Travessia e o Inusitado
Tudo o que é interessante na vida deve ser sempre por opção.
Não haver nada obrigado definido,
porque é muito engraçado
nós termos até o divertimento por obrigatório.
Agostinho da Silva
Reiteradas vezes nesses mais de cinco anos ininterruptos de posts publicados no blog tenho me referido às viagens ao Exterior que ocorrem habitualmente, sempre no exercício da atividade musical, mormente voltada aos recitais e gravações. A nova travessia não foge à sistemática. Também inúmeras vezes comentei que cada intérprete sabe, ou deveria saber, os caminhos que deve ou pode trilhar. São tantas as contingências que determinam rumos, assim como incontáveis as possibilidades de trajetos a serem percorridos.
Nos muitos posts dedicados ao tema observo que, no meu caso específico, portanto eminentemente pessoal, interessa-me atravessar o Atlântico a saber que estarei a transmitir o novo, seja ele do passado ou atual, mas rigorosamente inédito para meus dedos, coração e mente. É o inusitado, mesclado ao já incorporado a fazer parte do acervo, que me proporciona a relação amorosa com a viagem. Saber que estarei a interpretar ou o passado remoto, ou não tão remoto, e o novo que há pouco saiu da pena de compositor de mérito. Alento e alegria de prosseguir em senda tão especial escolhida voluntariamente. Atravessar o oceano, a fim de eternamente se repetir, nunca fez parte de meus projetos. Seria mais fácil, disso não tenho a menor dúvida, mas a reiterar o caso específico, sentir-me-ia sedimentado. Transpor o equador e repetidamente voltar ao repertório das primeiras quatro décadas causar-me-ia certo constrangimento. Quando regresso homeopaticamente às composições desse passado tradicional, faço-o prazerosamente. Lógico que o inusitado leva ao tributo a pagar e este estaria ligado ao interesse dos empresários, à frequência de um público voltado ao super-tradicional, à acomodação da consciência coletiva. Uma audiência mais restrita, cônscia do que está a ser transmitido, já não significa o ato amoroso do congraçamento? Sob égide outra, como não divulgar o que é realmente meritório e recente, como não se voltar aos arquivos de bibliotecas e museus e encontrar a jóia que, por motivos não explicáveis em tantos casos, está velada? Como consequência, não haveria a suprema alegria de verificar que se está diante de um monumento que precisa ser ouvido e divulgado?
A presente digressão tem como finalidade precípua o lançamento de dois CD (PortugalSom), em álbum inteiramente dedicado ao grande compositor português Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Estou a me lembrar de todo o carinho que tive ao edificar a interpretação pessoal, sempre na observância mais fiel do texto musical, e ao descobrir, em obras como o original para piano de Canto de Amor e de Morte (1961), verdadeira arquitetura alma-mente da pianística mundial da segunda metade do século XX; Músicas Fúnebres, magistral tributo do Mestre de Tomar a nove amigos e camaradas falecidos; Música de Piano para Crianças, encantadora coletânea dedicada aos miúdos e Cosmorame, enciclopédia a confraternizar os homens, criações constantes do álbum. Prazer maior ao erigir Canto de Amor e de Morte, após debruçamento de quase dois meses, unicamente para desvelar o que se passava no único rascunho (completo, felizmente) deixado pelo autor, pleno de rasuras, cortes, e a palavra insistente corrigir. A confrontação com as duas versões posteriores para quarteto de cordas e piano (1961) e orquestra (1962) foi salvaguarda absoluta para que hesitações não houvesse quando da escolha da opção definitiva de uma nota escrita às pressas no instante da criação, ou de uma rasura. Qual não foi a emoção intensa do intérprete ao registrar fonograficamente as quatro obras referenciais no meu templo de gravações, a milenar Capela Sint-Hilarius fixada na planura da Bélgica Flamenga. Quando ouço a gravação que ora virá a público, ou realizo nova visita ao Canto… obra a ser apresentada nos recitais como excelência da criação de Lopes-Graça, não deixo jamais de ter a reverência que essa criação excelsa merece. As outras três importantes obras estavam em manuscritos autógrafos precisos já sabendo Lopes-Graça que se tratava de definição. Delas já tratamos quando da digressão de 2010. Desta vez, apenas Canto de Amor e de Morte será apresentado, visto que somente naquele ano a obra foi interpretada.
