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Palestra e entrevistas

Na música, uma figura rítmica, um germe melódico,
um ocasional agregado harmónico, uma sugestão tímbrica,
é que são o ponto de partida para a organização sonora,
que, justamente porque é uma organização,
não nos é dada de pronto: vai-se-nos impondo,
vai sendo, vai-nos sendo,
até se perfilar numa forma,
e toda a forma é construção.
Fernando Lopes-Graça
(“Disto e Daquilo” – Crítica, criação, público, etc.)

Um período longo se passou do recital aos 14 de Julho de 1959 à retomada dos recitais em 1982. Prolongado hiato em que penetrei intensamente nos estudos voltados ao repertório pouco frequentado de um passado que remonta do século XVIII à metade do século XX e na divulgação progressiva de parcela da criação contemporânea, excluindo tendências, tantas delas impactantes, mas efêmeras. O culto ao repertório sacralizado continuou, mas homeopaticamente.

O regresso a Portugal se deu em torno de Claude Debussy. Havia interpretado a integral do compositor francês em quatro recitais e escrito o livro “O Som Pianístico de Claude Debussy” (Novas Metas, 1982), com prefácio da ilustre gregorianista Júlia D’Almendra. Nascia àquela altura uma amizade que se perpetua através da também competente discípula de d’Almendra, Idalete Giga. É ela que, sempre entusiasta, comparece aos recitais que se prolongam desde a retomada em 1982 e que, pela segunda vez, convidou-me para proferir conferência na sede do Centro Ward de Lisboa – Júlia D’Almendra sob o título “De Carlos Seixas a Eurico Carrapatoso – um envolvimento pleno”.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, a Sonata nº 78, em Si bemol Maior, na interpretação de J.E.M.:

Carlos Seixas – Sonata nº 78 in B flat major – José Eduardo Martins – piano – YouTube

Com a greve dos ferroviários, nossos diletos amigos António Sousa e Maria do Rosário nos levaram de Tomar a Lisboa para três eventos na cidade. Resquícios de uma prolongada pandemia obliteraram a realização de um recital na cidade, pois datas foram sendo alteradas desde 2020!

Mercê do caminho já trilhado, Idalete me solicitou, para a palestra, a abordagem que correspondia a uma retrospectiva quanto ao envolvimento com a criação musical em Portugal, autores percorridos e que me encantaram. Dos 25 CDs gravados no Exterior, seis foram dedicados à música portuguesa e outros seis à música brasileira, fato que corresponde exatamente ao que sempre pensei, pois não faço diferença entre Brasil e Portugal, devido certamente ao fato de nosso Pai, nascido no Minho, nos ter ensinado a essência essencial da palavra amálgama.

Em inúmeros blogs teço comentário sobre o repertório português que tive o prazer de estudar e outro que, em conhecendo, igualmente admirei, parte desse graças ao convívio com o meu saudoso amigo-irmão, o notável musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso. Como não ser grato a Conceição Correia, que me possibilitou a leitura, no Museu da Música Portuguesa – Casa Verdades de Faria, em Cascais, de manuscritos essenciais de Fernando Lopes-Graça. À medida que me aprofundava, mais entendia o alcance de suas criações. Estou a me lembrar desse choque frente à totalidade dos manuscritos para piano de Claude Debussy. O saudoso amigo e maior expert em Debussy na segunda metade do século XX, François Lesure (1923-2001), permitiu-me durante 15 dias a leitura dos manuscritos para piano do grande compositor.  Permanecia durante o expediente em sala fechada na Bibliothèque Nationale em Paris. Um ano após, disse-me ele que toda essa produção estaria digitalizada, sendo que pesquisadores teriam disponíveis doravante a opera omnia em formato digital. Em termos brasileiros, igualmente estudei os manuscritos para piano das criações de Henrique Oswald, Gilberto Mendes e Almeida Prado. Acredito que o estudo a partir dessa fonte primeira revela tantas vezes o pulsar, a hesitação, a rasura, mas a pairar num patamar excelso, a criatividade do compositor. No presente, praticamente não mais se tem composições em manuscrito, pois estas têm sido digitalizadas no desenrolar da criação.

