propicia um espetáculo da natureza quando raios solares penetram em determinada fenda, revelando focos da imaculada limpidez das águas. Como souberam alguns pintores que pertenceram ao impressionismo e às suas ramificações captar em França a magia e o mistério de rochedos e falésias! Claude Monet (1840-1926), Georges Seurat (1859-1891), Armand Guillaumin (1841-1927), Paul Cézanne (1839-1906)  ), Henry Moret (1856-1913) e tantos outros… Que fascínio essas formações rochosas exerceram para os artistas da cor e da luminosidade! Se conhecessem as da Ponta da Piedade na região de Lagos! Foi o Presidente da Nova República Velha Portuguesa, Manuel Teixeira Gomes, que, na década de 1920, teria dito que considerava as grutas da região lacobrigense as mais belas do mundo.

Em certo momento, perguntei a Gilberto se conhecia Firmino, o homem que durante 60 anos entendeu o vento como o segredo do mar. Discorreu sobre a intrepidez do sogro de José Maria, pois Firmino tornou-se  verdadeira lenda entre os pescadores. Perguntei-lhe se ele, no centro de Lagos, sentava-se no banco “picha murcha”. Essa expressão, que conheci em Évora, através do amigo Urbano, teria até praça desse nome em Viana do Alentejo. Refere-se ao banco dos velhotes e aposentados que ficam a trocar conversa durante o dia. Gilberto prontamente disse não. Era essa a resposta que esperava, pois, aposentado, o quase octogenário Firmino todos os dias pega bem cedo o ônibus que o leva a Sagres. Viagem de cerca de uma hora, pois o veículo para em inúmeros lugares. Trabalha o dia inteiro a consertar redes, limpar peixes e ajudar pescadores. Um herói do mar que, fora dele, permanece na ativa, a continuar a trajetória vocacional.

Na descida ao Algarve, vindos do Alentejo, vêem-se inúmeros ninhos de cegonhas. Ficam sempre ao alto, seja em torres de transmissão, ou em topo de alguma chaminé de fábrica desativada, mas independentes de matas mais cerradas, aliás raras na região. Por vezes as vemos sobrevoar com elegância a planura em busca de pequenos roedores ou serpentes. Maria Elias, esposa de Firmino, presenteou Regina com uma bonita tela em que um ninho está evidente. Sensível, Maria Elias soube captar o que nossas retinas já tinham fixado com rara acuidade.

 

Quanta razão não teve Claude Debussy ao afirmar que preferia ver o por do sol a ouvir a bela Sinfonia Pastoral de Beethoven. Contextualizando, temos a imagem que deveríamos reverenciar dessa natureza que clama pela atenção dos homens e que, pouco a pouco, está a ser destruída.  A incúria administrativa de mãos dadas com o poder econômico. Nada a fazer, infelizmente.

Fotos dizem e não dizem.  Se vivemos o instante do acontecido, podemos prescindir da imagem retida indelevelmente em nossas mentes. Contudo, são elas preciosas no sentido da documentação, menos pelo fato de que lá estivemos, mas mais pela beleza intrínseca que a natureza e a história generosamente nos ofertam. Partilhá-las com os leitores é motivo prazeroso.