Duas primeiras audições de compositores portugueses igualmente trazem-me alegria. O Estudo em homenagem ao extraordinário compositor coimbrão Carlos Seixas (1704-1742) tem nome sugestivo: Fúrias Volutas e Saraivadas. De maneira engenhosa, João Francisco Nascimento (1967- ) estabelece relação intrínseca entre a técnica setecentista para teclado e a jocosidade – quase uma paródia – de elementos extra-musicais estabelecidos pelo personagem imaginário, Saraiva. Quanto à Missa sem Palavras (cinco estudos litúrgicos), de Eurico Carrapatoso (1962- ), estamos diante de uma obra singular, distante de convenções escriturais vanguardistas. Austera, polifônica, oferece ao intérprete a possibilidade da introspecção. Apresentei-a veladamente a alguns amigos músicos. Impossível ficar indiferente à tanta qualidade e ao culto ao belo. Nas cinco partes constitutivas da Missa Católica ordinária, menção a segmento central de Gloria. Diria que todas as musas, anjos e querubins sobrevoaram a mesa onde a obra estava a ser criada. Momentos inefáveis lá estão. Sob aspecto outro, que competência Carrapatoso apresenta nas mudanças métricas! Frise-se que todo o texto litúrgico está sobre o discurso musical, a dar não a necessidade do canto, mas a orientação da condução do material apresentado sob os aspectos da agógica, articulação e dinâmica. Escreve Carrapatoso: “Este texto sacro refulge no fragor bronzino do latim. Escrito na partitura, faz dela parte intrínseca. Mas não será verbalizado, no sopro da voz. Está lá para dele ser feita uma leitura íntima, secreta. O intérprete cantará os mistérios do texto canônico através dos seus dedos e não da sua voz”. Eurico Carrapatoso comenta a dedicatória: “A obra é dedicada à memória de meu pai, António Carrapatoso, médico por caridade e olivicultor exemplar, por ocasião do centenário de seu nascimento (Alvites, Trás-os Montes, em 17.4.1912), dois dias depois da tragédia do Titanic. Meu pai, que tinha espírito, dizia que ele era a prova cabal do princípio de Arquimedes: o Titanic afundou. Logo, ele emergiu. Tenho muitas saudades suas”. Frise-se que os Estudos de dois expressivos músicos portugueses enriquecem a coleção de Estudos Contempoâneos para Piano que iniciei em 1985 devendo se prolongar a “colheita” até 2015. Teremos trinta anos para uma panorâmica da técnica pianística e da compreensão que dela fazem compositores de muitos países do planeta. Recebi ao todo cerca de 80, a grande maioria apresentada em público. A completar o recital, apresentarei de Francisco Mignone (1897-1986) os magníficos Seis Estudos Transcendentais e as consagradas obras de Villa-Lobos (1887-1959), Impressões Seresteiras e Dança do Índio Branco.
Quanto ao recital que minha esposa, pianista Regina Normanha Martins, deverá apresentar, diria que as duas Sonatas de Domênico Scarlatti (1685-1757) estariam dentro de um contexto lusitano, pois o compositor por sete anos foi orientador tecladístico da Infanta Maria Bárbara, em Lisboa. O Livro de Maria Frederica, de Frederico de Freitas (19-1980), respeitado compositor português, representa a incursão no universo infantil e as 36 pequenas historietas de cunho doméstico desfilam raro encantamento. As Sete Miniaturas de Frutuoso Viana (1896-1976), obra singela e consagrada no Brasil, as Três Marias de Villa-Lobos e mais a magnífica Sonata nº 1 de Francisco Mignone completam o recital. Uma alegria assistir a Regina apresentar-se pela primeira vez em Portugal.
Os próximos dois blogs serão mais curtos devido à intensa atividade do Minho ao Alentejo e aos deslocamentos necessários, que já se processam. Todavia estarei a transmitir ao prezado leitor o andamento da tournée pela amadas terras portuguesas.