Clique para ouvir de Jorge Peixinho, Etude V Die Reihe-Courante, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Uc1PTtYbnoA

Na conferência do dia 14 de Junho a longa caminhada foi resumida de maneira sucinta. Friso sempre que a escolha do repertório deve estar sempre sob a égide amorosa. Selecionar o que deve ser interpretado após debruçamento pode basear-se em várias vertentes, como a qualidade do compositor; o contexto histórico da criação; a estrutura da obra estudada; a comunicabilidade de uma composição. Neste último caso, tantas tendências composicionais na atualidade se destinam unicamente a guetos. De Jean-Philippe Rameau (1683-1764), uma frase basilar: “La musique c’est le langage du coeur”. Dificilmente um compositor de reais méritos escreverá obra descartável, podendo sim ter criações que não atinjam o gosto do público por razões as mais diversas, mas elas lá estão para qualificar o que foi deixado no papel pautado.

Idalete Giga fez a apresentação da palestra e durante o encontro interpretei algumas obras no piano que foi de Júlia d’Almendra, piano que durante uma década (1980-1990) foi o instrumento que acolhia meus preparativos para os recitais em Portugal. Recordo-me de introduzir um cachecol sobre a surdina, durante as madrugadas, a fim de não acordar a vizinhança do andar superior, mormente quando determinadas composições estavam ainda “frescas” no repertório e necessitavam da maior atenção.

Outro aspecto a se considerar é a concentração que se deve manter quando um compositor está sendo estudado. Germina a curiosidade, uma das dádivas do homem. Conhecer mais obras de um compositor, desde que uma primeira determina o prosseguimento das investigações. Por vezes entramos num labirinto, mas é algo mágico o desvelamento progressivo de outras composições de um mesmo autor, sobretudo quando inéditas. Carlos Seixas, Francisco de Lacerda e Lopes-Graça se inserem nessa revelação. Da contemporaneidade, as obras de Eurico Carrapatoso, que tanto têm a ver com o preceito de Rameau, sempre me interessam.

Perguntas foram formuladas e busquei respondê-las a contento.

Após a palestra fui entrevistado pelo ilustre escritor e jornalista Joaquim Vieira, que se deslocou do Porto a Lisboa para o encontro, pois está a preparar um documentário sobre Fernando Lopes-Graça.

No dia 15, entrevistado pelo competente Paulo Guerra para o programa Antena2 da RDP, tive a oportunidade de responder às perguntas sobre minhas gravações, mormente aquelas voltadas à música portuguesa. Como não há foto do registro, inseri a tirada em 2018, quando o saudoso amigo-irmão Pedrosa Cardoso e eu estivemos no mesmo estúdio da Rádio.

Finda a breve turnê, Eurico Carrapatoso dedicou-nos generosamente um dia, levando-nos às florestas de Sintra. Idalete Giga nos acompanhou, mostrando-nos no dia seguinte outras maravilhas da região, pois  minha neta Valentina queria conhecer o local onde as fotos de Lopes-Graça com seu avô haviam sido tiradas em 1959.

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, Missa sem Palavras – Cinco Estudos Litúrgicos, na interpretação de J.E.M.:

Eurico Carrapatoso – Missa sem palavras – José Eduardo Martins – piano – YouTube

 

Numa manhã, feriado em Lisboa, transitava pelo Bairro Alto e desci a Rua Nova da Trindade, onde no nº 18 se encontra a Academia de Amadores de Música, instalada no 2º andar à esquerda. Fundada em 1884, por lá estiveram as figuras mais representativas da Música, assim como da Literatura e das Artes de Portugal, nos incontáveis eventos ao longo das décadas.  Passaram-se 63 anos da minha primeira apresentação em Portugal. Ao dizer à Valentina que o prédio deverá sucumbir à sanha das incorporadoras, quis minha neta registrar, possivelmente, uma última foto do intérprete frente a Academia, Templo que entendo do grande Lopes-Graça.

