Navegando Posts em Impressões de Viagens

Travessia e o Inusitado

Tudo o que é interessante na vida deve ser sempre por opção.
Não haver nada obrigado definido,
porque é muito engraçado
nós termos até o divertimento por obrigatório.
Agostinho da Silva

Reiteradas vezes nesses mais de cinco anos ininterruptos de posts publicados no blog tenho me referido às viagens ao Exterior que ocorrem habitualmente, sempre no exercício da atividade musical, mormente voltada aos recitais e gravações. A nova travessia não foge à sistemática. Também inúmeras vezes comentei que cada intérprete sabe, ou deveria saber, os caminhos que deve ou pode trilhar. São tantas as contingências que determinam rumos, assim como incontáveis as possibilidades de trajetos a serem percorridos.

Nos muitos posts dedicados ao tema observo que, no meu caso específico, portanto eminentemente pessoal, interessa-me atravessar o Atlântico a saber que estarei a transmitir o novo, seja ele do passado ou atual, mas rigorosamente inédito para meus dedos, coração e mente. É o inusitado, mesclado ao já incorporado a fazer parte do acervo, que me proporciona a relação amorosa com a viagem. Saber que estarei a interpretar ou o passado remoto, ou não tão remoto, e o novo que há pouco saiu da pena de compositor de mérito. Alento e alegria de prosseguir em senda tão especial escolhida voluntariamente. Atravessar o oceano, a fim de eternamente se repetir, nunca fez parte de meus projetos. Seria mais fácil, disso não tenho a menor dúvida, mas a reiterar o caso específico, sentir-me-ia sedimentado. Transpor o equador e repetidamente voltar ao repertório das primeiras quatro décadas causar-me-ia certo constrangimento. Quando regresso homeopaticamente às composições desse passado tradicional, faço-o prazerosamente. Lógico que o inusitado leva ao tributo a pagar e este estaria ligado ao interesse dos empresários, à frequência de um público voltado ao super-tradicional, à acomodação da consciência coletiva. Uma audiência mais restrita, cônscia do que está a ser transmitido, já não significa o ato amoroso do congraçamento? Sob égide outra, como não divulgar o que é realmente meritório e recente, como não se voltar aos arquivos de bibliotecas e museus e encontrar a jóia que, por motivos não explicáveis em tantos casos, está velada? Como consequência, não haveria  a suprema alegria de verificar que se está diante de um monumento que precisa ser ouvido e divulgado?

 

A presente digressão tem como finalidade precípua o lançamento de dois CD (PortugalSom), em álbum inteiramente dedicado ao grande compositor português Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Estou a me lembrar de todo o carinho que tive ao edificar a interpretação pessoal, sempre na observância mais fiel do texto musical, e ao descobrir, em obras como o original para piano de Canto de Amor e de Morte (1961), verdadeira arquitetura alma-mente da pianística mundial da segunda metade do século XX; Músicas Fúnebres, magistral  tributo do Mestre de Tomar a nove amigos e camaradas falecidos; Música de Piano para Crianças, encantadora coletânea dedicada aos miúdos e Cosmorame, enciclopédia a confraternizar os homens, criações constantes do álbum. Prazer maior ao erigir Canto de Amor e de Morte, após debruçamento de quase dois meses, unicamente para desvelar o que se passava no único rascunho (completo, felizmente) deixado pelo autor, pleno de rasuras, cortes, e a palavra insistente corrigir. A confrontação com as duas versões posteriores para quarteto de cordas e piano (1961) e orquestra (1962) foi salvaguarda absoluta para que hesitações não houvesse quando da escolha da opção definitiva de uma nota escrita às pressas no instante da criação, ou de uma rasura. Qual não foi a emoção intensa do intérprete ao registrar fonograficamente as quatro obras referenciais no meu templo de gravações, a milenar Capela Sint-Hilarius fixada na planura da Bélgica Flamenga. Quando ouço a gravação que ora virá a público, ou realizo nova visita ao Canto… obra a ser apresentada nos recitais como excelência da criação de Lopes-Graça, não deixo jamais de ter a reverência que essa criação excelsa merece. As outras três importantes obras estavam em manuscritos autógrafos precisos já sabendo Lopes-Graça que se tratava de definição. Delas já tratamos quando da digressão de 2010. Desta vez, apenas Canto de Amor e de Morte será apresentado, visto que somente naquele ano a obra foi interpretada.

