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Alguns aspectos da magnificente Cultura de Portugal

Far-se-á alguma vez a sincronização,
verificar-se-á algum dia a unidade de propósitos,
a harmonia de forças entre a música portuguesa e a cultura portuguesa,
encaradas uma e outra do ponto de vista do processo nacional?
O futuro o dirá, mas não era mau que todos nós fôssemos preparando,
na medida das nossas forças, para o conseguir.
Fernando Lopes-Graça
(“A Música Portuguesa e os seus problemas”, 1959)

Nesses dezesseis anos de blogs ininterruptos publicados sempre aos sábados, um número considerável foi dedicado à Cultura de Portugal, mormente a Música. Quantos às gravações, considerando-se obras de compositores do Brasil e de Portugal, cerca de doze CDs foram dedicados às criações dos dois países, equilibradamente. Foram as dezenas de viagens a Portugal para recitais, mas igualmente para outras atividades voltadas à Música, que me levaram à ratificação do encantamento pela Cultura do país. Considero que foi fundamental o culto aos valores literários portugueses que meu saudoso Pai transmitiu aos quatro filhos. Líamos mais os autores de Portugal, de Camões aos da primeira metade do século XX, do que escritores e poetas brasileiros.

Transcorriam os blogs hebdomadários e, a certa altura, verifiquei que o retorno periódico à Cultura portuguesa se fazia de maneira espontânea.

A reunião de textos resultou na publicação, pela Imprensa da Universidade de Coimbra, do primeiro volume de “Impressões sobre a Música Portuguesa” (2011), prefaciado pelo ilustre musicólogo e autor português Mário Vieira de Carvalho, livro este que teria a edição brasileira lançada pela Editora da Universidade de São Paulo em 2014.

Daqueles anos até bem recentemente, outros 63 blogs foram dedicados à Cultura de Portugal, salientando-se sempre prioritariamente a Música, mas não negligenciando outras áreas do conhecimento. Na breve turnê que realizei em solo português no ano passado, após o décimo recital, desde um primeiro em 2004 na magnífica Biblioteca Joanina em Coimbra, apresentei à Direção da Imprensa da Universidade de Coimbra proposta que reunia aqueles posts publicados sobre música, mas também com inserções temáticas outras, como literatura em prosa e verso, história, aventura, esta última salientando o excepcional alpinista João Garcia. Foi motivo de grande alegria o comunicado de que o Conselho Editorial da IUC aprovara a publicação, que viria a ser realidade no fim de 2022. Tive sempre o incentivo do relevante João Gouveia Monteiro, um dos mais importantes medievalistas da Europa e professor da Instituição fundada em 1290. A leitura de três de seus livros basilares apenas ratifica minha admiração pelo seu perfil de grande pesquisador.

Ponderei em vários blogs que haveria a necessidade imperiosa de a Música Portuguesa ser muitíssimo mais divulgada. Poderia parecer repetição, pois insisto em vários posts nesse quesito essencial. Se alguns intérpretes de valor de Portugal buscam expandir a aceitação da criação portuguesa, haveria que existir a participação do Estado nessa propagação das composições do país, no sentido de que elas merecessem ser visitadas e tocadas por músicos de outros centros mundiais. Trata-se de um árduo trabalho de divulgação que teria de estar amparado por especialistas da área, não necessariamente músicos, mas ao menos com visão cultural ampla. É certo que a cultura erudita tem sofrido erosão, mercê do avanço avassalador de outras voltadas ao supérfluo, ao efêmero e que, renovadas não qualitativamente, seduzem multidões. Essa derrocada não vem isolada, pois contamina tradições, costumes e até moralidade.

A respeito da Música, estudiosos se debruçam sobre sua importância na sociedade portuguesa. Os musicólogos José Maria Pedrosa Cardoso (1942-2021), a quem dediquei in memoriam o livro ora publicado, e Mário Vieira de Carvalho são alguns exemplos meritórios de pesquisadores que entendem na essência essencial a relevância da criação musical portuguesa. Alguns de seus livros são mencionados no presente “Impressões sobre a Música Portuguesa” (II).