 

My presence in Lisbon was dedicated to three essential events: a conference at “Centro Ward de Lisboa – Júlia D’Almendra” at the invitation of Idalete Giga, competent Gregorian Chant specialist and prominent choral conductor, as well as two interviews. The renowned journalist and writer Joaquim Vieira is preparing a documentary about Fernando Lopes-Graça, hence the interview. With Paulo Guerra from RDP I talked about Portuguese Music and the imperious necessity of more emphasis on its international promotion.

Cidade plena de encantos

Se os meus biógrafos um dia afirmarem que a Música
foi a fada que velou pela minha infância, mentem. Ou, então,
se achais que a palavra mentir
é insultuosa para a dignidade de um biógrafo,
direi que fantasiam no ar, coisa que, aliás,
lhes sucede com frequência.
A música foi para mim um puro acaso,
um acidente, uma brincadeira aí dos meus onze anos.
Fernando Lopes-Graça
(“Disto e Daquilo” Recordações em dó maior, Cosmos,1973)

Estou a me lembrar de minha primeira apresentação em Tomar. Foi no longínquo Fevereiro de 1982 que pela primeira vez dei recital na cidade, a convite de Manuela Tamagnini (1911-1989), fundadora, diretora e professora do Conservatório Regional de Tomar e uma das alunas diletas da grande especialista em Canto Gregoriano e da obra de Claude Debussy, Júlia d’Almendra (1904-1992). Em Lisboa, quando nos anos 1980 inúmeras vezes visitei Portugal para recitais, ficava hospedado em sua morada, na Rua d’Alegria, 25, 1º andar, pois nossa amizade se fundamentara em torno da obra de Debussy. Dirigindo um pequeno Toyota de Júlia, em estrada tortuosa que oferecia àquela altura trechos perigosos, tomava as precauções necessárias e evitava que minha dileta amiga conduzisse. Recordo-me de me ter perdido nas duas viagens, mercê da sinalização ainda precária e das estradas não duplicadas, mas lá chegávamos, sempre generosamente acolhidos por Manuela Tamagnini em sua casa. Dizer que os recitais ficaram gravados indelevelmente atesta uma realidade que, acionada a mente, traz-me sensível emoção.

Décadas após regressei a Tomar e habitualmente me apresento sob a égide da referencial escola de Música Canto Firme, a convite do destacado musicólogo, professor e dirigente coral António Sousa. Em sendo proverbial a acolhida em Tomar, na residência do casal António e Maria do Rosário permanecemos ao longo dos anos durante os dias das atividades musicais. Se em jornadas anteriores minha mulher Regina esteve comigo, desta vez, na turnê ora finda, nossa neta Valentina me acompanhou.

As minhas idas a Tomar, nessa segunda fase, sempre estiveram sob a égide do compositor maior da história da música portuguesa. Recitais e palestras, neles inseridos criações de Fernando Lopes-Graça que tive o privilégio de gravar em primeira versão em CDs: Viagens na Minha Terra, Música de Piano para Crianças, Cosmorame, Músicas Fúnebres e Canto de Amor e de Morte, composição esta publicada pelo Movimento Patrimonial da Música Portuguesa, mpmp, a partir de minha edição baseada num único manuscrito do compositor. Obra prima absoluta.

Sucintamente observei no post de 18/06/2022 as atividades em Tomar nessa última digressão. Faço-o no presente de maneira mais pormenorizada.