Duas primeiras audições de compositores portugueses igualmente trazem-me alegria. O Estudo em homenagem ao extraordinário compositor coimbrão Carlos Seixas (1704-1742) tem nome sugestivo: Fúrias Volutas e Saraivadas. De maneira engenhosa, João Francisco Nascimento (1967-  ) estabelece relação intrínseca entre a técnica setecentista para teclado e a jocosidade – quase uma paródia – de elementos extra-musicais estabelecidos pelo personagem imaginário, Saraiva. Quanto à Missa sem Palavras (cinco estudos litúrgicos), de Eurico Carrapatoso (1962-  ), estamos diante de uma obra singular, distante de convenções escriturais vanguardistas. Austera, polifônica, oferece ao intérprete a possibilidade da introspecção. Apresentei-a veladamente a alguns amigos músicos. Impossível ficar indiferente à tanta qualidade e ao culto ao belo. Nas cinco partes constitutivas da Missa Católica ordinária, menção a segmento central de Gloria. Diria que todas as musas, anjos e querubins  sobrevoaram a mesa onde a obra estava a ser criada. Momentos inefáveis lá estão. Sob aspecto outro, que competência Carrapatoso apresenta nas mudanças  métricas! Frise-se que todo o texto litúrgico está sobre o discurso musical, a dar não a necessidade do canto, mas a orientação da condução do material apresentado sob os aspectos da agógica, articulação e dinâmica. Escreve Carrapatoso: “Este texto sacro refulge no fragor bronzino do latim. Escrito na partitura, faz dela parte intrínseca. Mas não será verbalizado, no sopro da voz. Está lá para dele ser feita uma leitura íntima, secreta. O intérprete cantará os mistérios do texto canônico através dos seus dedos e não da sua voz”. Eurico Carrapatoso comenta a dedicatória: “A obra é dedicada à memória de meu pai, António Carrapatoso, médico por caridade e olivicultor exemplar, por ocasião do centenário de seu nascimento (Alvites, Trás-os Montes, em 17.4.1912), dois dias depois da tragédia do Titanic. Meu pai, que tinha espírito, dizia que ele era a prova cabal do princípio de Arquimedes: o Titanic afundou. Logo, ele emergiu. Tenho muitas saudades suas”. Frise-se que os Estudos de dois expressivos músicos portugueses enriquecem a coleção de Estudos Contempoâneos para Piano que iniciei em 1985 devendo se prolongar a “colheita” até 2015. Teremos trinta anos para uma panorâmica da técnica pianística e da compreensão que dela fazem compositores de muitos países do planeta. Recebi ao todo cerca de 80, a grande maioria apresentada em público.  A completar o recital, apresentarei de Francisco Mignone (1897-1986) os magníficos Seis Estudos Transcendentais e as consagradas obras de Villa-Lobos (1887-1959), Impressões Seresteiras e Dança do Índio Branco.

 

Quanto ao recital que minha esposa, pianista Regina Normanha Martins, deverá apresentar, diria que as duas Sonatas de Domênico Scarlatti (1685-1757) estariam dentro de um contexto lusitano, pois o compositor por sete anos foi orientador tecladístico da Infanta Maria Bárbara, em Lisboa. O Livro de Maria Frederica, de Frederico de Freitas (19-1980), respeitado compositor português, representa a incursão no universo infantil e as 36 pequenas historietas de cunho doméstico desfilam raro encantamento. As Sete Miniaturas de Frutuoso Viana (1896-1976), obra singela e consagrada no Brasil, as Três Marias de Villa-Lobos e mais a magnífica Sonata nº 1 de Francisco Mignone completam o recital. Uma alegria assistir a Regina apresentar-se pela primeira vez em Portugal.

Os próximos dois blogs serão mais curtos devido à intensa atividade do Minho ao Alentejo e aos deslocamentos necessários, que já se processam. Todavia estarei a transmitir ao prezado leitor o andamento da tournée pela amadas terras portuguesas.