No livro em pauta, blogs foram particularmente dedicados a compositores que me são caros e que integram meu repertório pianístico habitual. Fernando Lopes-Graça (1906-1994) destaca-se entre os mais importantes compositores do século XX, infelizmente ainda não divulgado à altura nos países europeus e nas Américas, apesar do seu incomensurável valor. Em Simpósio de que participei, promovido pela Associação Lopes-Graça em Moira, observei que, se em um concerto hipotético com auditório pleno em Portugal alguém perguntar aos presentes se conhecem nosso músico maior, Heitor Villa-Lobos (1887-1959), haverá aqueles que dirão conhecer algumas obras do compositor. Mutatis mutandi, se no Brasil fizerem o mesmo em relação a Lopes-Graça, corre-se o risco de haver um silêncio sepulcral. No Brasil é quase nulo o conhecimento da composição portuguesa, hélas.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, “Sonata em Mi Maior, nº 34, na interpretação de J.E.M.:

Carlos Seixas – Sonata nº 34 in E major – José Eduardo Martins – piano – Bing video

Diria igualmente que o notável compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742) não é tocado em nosso país, ele que foi tão admirado pelo grande Domênico Scarlatti (1685-1756). Algumas das Sonatas de Seixas, que gravei ao piano para um álbum duplo de CDs (23 Sonatas, selo belga De Rode Pomp), estão no Youtube. Outros compositores portugueses também estão no aplicativo. Enumerando-os: de Francisco de Lacerda (1869-1934), açoriano de São Jorge, amigo de Claude Debussy, regente renomado, as “Trente-six Histoires pour amuser les enfants d’un artiste”; do saudoso amigo Jorge Peixinho (1940-1995), o “Étude Dei-Reihe Courante”; do brilhante compositor contemporâneo e dileto amigo Eurico Carrapatoso (1962- ), as “Six histoires d’enfants pour amuser un artiste” e  a “Missa sem palavras”. São vários os blogs dedicados a esses mestres, que dignificam a Música Portuguesa, nos quais amplio considerações a respeito de obras que tive o prazer de apresentar em solo português e brasileiro, tantas delas em primeira audição.

Acredito firmemente que, se houver empenho efetivo e permanente do Estado português, compositores como Carlos Seixas e Fernando Lopes-Graça, como exemplos, estariam a ser interpretados frequentemente no planeta. Não mereceriam o olhar que propicia aberturas?

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, “Étude V – Die Reihe Courante”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Uc1PTtYbnoA

Ao longo dos anos, algumas figuras de relevo na cultura portuguesa foram lembradas após o passamento: organista Antoine Sibertin Blanc (1930-2012) – nascido em França, mas com destacada atuação como intérprete e professor em Portugal durante décadas -, pianista Sequeira Costa (1929-2019), Presidente da República Portuguesa Jorge Sampaio (1939-2021) e o musicólogo, meu amigo-irmão, José Maria Pedrosa Cardoso (1942-2021).

Aos 84 anos o tempo se abrevia, mas continuarei a pontuar as Culturas da pátria-mãe em meus blogs hebdomadários.

“Impressões sobre a Música Portuguesa” ( II ) está à disposição do leitor através do link:

https://www.amazon.com/dp/9892623231

“Impressões sobre a Música Portuguesa e outros temas” (II) focuses  primarity on Portuguese Music. Nevertheless, there are reviews about some works written by Portuguese authors. In the 63 texts, written from November 2011 to December 2021, Portugal is always kept as my point of focus.