Na palestra que se deu na Casa Memória Fernando Lopes-Graça, local onde o compositor nasceu, o tema versou inicialmente sobre obras basilares que tive o privilégio de pesquisar. A seguir, sobre a necessidade imperiosa de se divulgar as criações de Lopes-Graça no Exterior. Se pianistas portugueses têm com maestria gravado e divulgado inúmeras criações de Lopes-Graça, o poder público, através de sua diplomacia, teria de estimular a divulgação das composições não só de Lopes-Graça (1906-1994), mas de Carlos Seixas (1704-1742), Francisco de Lacerda (1869-1934), Jorge Peixinho (1940-1995), quatro nomes entre outros ótimos músicos que já partiram. Como exemplo, citei na palestra as seis Sonatas para piano de Lopes-Graça, magnificamente gravadas por António Rosado e que não ficam a dever às de Sergei Prokofiev, penso eu. Edições, distribuição e empenho junto às entidades internacionais certamente colocariam Lopes-Graça num panteão especial. Haveria esse passo governamental? Frisei que o mesmo se dá com alguns dos mais importantes compositores do Brasil. Se Carlos Gomes (1836-1896), Henrique Oswald (1852-1931), Francisco Mignone (1897-1986) Camargo Guarnieri (1907-1993) e Cláudio Santoro (1919-1989), entre alguns dos mais importantes, permanecem basicamente ocultos sob a égide internacional, apenas Villa-Lobos (1887-1959) tem tido certa guarida nos repertórios do hemisfério norte.

No recital do dia 11 de junho, apresentei pela primeira vez em Tomar a magnífica coletânea Viagens na Minha Terra, gravada por mim em Leiria em 2003 para o selo Portugaler. Friso ser essa coletânea uma das mais expressivas do gênero em termos mundiais. O recital dedicado à memória de meu amigo-irmão, o ilustre professor e musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso, teve, quando da interpretação das 19 peças das Viagens na Minha Terra, imagens projetadas em vasta tela e carinhosamente preparadas por José Maria e sua esposa Maria Manuela. A anteceder o caderno das Viagens…, interpretei a bela criação de Eurico Carrapatoso, In memoriam José Maria Pedrosa Cardoso. Após a interpretação de criações de Bach-Liszt, Henrique Oswald, Gilberto Mendes e Scriabine e de um encore, relatei no post mencionado que, ao retornar ao palco, cantaram Parabéns a você…, comovendo-me.

Clique para ouvir, de Fernando Lopes-Graça, Viagens na Minha Terra, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=n0PwLys54GU

Na própria Canto Firme se deu um jantar em homenagem ao natalício e parte do coral dirigido por António Sousa cantou descontraidamente várias canções originais ou a partir de temas populares compostos por Lopes-Graça. Ao final, apaguei umas velinhas. “Resistir, quem há-de?”, a lembrar o poeta Luís Guimarães Júnior (1845-1898) em seu belo poema Visita à casa paterna.

Acompanhada do excelente pianista italiano Marco Rapetti e de sua companheira Suzane, Valentina se encantou ao visitar na cidade, um dos Patrimônios da Humanidade, o Convento de Cristo. Disse-me que as imagens estarão retidas para sempre em sua mente: os vários claustros, a Charola, a Janela do Capítulo…

Como curiosidade, após a palestra do dia 10 a cidade aguardava um evento tradicional, a noite das lanternas. Alunos das várias escolas tomarenses fazem barquinhos e neles inserem velas que deslizam pelo Nabão, rio que atravessa a cidade. Das pontes e das margens numeroso público aplaude o singelo e belo espetáculo. Tomar tem a vocação direcionada a preservar festejos e folguedos de antanho. Essa atitude frente ao passado encanta o visitante e o intérprete. Tenho pela cidade um apreço especial.

It was exactly 40 years ago that I performed for the first time in Tomar. Over the years I have returned a dozen times and the emotion is always the same. This time I was in Tomar for a lecture at Casa Memória Fernando Lopes-Graça to talk about my involvement with the composer’s work and also for a recital in which, among other creations by various authors, I performed the complete version of Lopes-Graça’s “Viagens na Minha Terra”. The city preserves ancient traditions. This time I had the pleasure of watching the floating lanterns festival in the waters of Nabão river and was fascinated by this respect for the past.