 

Apresentação do Dr. César Nogueira

Crê com todo o teu ser;
só assim terás atingido o máximo da dúvida.
Agostinho da Silva

A apresentação de meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa” deu-se em Coimbra aos 3 de Novembro último. Entre os ilustres professores doutores que se pronunciaram a respeito durante a cerimônia de lançamento, César Nogueira, musicólogo e regente coral em Coimbra, leu seu texto e acaba de envià-lo via internet.  À gentileza do gesto do pesquisador, soma-se a sua anuência, a meu pedido, para que inserisse a arguta apresentação em meu blog. Publico-a pois,  pelo fato, in adendo, de que durante vários meses, mercê da indicação dos competentes Professores Doutores João Gouveia Monteiro e José Maria Pedrosa Cardoso, o Dr. César Nogueira esteve à testa das revisões de um livro que tem cerca de 60 exemplos musicais, mormente em dois artigos analíticos. Se o prefácio do notável musicólogo e Professor Catedrático Mário Vieira de Carvalho sobrevoa a engajada literatura contida, analisando-a impecavelmente sob a égide de uma realidade que existe, hélas, nas culturas luso-brasileiras, o Dr. César Nogueira penetra em campo hermenêutico mais pragmático e pormenoriza determinados textos. É com prazer, pois, que partilho com meus leitores o texto de apresentação do competente  músico.

“Começo por agradecer à IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, pela oportunidade e a honra que me concedem de, aqui, hoje, participar na apresentação de IMPRESSÕES SOBRE A MÚSICA PORTUGUESA, Panorama, Criação, Interpretação, Esperanças.

Permita-me o autor, Sr. Professor José Eduardo Martins, pianista e musicólogo, iniciar a minha exposição, com uma primeira impressão, que ficou da leitura atenta do seu livro. Assim, não na forma, mas na substância, a obra parece-me claramente organizada segundo duas posturas distintas assumidas pelo autor. Numa, o Senhor Professor fala de si, como homem que também é músico. Na outra, respeita a atitude do músico que também é homem. Não se trata de enquadrar os textos destas duas classes distintas em partes físicas diferentes na organização textual já que estas duas posturas manifestam-se, entrecruzadas, em toda sua a narrativa. Na primeira, José Eduardo Martins deixa transparecer os traços fundamentais das raízes familiares, da formação e as linhas de conduta da sua personalidade no convívio com as múltiplas individualidades que se foram cruzando consigo. Apresenta-nos, aí, passagens plenas de afecto e de sensibilidade que vão construindo, no leitor, uma espécie de lastro onde se instala a ideia da vontade de conhecer, também, este brasileiro tão aportuguesado ou, vice-versa, este português – com a sua licença – tão abrasileirado. Dos testemunhos de José Eduardo Martins, fica-nos a ideia que, este homem, conheceu todo o meio musical português dos últimos 50 anos. Júlia d’Almendra, João de Freitas Branco, Sequeira Costa, Tânia Achot, Ivo Cruz (pai e filho), Lopes-Graça, Jorge Peixinho, Vieira Nery, Mário Vieira de Carvalho e Pedrosa Cardoso são alguns dos nomes que perpassam nos seus escritos, detendo-se mais nuns do que noutros, evidentemente. Destaco, neste registo – diria eu – assumidamente intimista, o texto: ‘A transparência através das cartas’, onde se evidencia a amizade, ‘em Debussy’, com a pedagoga e ‘debussysta’, Júlia d’Almendra.