 

Da solidão a uma noite mágica

De todas as histórias que nos contava guardei apenas
uma vaga e imperfeita lembrança. Porém,
uma delas ficou tão nitidamente guardada em minha memória,
que sou capaz de repeti-la a qualquer momento,
a pequenina história do nascimento de Jesus.
Selma Lagerlöf (1858-1940)
“Lendas cristãs”
Prêmio Nobel de Literatura (1909)

Quantos de nós, cristãos, não temos algumas recordações do Natal enquanto crianças? Havia algo misterioso relacionado ao evento maior da cristandade. Quando miúdos, era-nos ensinada toda a saga que culminaria com o nascimento de Jesus e, nesse contexto, também aguardávamos a figura do Papai Noel com seus presentes.

O tempo passou e, aos 20 anos, um prêmio num Concurso Nacional de Piano em Salvador contemplou-me com bolsa do governo da França para estudar em Paris. Devido a não burocracia dos franceses, poucos dias após já estava em Paris.

Primeiro Natal fora do lar naqueles remotos tempos de amizades ainda não solidificadas. Intenso estudo pianístico, sob orientação da lendária pianista e professora Marguerite Long, levava-me, por vezes, a 10 horas diárias de estudo.

Noite gélida na véspera do Natal de 1958 em Paris. O barômetro apontava 3 graus negativos no portal do prédio onde morava, Rua Jacques Bingen, 16, no 17ème. Sai a caminhar sem destino preciso. No percurso via muitos apartamentos iluminados, a contrastar com o aspecto dos prédios que, àquela altura, ainda mantinham um cinzento sombrio, treze anos após o final da 2ª Grande Guerra. As passadas a esmo na gélida noite apenas acentuavam um sentimento de nostalgia. Nevava tenuemente.

A intenção primeira era continuar a andar por uns bons quilômetros sem rumo preciso, mas a cerca de um ou dois km após, ao passar em frente a um edifício que mantinha as luzes acesas e portas abertas, ouvi vozes femininas a cantar. Surpreso, simplesmente parei e fiquei encantado após pensamentos, se não negativos, incertos. Repentinamente, duas freiras já com certa idade desceram uns poucos degraus da escada e, agitadas, conversavam sobre a ausência do organista para a missa do galo. Delas me aproximei e perguntei-lhes se algo grave ocorrera. Disseram que o coral das noviças sempre cantava com acompanhamento na noite de Natal e que sem um guia se sentiam desamparadas. Afirmei-lhes que estava em Paris a estudar piano e que se quisessem… A agitação transformou-se em sorrisos largos e conduziram-me ao recinto onde as moças estavam realmente desconsoladas. O instrumento era um antigo harmonium ou harmônio. Deram-me as partituras e iniciamos a seguir os ensaios, que demoraram uma boa hora, pois logo após cidadãos, a maioria constituída por casais de idosos bem protegidos do frio intenso, adentraram parte da sala transformada em Capela.

Solicitei que uma das freiras ficasse ao meu lado para as entradas dos hinos religiosos durante a Santa Missa. Não me recordo das peças sacras que acompanhei no transcurso da cerimônia religiosa, apenas vindo-me à memória a célebre “Adeste Fidelis”. À medida que transcorria a Missa algo extraordinário se passava comigo, uma espécie de entusiasmo contido. Finalizada a Missa, enquanto os fiéis ainda permaneciam na Capela, toquei, em ato espontâneo naqueles momentos de confraternização, “Jesus Alegria dos Homens”, de J.S.Bach-Hess, incidente inusitado, mas que agradou as irmãs da Ordem religiosa.

Clique para ouvir, de Bach-Hess, o coral “Jesus alegria dos homens”, na interpretação de J.E.M. (gravação realizada em Mullem, Bélgica, 2004):

https://www.youtube.com/watch?v=flrkpW5L4KQ

Findos os ofícios, despedi-me das freiras, que não me deixaram partir, fazendo-me um convite, pois no salão contíguo à Capela, haviam preparado uma ceia singela. Para o jovem que eu fui, aquele sincero apelo para que permanecesse foi um verdadeiro bálsamo, evocou o que sempre senti nas festas natalinas em casa de meus pais e dissipou quaisquer pensamentos de nostalgia. Ao perguntar a uma das freiras a Ordem a que pertenciam, disseram-me que se tratava de uma irmandade católica de origem norte-americana.