 

 

Sensível retorno após dois anos e meio sem travessia

Pouco a pouco a memória retornou,
ou melhor, a ela regressei,
encontrando a lembrança que me esperava.
Albert Camus

Chegou a termo a turnê que, breve, não deixou de contar com reais emoções. Nos dois posts anteriores, de maneira sucinta, teci observações sobre os eventos. Neste e nos dois próximos trarei pormenores. Comentei que devo encerrar minha atividade pianística pública aos 85 anos. Importa entender o tempo. Apesar de antever esse momento, é uma dádiva o intérprete se prolongar, diferentemente de outras atividades, como a esportiva de competição, implacável em tempo efêmero.

Sob outra égide, é reconfortante o regresso a locais que nos foram receptivos desde os primórdios e onde amizades se estreitaram! Como relatei várias vezes, minha primeira apresentação na Europa se deu em Portugal aos 14 de Julho de 1959, a convite do nome maior da música portuguesa, Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Recital no “Templo Sagrado”, a Academia de Amadores de Música de Lisboa, que não deverá ser poupada pela sanha imobiliária, hélas. Estou a me lembrar do ilustre filósofo Eduardo Lourenço (1923-2020), que afirmou: “Aquilo que de mais belo há na humanidade é que nós somos submersos às mesmas forças que regem realmente o mundo. Porque é que nós escaparíamos, quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”.

A turnê em Portugal evidenciou, após dois anos e meio de plena abstinência de recitais públicos, mais do que as apresentações, que foram bem sucedidas, a consolidação efetiva das amizades com músicos e professores portugueses, algumas que perduram há mais de meio século.

Comentei nos dois blogs precedentes o programa apresentado na Biblioteca Joanina em Coimbra. Minha neta Valentina, companheira de viagem, insistiu para que escrevesse mais sobre a sensação de tocar naquele espaço magnificente.

A Biblioteca Joanina, que integra o conjunto arquitetônico da Universidade de Coimbra, é o recinto mais emblemático em que me apresentei ao longo da atividade pianística. O jornal londrino The Telegraph inclui a Biblioteca Joanina entre “the most spectacular libraries in the world” (2013). Há algo mágico e misterioso que emana da Biblioteca Joanina, da sua arquitetura barroca requintada e da literatura lá conservada a partir do século XVIII, substancial parcela de volumes bem anterior à construção finalizada em 1728. Diferencia-se das enormes salas das grandes cidades em que, ao apagar das luzes da plateia, o intérprete se encontra literalmente só no extenso palco, inundado pelos holofotes nele centralizados, que dimensionam a escuridão a ocultar o público. Na Joanina, é o passado histórico-literário que a enriquece e a humaniza, sendo o público seu cultor e o intérprete, o mensageiro que, através das ressonâncias, reacende magias. Nada se lhe compara, pois a iluminação parcimoniosa corrobora os mistérios contidos nos milhares de volumes cercados pela ímpar arquitetura e estimula a imaginação. O intérprete é apenas mais um cultor da Joanina naqueles fugazes mas intensos momentos da execução pianística. O majestoso quadro com a imagem de D. João V, ricamente emoldurado em madeira dourada configurada em forma de cortina, ao fundo das três salas contíguas separadas por arcos e em ouro, mas individualizadas por fundos distintos, verde, vermelho e negro, e salas repletas de volumes, fazem lembrar um Templo diferenciado, a provocar uma sensação não distante, mas sob outra aura, daquela apreendida em uma igreja barroca da mesma dimensão. O piano, colocado quase frente à imensa tela, compõe cenário singular, único. Como ele se harmoniza com o belo cenário! A cada visita à Joanina sinto a sensação de maravilhamento. Um privilégio ter sido convidado, ao longo de dezoito anos, para nove recitais na Biblioteca Joanina, outros dois no Teatro Gil Vicente e um no Museu Nacional de Machado de Castro.

