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Pormenores do Olhar

Desenho de Luca Vitali. Clique para ampliar.

Luca Vitali, pintor e amigo, faz uma série de perguntas ao me ver retornar à cidade bairro Brooklin-Campo Belo: “independentemente da música, o que mais teria marcado sua última viagem a Paris ? Interessa-me o cotidiano. Há muita diferença do seu tempo de estudante com o atual” ? Tem ele o dom de ver as palavras, e toda narrativa lhe interessa, pois possível de descrição através da imagem.
Perguntas desse teor forçosamente remetem-me ao passado. Recentemente, naqueles poucos dias de Janeiro-Fevereiro, não deixei de me lembrar dos anos de aprendizado. As muitas viagens à Cidade Luz, independentemente da música, como frisou o amigo artista, trazem recordações nostálgicas daqueles tempos de estudante, quando a cidade estava apenas a 13 anos do fim da Segunda Grande Guerra. Prédios, museus e estabelecimentos públicos cinzentos, muitos ainda necessitando de reformas profundas, o cotidiano longe das comodidades oferecidas nos dias atuais. Seria possível acreditar que o meu olhar era também outro. O necessário excesso de estudo, a insegurança frente à vida, a concorrência pianística naqueles tempos de preparação para os concursos internacionais, a busca incessante pelo conhecimento teórico-musical e cultural mais abrangente, a solidão, todos fatores que influenciavam, certamente, o julgamento. Do que mais gostava era o desabrochar da primavera, quando daqueles galhos retorcidos nasciam folhas de um verde único e flores que o olhar guardou; ou, no sentido oposto, o desnudamento dourado no início do outono, quando as calçadas ficavam multicoloridas. O Parque Monceau, bem perto de onde morava, continua a ter a vocação para abrigar essas mutações. Mensagens serenas da natureza em transformação são inesquecíveis, pois sempre levam à paz interior.
Reiteradas vezes escrevi sobre minhas amizades absolutas, que estão a se prolongar há mais de cinquenta anos. Basta uma possibilidade de estar em Paris e o reencontro com todos se transforma num verdadeiro hino amoroso.
Luca questiona: “E o cotidiano, transporte na cidade, houve muita alteração” ? Começaria por um trem que pegava na chamada Gare du Pont Cardinet, não distante da Gare Saint-Lazare, e que atravessava parte da cidade. Para ir ao curso matutino da legendária Marguerite Long tinha de pegá-lo, pois me deixava bem perto da Academia da notável pianista e pedagoga. No inverno era bem difícil ficar à espera na manhã escura e varrida, por vezes, por ventos gélidos. Mas fazia parte do aprendizado. Ficara-me a impressão, àquela altura, de um povo meio soturno nos meses frios.
Contudo, a diferença maior que sinto quando vou a Paris é quanto ao povo que frequenta o metrô. Naqueles tempos, estou a me lembrar de uma grande maioria de franceses, mas era menos numerosa a presença de oriundos. Norte africanos, mormente argelinos. O cotidiano é implacável e difícil é esquecê-lo quando a atenção ou curiosidade levam à observação mais atenta.
Nos espaços de tempo que variam de dois a quatro anos, períodos que separam minhas idas a Paris, é possível perceber transformações que se mostram tênues para o viajante de passagem, e quase que imperceptíveis para o parisiense, pois elas se apresentam diariamente, não havendo, pois, recuo temporal para melhor avaliação. Sempre a ter o metrô como referência, cresceu imensamente, aos meus olhos, o afluxo dos povos da África e da Ásia, principalmente descendentes das ex-colônias francesas, assim como do Extremo Oriente. Como curiosidade, ao pegar na super movimentada Gare St. Lazare, entroncamento de tantas linhas, o metrô com destinação a St.Ouen, uma surpresa. Cerca de 90% pareceram-me desses continentes. Podia-se perceber que pertenciam a vários países, sendo que os mais jovens tinham possivelmente nascido em França. Muitos eram estudantes, havia professores também. Os alunos, de tantas raças distintas, conversavam descontraidamente em voz alta e era possível notar diferentes acentuações quanto à língua francesa. Tentei me concentrar nas falas e estranhei a quantidade de palavras fora do dicionário dito culto. Disseram-me mais tarde que há, nas várias raças que habitam a cidade, quantidade de termos que passam a frequentar a conversa do povo. Numa percepção outra, deu para sentir pessoas mais apressadas, a correr para seus compromissos. Ou não percebera antes, ou a idade faz com que tenhamos outra dimensão do tempo.
Naqueles anos juvenis era considerável a parcela de leitores de livros de bolso baratos. Foi uma das impressões que ficaram. Continua-se a ler na extensa rede metroviária parisiense. É questão cultural. Também não me esqueci da própria figura dos longínquos anos, “espelhada” no vidro da janela do metrô, quando nos túneis escuros. Questionava-me sobre passos futuros, e aquele imagem refletida parecia estar a me dizer para sempre continuar. Sentado, entre divagações, voltava à sempre leitura. Cinco décadas passaram e eis-me novamente diante da realidade desse “espelho”. Em poucos segundos, frente à porta, faço um resumo de mim mesmo. Em outro contexto, na prática ainda não havia em Paris a proliferação dos grafiteiros que inundaram o metrô de tantas cidades. Hoje essa espécie de vandalismo já se apresenta e os “espelhos” exibem excessivos rabiscos. Nos longos subterrâneos onde os vagões deslizam, paredes grafitadas, muitas delas com palavras obscenas, inclusive em português !!! Tempos outros.
Estamos habituados a ver mendigos e pedintes em nossas ruas paulistanas e, nos semáforos, aprendizes de acrobatas. Há presentemente, em locais precisos de Paris, imigrantes sentados nas calçadas pedindo esmolas. Ao passar lentamente por vários deles, que estavam a dialogar com conterrâneos, ouvi acentos eslavos, mas confesso que não saberia dizer a procedência. Como transitei vários dias pelos mesmos locais, lá estavam os personagens, exatamente nos lugares por eles escolhidos.
As livrarias parisienses chamam-me sempre a atenção pela diversidade, e preços médios são constantes em edições, tantas vezes primorosas. Elas proliferam pelos bairros, o que é salutar. Adquiri alguns sobre música e aventuras. Livros de bolso com papel reciclado têm tido uma grande guarida e não me pareceram caros. Em contrapartida, comprei, para um jantar oferecido por amigos, garrafas de um vinho chileno bem comercializado em São Paulo. É de pasmar, custava E$ 6,50 a garrafa, sendo que em supermercado bem conhecido de nossa cidade o preço ultrapassa os R$ 34,00 !!! Para chegar à França, a nobre bebida atravessou todo o Atlântico !!! E já houve críticas de governantes à campanha diária e essencial de uma de nossas emissoras: “Brasil, o país dos impostos” !!!
Observar o cotidiano tem interesse. Regressos à sempre belíssima Paris despertam incondicionalmente novas reflexões. Aprendemos com esse revolver permanente, balanço dos acúmulos. São estes que tornam o envelhecer, a depender das individualidades, um outono onde as folhas douradas podem representar a diferença.