Ao regressar naquela noite tão fria rememorei tantos contos lidos ao longo das décadas que invocavam episódios mágicos ou misteriosos relacionados ao Natal. Fiquei a pensar que não teria sido apenas o acaso, mas algo mais, pois até então nunca havia transitado por aquela rua. A não menos de 100 metros de onde morava há a Église Saint-Charles-de-Monceau, na Rue Légendre, igreja que frequentei várias vezes, tendo por ela passado no início da caminhada daquela noite, mas sequer prendeu-me a atenção.

Clique para ouvir do notável compositor e meu estimado amigo, Eurico Carrapatoso, “Ó meu menino Magnificat em talha dourada”. Coro e Ensemble Olisipo, soprano Angélica Neto:

https://www.youtube.com/watch?v=Mdud4L0yR4U

Se tivesse de enumerar outras reuniões natalinas mantidas na memória, não saberia precisá-las em seus pormenores. Esvaíram-se e apenas lampejos veem-me à mente. Qual a razão de unicamente aquela véspera de Natal em Paris ter ficado indelével, com suas cenas incólumes? Ao pensar nelas, a mente ativa as imagens registradas e guardadas no meu de profundis. O notável filósofo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985) afirmava que o segredo se explica, o mistério é insondável.

Fosse hoje, não mais me sentiria sequer seguro a perambular noite adentro pelas ruas menos frequentadas de Paris.

A todos os leitores desejo um Natal em Paz, algo de que estamos a necessitar nestes tempos turbulentos por que passa o país.

Clique para ouvir “Natal de Elvas”, na interpretação do Coro Capela Gregoriana Laus Deo, dirigido pela minha dileta amiga Idalete Giga, que realizou a harmonização da música extraída do Cancioneiro alentejano:

https://www.youtube.com/watch?v=l5YnExjckwU

Of all Christmas nights I have attended, very few actually remain in my memory. Only one was unforgettable: a magic Christmas eve in Paris in 1958, probably the happiest of my entire life, indelibly retained in my mind with all details.

O retorno aprazível

Se não apontares ao impossível, te sairá baixo o tiro ao possível.
Agostinho da Silva
“Espólio”

Foi no longínquo 1971, ano em que a cidade de Goiânia comemorava seus 38 anos de fundação, que pela primeira vez me apresentei na cidade. Já demonstrava a vocação de ser uma das pujantes do Centro-Oeste, apenas superada por Brasília em termos populacionais. Minha relação com a cidade se prolonga ao longo de meio século, volvendo periodicamente a fim de recitais promovidos por diversas entidades, mas também para cursos, congressos e bancas universitárias junto à Universidade Federal de Goiás.

Estou a me lembrar de ter oferecido curso na Escola Mvsika para jovens postulantes à carreira musical, após realizar duas apresentações em anos sucessivos.  O convite veio através da referencial pianista e professora Glacy Antunes de Oliveira, uma das fundadoras do estabelecimento. Foi no biênio 1974-1975 que frequentei a cidade no fim de cada mês para aqueles encontros didático-musicais. Com alegria reencontrei na atual visita antigos frequentadores do curso e que hoje desempenham profícua atividade musical na cidade.