Privilégio ter ouvido a preleção do Professor da Universidade, o notável medievalista João Gouveia Monteiro, que teceu comentários sobre o homenageado, o saudoso musicólogo e Professor da Universidade de Coimbra José Maria Pedrosa Cardoso; assim como a respeito do programa apresentado e do intérprete. Afirmou que o recital que apresentei seria o único do ano. Palavras profundas pronunciou a respeito do homenageado: “…recital que ficará decerto para a história pela sua qualidade e também por ser inteiramente dedicado a um dos musicólogos a quem a Universidade de Coimbra mais deve nos últimos cinquenta anos, José Maria Pedrosa D’Abreu Cardoso, um querido amigo que nos deixou recentemente e que se distinguiu sobretudo pelos seus estudos sobre as peculiaridades da música portuguesa no contexto europeu”. Amigo-irmão, José Maria deixou imensas saudades e um legado sem precedente.

A peça introdutória do programa, In Memoriam José Maria Pedrosa Cardoso, uma pequena joia polifônica em tributo ao autor de tantos livros a abordar a música portuguesa desde o século XVI, foi composta pelo renomado Eurico Carrapatoso, que nos honrou com sua presença. Compositor e intérprete eram diletos Amigos do homenageado. Emoção forte. A seguir interpretei a Sonata em Lá Maior (59) de Carlos Seixas (1704-1742), o imenso compositor conimbricense, Sonata esta a preferida do Professor Gouveia Monteiro. Seguiu-se, na ordem, de J.S.Bach-Liszt, o Prelúdio e Fuga em lá menor para órgão na magistral transcrição de Franz Liszt. Os graves duplicados de um magnífico piano Yamaha soaram esplendidamente pelos espaços e estantes. Duas peças de Henrique Oswald (1852-1931) e duas homenagens a efemérides distintas, o centenário de nosso expressivo compositor Gilberto Mendes (1922-2016) através de Viva-Villa, e dez Poemas de Alexandre Scriabine (1872-1915), a lembrar o sesquicentenário do compositor russo, encerraram o programa.

As presenças de destacados professores da Universidade de Coimbra enriqueceram o evento: André Pereira, Diretor da Imprensa da Universidade; Delfim Leão, Vice-Reitor da Cultura e Ciência Aberta, e outros mais dignatários da renomada Instituição, motivo de orgulho para o executante. Vindo de Florença, o relevante pianista Marco Rapetti se fez presente em Coimbra e Tomar. Rapetti está a preparar sua tese de doutoramento que versará sobre nosso mais importante compositor romântico, Henrique Oswald, que viveu cerca de 30 anos na bela Firenze.

As fotos foram tiradas por minha neta Valentina, subjugada que foi pela beleza da Biblioteca Joanina. Encantou-nos o convívio com o Professor Gouveia Monteiro e sua esposa Leonor. Consolidou-se um conceito que tive ao longo da existência, individual é certo, mas que me guiou durante a trajetória. Gosto imenso de retornar aos locais onde raízes se fincaram.

No próximo blog comentarei a palestra e o recital em Tomar, a cidade natal de Fernando Lopes-Graça, a acolhida que tivemos por parte do professor, musicólogo e regente coral António Sousa e sua esposa Rosário, e o prazer de festejar os 40 anos do meu primeiro recital na cidade. Num terceiro post a temática estará voltada à palestra no Centro Ward de Lisboa, a convite da ilustre gregorianista Idalete Giga, e às duas entrevistas concedidas na capital portuguesa.

I will divide the short tour of Portugal into three blogs. In this post, I’ll talk about the recital at Biblioteca Joanina in Coimbra. The following one will address the recital and lecture in Tomar, Fernando Lopes-Graça’s hometown, and finally the talk and the two interviews given in Lisbon.