De todo modo, em qualquer das duas posturas, é tanto o respeito e, mesmo, o amor pela música portuguesa e pelos seus cultores locais, que, em José Eduardo Martins, de facto, cumpre-se – não só neste seu livro mas, especialmente, na sua vida – um pouco da, sempre adiada, aliança cultural permanente entre Portugal e o Brasil. É bem sabido que todos temos desaproveitado, sistematicamente, esse património intangível mas muito real, que radica na circunstância de dois povos partilharem uma mesma língua, e tudo o mais, de comum, que esta condição comporta. José Eduardo Martins e a sua vida são a excepção a esta regra determinista e implacável que teima em separar o que é junto por nascimento e natureza. A este desígnio refere-se Mário Vieira de Carvalho, no prefácio a ‘Impressões Sobre a Música Portuguesa’, quando afirma, cito: ‘É neste contexto que a singularidade de José Eduardo Martins se agiganta. Ao longo de mais de cinquenta anos, não se limitou a manter e expandir contactos, a promover intercâmbios, como já o tinham feito Lopes-Graça e Jorge Peixinho ou, por exemplo, Gilberto Mendes. Foi muito mais além. Dedicou-se de uma forma continuada à investigação da música portuguesa’. E mais adiante, acrescenta, relativamente à postura de alguns intérpretes portugueses, mais alheios à produção composicional nacional: ‘Poucos ousam escapar ao cânone hegemónico nas salas de concerto ou na produção fonográfica: como se o intérprete precisasse do prestígio do cânone para se sentir ele próprio prestigiado enquanto intérprete, e a música portuguesa fosse um sacrifício, um ónus, que não valesse a pena’.

Ora, para José Eduardo Martins, a música portuguesa vale a pena e, é sobre a sua postura enquanto músico e sobre a maneira como esse músico intérprete se manifesta e reflecte sobre as suas opções estéticas e técnicas pianísticas que aqui me vou deter. E, posto este ponto prévio, que me ajuda a melhor encontrar o caminho desta intervenção, tomo a liberdade de destacar – pelo conteúdo eminentemente musicológico, na área da interpretação, da estética e da análise musical, diria eu, pura e dura – os textos sobre Carlos Seixas, Francisco de Lacerda e sobre Fernando Lopes Graça. Evidencio, ainda, um rico e bem fundamentado ensaio académico sobre interpretação: ‘Interpretação Musical frente à Tradição – Piano como Modelo’, embora, sobre ele, dada a escassez de tempo, não possa deter-me mais do que afirmar que é uma excelente peça de reflexão estética sobre a arte de interpretar reportório pianístico. Quando, atrás usei a expressão ‘pura e dura’, pretendi deixar claro que a linguagem usada, em alguns destes textos é marcadamente técnica, e a ela não terá fácil acesso o leitor menos informado nas coisas da música e, até, em concreto, se não existir alguma experiência e conhecimento básico no campo do que especificamente respeita às questões do que poderíamos chamar ‘pianismo’ ou, mais genericamente, como o próprio autor diz, ‘tecladismo’.

Assim, a título de exemplo, quando o autor alude à ‘técnica consagrada dos cinco dedos’ para, com isso, fazer valer a tese de que o piano herdou e desenvolveu aspectos técnicos e estilísticos do cravo – instrumento praticamente esquecido durante o século XIX – vale aqui lembrar que o uso do polegar foi uma conquista evolutiva da técnica do teclado e que, em 1716, em L’ART DE TOUCHER LE CLAVECIN, François Couperin defendia, ainda, o uso de se passar o 3º dedo por cima do 2º ou do 4º evitando, assim, utilizar o polegar! A generalização do uso do 1º dedo teria ainda de esperar. Em França, citando Patrick Montan, terá sido Jean-Philipe Rameau o primeiro a defender o uso deste dedo, tratando-o ainda, inicialmente, pelo seu nome anatómico e não pelo número ‘1’ com que mais tarde se rotulou. De igual modo, quando José Eduardo Martins compara Seixas com o Scarlatti, é preciso ter noções de leitura musical e perceber tipos distintos de textura. Diz o autor, e parece-me bem, que o discurso do compositor de Coimbra apresenta traços de uma certa irregularidade técnica e musical, sendo difícil, ao executante, antever, como em Scarlatti, o percurso do fraseado. Reside aí, também, parte do encanto e da qualidade do compositor – não é previsível, numa época em que, paradoxalmente, a previsibilidade era a componente estética do conforto mental. Digamos que Carlos Seixas ‘não vai’ para onde, naturalmente, as nossas mãos e dedos acham que ‘deveria ou poderia ir’. Ora, não é fácil fazer sentir isto a quem não conheça um teclado! Contudo, o modo como o discurso é organizado – simples e sem excessos estilísticos supérfluos – e porque as ideias são claras e, note-se, bem sustentadas pela experiência prática, o difícil revela-se fácil de explicar e de entender.