O universo dos afetos contempla geograficamente cidades que são caras por motivos diversos. Não é fácil saber os motivos das escolhas, pois eles naturalmente se instalam em nosso de profundis. Se Paris ficou-me indelével pela formação primordial entre os anos fronteiriços às décadas 1950-60 e pela relação posterior intensa em torno de Claude Debussy; se Gand, na Bélgica, me é preferencial sob outra perspectiva, pois lá me apresentei mais de vinte vezes e pelo selo De Rode Pomp foi lançada a maioria de meus 25 CDs gravados na mágica capela Saint-Hilarius, em Mullen, milenar pequena cidade próxima à Gand, sendo que espero finalizar minha atividade pianística nessa cidade flamenga, mercê do legado e de indelével relacionamento humano; se Portugal como um todo, pois cerca de vinte cidades foram visitadas para recitais prioritariamente, mas também para outras atividades culturais ao longo de 60 anos e afetos imaculados incontáveis; em termos pátrios uma cidade tem para mim significado especial, Goiânia. Quantas outras foram repetidamente visitadas e das quais guardo recordações que perduram! No crepúsculo da atividade pianística seria possível aceitar que o curso mencionado nos inícios da década de 1970 fincou sólidas bases, o que fez com que aos sucessivos convites para várias atividades ligadas à música tivessem singular posicionamento. Diria que os elos forjados naqueles tempos permaneceram imunes a quaisquer possibilidades adversas.

Durante o período mais sombrio da pandemia resolvi doar parte substancial de minha biblioteca musical, incluindo partituras, à Universidade Federal de Goiás. Uma camioneta da UFG retiraria 14 caixas com esse primeiro acervo. Alguns amigos e professores comentaram que a destinação deveria ter sido a Universidade de São Paulo, onde permaneci durante 27 anos. Não obstante essas salutares divergências, entendo que o Sudeste já está contemplado por acervos consideráveis não apenas nas três universidades paulistas, como nas do Rio de Janeiro e outras mais… Le coeur a ses raisons que la raison ignore, já professava Blaise Pascal (1623-1662). Diria que razão e coração se incluem na minha decisão, que será completa quando de minha ida para os anjinhos. Minha mulher e filhas não apenas acatam, como estimulam o envio à UFG do acervo que ainda mantenho e que me possibilita continuar pesquisas… A modesta contribuição será propícia àqueles pesquisadores do Centro-Oeste e, só de pensar nesse futuro debruçamento de estudiosos, traz-me aquilo que professava meu padrinho de crisma, D. Henrique Golland Trindade (1897-1974), arcebispo de Botucatu,  que oficiou meu casamento com Regina em 1963: “santo orgulho”. Saber destinações.

O convite de Gyovana Carneiro, professora da UFG e “agitadora” cultural em Goiânia, e que no início dos anos 1990 frequentou curso que ministrei na pós-graduação na USP, foi no intuito da realização de um recital na nova sala da cidade, pequena e aconchegante, “Estúdio de Piano & Experiência Musical Natália Mendoza”. Trata-se de uma nova proposta que atende, paradoxalmente, ao decréscimo da aceitação da denominada música de concerto, mormente para as novas gerações, bombardeadas diariamente por um sem número de outros anseios através dos mutantes meios internéticos. O pequeno espaço, à la manière das ancestrais comunidades cristãs, que se reuniam sempre com intensidade exemplar, torna-se igualmente um local de resistência. Grata surpresa foi a presença de figuras relevantes do meio universitário e cultural de Goiânia, entre elas o Reitor da UFG, professor Edward Madureira, e outros docentes das várias áreas do conhecimento, entre os quais Anselmo Pessoa (literatura italiana),  assim como membros da sociedade amantes da música de concerto que compareceram ao evento que, numa primeira parte, homenageava o nosso ilustre Gilberto Mendes, mercê do centenário do compositor (1922-2016). A seguir interpretei criações de Bach-Liszt, Debussy, Oswald e Scriabine (sesquicentenário de nascimento).

Faço minhas as palavras de Mario Vargas Llosa que, em seu consagrado livro “La Civilización del espectáculo”, vaticinava a queda da cultura erudita. Ela se processa a passos largos. Se considerarmos os mais ventilados sites portais do país, logo nas páginas de abertura não mais há quaisquer resquícios alusivos à atividade da “outrora” alta cultura, duas palavras que eram habituais, inclusive a designar importante instituição portuguesa, “Instituto de Alta Cultura”. O leitor se lembrará de que anos atrás tencionaram retirar dos currículos escolares brasileiros autores como Camões e tantos outros luminares, numa tentativa rasteira de minimizar a cultura tida por esses mentores como elitista. Não houvesse resistência entraríamos num obscurantismo literário. Os sites mais frequentados do país privilegiam o supérfluo, a derrocada dos costumes e da moralidade, pois temas ligados a sexo e suas “modalidades” estampam as primeiras páginas desses concorridos portais com vexatória permissividade, em acréscimo abandonando o trato basilar da língua mater. Estou a me lembrar de tempos outros em que, durante uma década, escrevi para o Suplemento Cultural de “O Estado de São Paulo”. O saudoso e notável editor responsável, Nilo Scalzo, dizia que na redação havia um especialista que revisava todos os textos do denominado “Estadão” e do “Jornal da Tarde”, a fim de que erros ortográficos, de sintaxe e outros mais não aparecessem nas publicações. Quantos não foram meus textos de três páginas sobre música e arte publicados nesse outrora veículo exemplar?   A permissividade atual dos portais apresenta-se plena, sem pejo e todo um besteirol é transmitido às novas gerações. Infiltrado nas mentes, proliferam como erva daninha. Arte, literatura, música pareceriam pertencer, para esses portais, atividades “jurássicas”. Sob a égide da música efêmera, multidões, mormente de jovens, acorrem aos espetáculos de altos decibéis e rigorosamente descartáveis. Valor intrínseco, nenhum. Dizia eu em Goiânia que a morte trágica de cantora goianiense levou cerca de um milhão de pessoas aos seu sepultamento. Naqueles dias faleceu o maior pianista brasileiro da segunda metade do século XX e reconhecido no mundo como um expoente, Nelson Freire. Menções relativizadas e mínimas na mídia. Semanas após, pouco se falava da cantora. Nelson Freire permanecerá através de um legado indiscutível, felizmente registrado em gravações memoráveis.

Acredito firmemente que, apesar da nítida decadência da cultura erudita, focos de resistência existirão. Se décadas atrás tínhamos várias salas de concerto em São Paulo, como exemplo, e músicos consagrados e os jovens promissores recebiam público numeroso, hoje um teatro e uma sala, ambos grandes, recebem público considerável, mormente quando nomes consagrados no Exterior aqui aportam para récitas. As pequenas salas fecharam suas portas, e duas ou três continuam heroicamente a resistir. Intérpretes qualitativos nelas se apresentam e recebem ouvintes selecionados, que ainda cultuam a atividade musical erudita. Inúmeras vezes mencionei que na década de 1950 São Paulo tinha treze críticos musicais, que resenhavam considerações competentes tanto para os luminares como para os iniciantes. A maioria deles era versada em música. A cidade agigantou-se e a crítica musical estiolou-se. Não mais há o crítico musical de ofício, apesar de alguns assim  se autodenominarem. É de se lamentar.

É pois relevante a inauguração de uma sala pequena, mas que servirá de estímulo às manifestações de recitais e cursos. Se Goiânia teve, entre baluartes da arte pianística, a amiga saudosa Belkiss Carneiro de Mendonça (1928-2005), formadora de uma geração de competentes pianistas e que me concedeu o privilégio de prefaciar seu último CD, a chama da música de concerto não feneceu e o piano deverá continuar a revelar talentos, apesar dos tempos desalentadores. Que a esperança não feneça!

It is always a pleasure returning to Goiânia for musical activity. I have been there to present a recital in honour of the remarkable composer Gilberto Mendes in the small and cosy room of the “Studio of Piano & Musical Experience Natália Mendoza“, in the presence of a select audience.