Mas José Eduardo Martins não se fica por estas observações meticulosas, naturalmente mais caras a pianistas e cravistas. Aventura-se, sem receios nem preconceitos, na defesa e fundamentação das teses que sustentam o uso de instrumentos modernos na performance da música antiga. E fá-lo com propriedade dando exemplos felizes da consagração desta ideia – grandes pianistas, de sempre, não tiveram pejo em ler Scarlatti, Rameau ou Bach e só um certo fundamentalismo conservador é que não vê, não só a ausência de desvantagens como os benefícios que esta prática pode conquistar. Sobre Seixas, José Eduardo Martins mostra-nos as suas primeiras impressões através do contacto com a pianista polaca Felicja Blumental cujas gravações dos cravistas portugueses impressionaram muito positivamente Santiago Kastner, primeiro estudioso do compositor conimbricense. Esse contacto precoce com o compositor barroco português parece ter representado uma marca indelével de tal modo forte que José Eduardo Martins jamais deixaria de tocar, gravar e a estudar Carlos Seixas e toda a envolvente que a interpretação pianística de um barroco convoca, como muito bem se evidencia em ‘As Sonatas para Teclado de Carlos Seixas Interpretadas ao Piano’.

Francisco de Lacerda – uma espécie de ‘Um Açoriano em Paris’ à portuguesa e, segundo Bettencourt da Câmara, o primeiro compositor impressionista português – em boa hora abandonou os estudos preparatórios de Medicina, no Porto, para estudar música e abraçar uma carreira de nível internacional, principalmente como regente de orquestra. José Eduardo Martins, nos capítulos: ‘Francisco de Lacerda – O Açorianismo Universal’ e ‘Claude Debussy e Francisco de Lacerda: correspondências sonoras’, enquadra as opções estéticas do compositor da Fajã da Fagueira no contexto dos ousados ventos de mudança da Paris de fins de oitocentos e princípios de novecentos. As abissais diferenças sociais e culturais entre S. Jorge e Paris podem comparar-se aos radicais antagonismos entre os ensinamentos conservadores da Schola Cantorum que frequentou na cidade das luzes e os atrevimentos radicais da estética do tempo protagonizadas por um Satie, um Debussy ou um Ravel. Imagine-se o choque para quem, nos dizeres de Bettencourt da Câmara ‘O murmúrio das vagas e o soprar da brisa fresca foram os seus primeiros mestres de música’! Mas esse choque foi muito bem resolvido por Lacerda. Do concerto de hoje ficámos, (ou) ficaremos, com essa mesma impressão! Sem dúvida marcado pela presença de Debussy, José Eduardo Martins lembra-nos, não só mas também, da opção de Lacerda pelo miniaturismo nas suas ‘Trente-six Histoires Pour amuser les enfants d’un artiste’, sem dúvida, uma das marcas de estilo do compositor francês. Particularmente no artigo dedicado à comparação entre Debussy e Lacerda, José Eduardo Martins desce ao pormenor músico-interpretativo mais recôndito só possível ao grande especialista que é, também, neste campo, como intérprete e como musicólogo.

Lopes-Graça aparece referenciado neste livro em nove capítulos. Cinco desses capítulos são dedicados especificamente ao compositor de Tomar e à sua obra. O autor mostra um conhecimento profundo da obra de Lopes-Graça e lança pistas, mais uma vez muito endereçadas a um público especialista, sobre critérios interpretativos na obra pianística, assim como descreve aspectos analíticos do maior interesse e oportunidade sobre o compositor e pianista, introdutor do modernismo em Portugal. Em ‘Alguns Aspectos do Idiomático Técnico Pianístico e da Escritura Composicional em Quatro Obras Essenciais de Fernando Lopes-Graça’, a profusão de citações musicais, com a colagem no texto de excertos de partituras da obra de Lopes-Graça, requer, por parte do leitor, mesmo daquele mais familiarizado com arte da música, grande concentração e empenho. Diria que é um texto não para se ler, mas para se estudar.

Não poderia terminar sem mencionar o artigo onde José Eduardo Martins evoca a publicação recente, também pela Imprensa da Universidade de Coimbra, de ‘História Breve da Música Ocidental’. Trata-se de fazer a justiça merecida à obra, de investigador, musicólogo e professor, de José Maria Pedrosa Cardoso que, no resumidíssimo volume, consegue traçar as linhas mestras da história da música ocidental, tarefa apenas possível a quem pode, pelo profundo conhecimento, separar o essencial do acessório sem cair, ainda assim, nas malhas do banal fácil e já mais do que suficientemente repetido até à exaustão. Mas a proposta literária de Pedrosa Cardoso não é, neste livro, a de um resumo condensado. A escolha dos títulos dos capítulos revela, por si só, estar-se, realmente, perante uma outra maneira de ver e de classificar os tempos da música no tempo e, desse modo, revela-se aqui uma nova história já que história não é só a verdade mas sim, e principalmente, a interpretação da verdade.

O livro de José Eduardo Martins não é só um livro. É um livro e um CD com 40 faixas de música interpretada pelo autor. Acaso não houvesse já razões de sobra para a justificação desta edição, só o facto de se acrescentar a possibilidade de ouvir a música sobre a qual se falou, representa uma originalidade valiosa pelos grandes benefícios que transporta.

Felicito, de novo, autor e editora pela obra lançada.

Obrigado.

César Nogueira”

Acabara de finalizar o post, quando recebo do ilustre Professor Henrique Manuel S. Pereira, da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa (Porto), o comentário sobre meu livro. Compartilho-o com o leitor, que poderá acessá-lo clicando no link:

http://guerrajunqueiro.wordpress.com/2011/12/14/impressoes-sobre-a-musica-de-junqueiro/

This week’s post is a transcription of the introduction to my book on Portuguese music that was released by the Coimbra University Press last November. This introduction was written by Professor César Nogueira, musicologist and choral conductor in Coimbra.

 

E Findamos a Digressão

O Outono se expande no hemisfério norte. Faz-se sentir através da paisagem arborizada, mas a ter preferencialmente folhas caducas e poucas perenes. Sentimo-lo no percurso Tomar-Guimarães, antes da chegada a Braga. Desde a infância constitui minha estação escolhida. Se as flores primaveris encantam no despertar de longo período, seriam os tons dourados das follhas das árvores,  anunciando o longo inverno, que mais me impressionam. À medida que o carro desliza pela auto-estrada, caminhos plenos de folhas podem ser vistos. No Bom Jesus de Braga, na bela morada dos diletos amigos Teotónio e Maria Teresa Santos onde ficamos, à altura do início da célebre e longa escadaria a exibir em suas laterais, progressivamente, as capelas devocionais, de maneira mais acentuada as cores outonais podem ser sentidas. As colinas vislumbradas da morada abastecem o olhar atento. A cada dia transfiguram-se na luminosidade, pois as árvores estão a se desnudar. O solo, mormente quando raios de sol incidem obliquamente, revela todo o esplendor dos tons da serenidade, que se modificam à mais tênue brisa sobre as folhas secas. São em terra o que os Reflets dans l’eau, de Debussy, traduzem sonoramente.

Em Braga o recital teve características extraordinárias. A competente e dedicada professora Elisa Lessa coordenou uma apresentação diferenciada. Teve como colaborador o impecável Rui Feio e alunos da muito bem estruturada Escola de Música, que apresenta uma arquitetura plena de brilhantes soluções. Organizaram uma cuidadosa exposição e foram encontrar tanto em meu site, como em outros arquivos, fotos da trajetória musical amorosa do intérprete. Creio que a relação de afeto seja o primordial impulso que me leva a sempre prosseguir. Conseguiram atingir o âmago de meus 73 anos. Em um dos corredores da Escola, colocaram os cartazes alusivos. Jamais acontecera antes e me emocionei, principalmente por ter meu saudoso pai nascido no Distrito de Vila Verde, mas registrado àquela altura, nos estertores do século XIX, em Braga.

Não houve data show, tão bem preparado pelo professor Pedrosa Cardoso, por motivos técnicos, mas o público reagiu extraordinariamente às obras apresentadas. Após a récita e a sessão de autógrafos de meu livro, lançado no início de Novembro pela Imprensa da Universidade de Coimbra, a professora Elisa Lessa ofereceu um jantar carinhoso na Escola. Como o recital começara às 18:00h, eis que, vinda do Porto com seu filho, chega à Escola por volta das 20:00h a notável violoncelista Madalena Sá e Costa, irmã da saudosa pianista e professora Helena Sá e Costa. Completaria 96 anos no dia seguinte, mas fez-se presente ao recital que acabara de ser realizado, pois tanto ela como seu filho, arquiteto Luís, equivocaram-se quanto ao horário. Com memória prodigiosa, lembrou-se com pormenores de nossa apresentação em Janeiro de 1986 na cidade do Porto, na Delegação Regional do Norte, onde realizamos um recital que marcou. Lembranças vieram, inclusive, do programa interpretado com empolgação. Obras de Beethoven e Luís Filipe Pires. Findo o jantar, em cumplicidade com Elisa Lessa, levamos Madalena Sá e Costa ao auditório. Uns poucos nos acompanharam. Primeiramente, saudei-a ao piano com o “Parabéns a você” e toquei Rameau, Carlos Seixas e ainda uma obra de Fernando Lopes-Graça. Regina, que adentrara à sala, sob minha insistência homenageou-a com uma Sonata de D. Scarlatti e Saci, de Villa-Lobos, completando com um “Parabéns a você” bem mais incrementado do que o meu, este, um simples coral. Uma noite a não ser esquecida.

No dia seguinte houve a última apresentação. Deu-se em Póvoa de Varzim. Organizado pela Escola de Música, tão bem dirigida pelo professor e regente José Abel Carriço, o recital teve lugar no Auditório Municipal. Um magnífico piano de concerto Fazioli, tão raro nas salas pelo mundo devido à diminuta produção esmeradamente artesanal, estava à minha disposição. Realmente um instrumento que reage às mais sensíveis intenções. Um público atento acompanhou com entusiasmo o repertório apresentado durante toda a tournée. E mostrou-se receptivo ao livro “Impressões sobre a Música Portuguesa”.

O balanço dessa peregrinação musical tem aspectos altamente positivos. Estou absolutamente convicto de que o repertório inusitado merece a guarida necessária. Continuo a insistir perante os prezados leitores de meu blog. Os ouvintes gostam dele, a depender de como os organizadores que conhecem a arte musical  promovem o evento e também, em estado sine qua nom, da maneira como ele é apresentado. É lógico supor – a constante está a demonstrar através dos tempos a assertiva – que agentes não versados em música, mas nos resultados financeiros, não têm apreço pelo novo, passado ou presente. Insistem na mesmice e empobrecem mentes, que se fossilizam na repetição. O “novo histórico” é revelador e mostra ao homem a riqueza de talentos privilegiados, que souberam compor na perfeição, mas permaneceram ignotos. Nunca é demais insistir.

Sob outra égide, a minha devoção à música para piano de Portugal, como a de nosso país em segmentos que elegi, continuará. Ainda há repertório não divulgado de raro valor. O manancial lá está, depositado em coleções particulares, em bibliotecas ou museus. Esse debruçar jamais exclui a atração pela contemporaneidade e uma das grandes alegrias que tenho como intérprete é poder revelar obras de hoje. Se François Servenière e Eurico Carrapatoso, dois notáveis compositores, integraram tematicamente o repertório da tournée que ora finda, outros autores, de Portugal, do Brasil e alhures, estarão a me interessar. Dar sentido à vida nessa revelação que se renova anualmente é realmente uma dádiva.

A digressão para 2012 já está a ser pensada. Como habitualmente faço, com exceção do recital em Coimbra, precedido da apresentação do livro na presente turnê, deverei começar por Lisboa. O Templo de Lopes-Graça, a Academia de Amadores de Música, onde dei meu primeiro recital aos 14 de Julho de 1959, a convite do compositor Lopes-Graça, continua perenemente a ser “o meu primeiro e virginal abrigo”, parafraseando o poeta Luís Guimarães Júnior.

For the last three weeks I’ve been writing about my concert tour in Portugal. This is the last post of the series, covering the recitals held in Braga and Póvoa de Varzim.