During my recent visit to Paris, I couldn’t help comparing the place where I lived in the fifties with the city as it is today. Impossible not to sense how it has changed. I was impressed by the influx of immigrants – mainly Africans, Asians and Eastern Europeans – and by the changes the ethnic composition of the city has undergone in just half a century. But something has not changed: it is still the “city of light”, fascinating and incomparable.

Tony Herbert, Tania e os filhos Tycho e Trixie. Clique para ampliar

Adentrar o território belga leva-me sempre a reflexões. Mais de vinte vezes aqui estive. O TGV desliza celeremente e sinto um prazer real. A região flamenga, meu destino final, faz parte de minha respiração afetiva e musical. Encontrar velhos amigos, conviver, rememorar e pensar música.
Tony Herbert, Tânia e os filhos, Tycho e Trixie, abrigam-me sob um lar onde impera o entendimento. Tantos anos se passaram desde a primeira vez, quando o então jovem casal sequer pensava nessa geração que surgiu plena de encanto. Tony acompanha-me nos almoços pela Gent que respiro em seu gélido momento invernal. São tantos os assuntos sobre o desenrolar dos acontecimentos cotidianos… Tony tem o dom da generosidade e está sempre disposto a ajudar a todos. Prático, encontra solução para tudo.

André Posman, Jamila e os filhos, Taha e Yassim. Clique para ampliar

Estive com André Posman, Jamila e os filhos, Taha e Yassim. André é o Diretor da De Rode Pomp, organização responsável por todos os meus CDs gravados para o prestigioso selo. Sou infinitamente grato ao grande amigo que, no longínquo 1996, disse-me, após recital em Gent, que eu precisava deixar minha herança musical registrada. Uma profunda e imorredoura amizade formou-se. Pai tardio, sei do carinho e do cuidado com que acompanhou a difícil gestação de sua esposa, Jamila. André e eu comungamos idéias. Estimula o repertório pouco freqüentado e jamais interveio em qualquer de minhas escolhas para a gravação dos CDs. Os Posmans vivem Música. Jamila é marroquina e apreendeu as duas culturas. Os pequenos, Taha ao piano e Yassim na clarineta, já demonstram talentos reais, imbuídos da multicultura. É gratificante ouvi-los em interpretações plenas de entusiasmo.
Se as amizades fiéis foram construídas sob a égide amorosa, o objetivo fulcral da vinda a Gent concentrava-se nos longos encontros com Johan Kennivé, Mestre da Capela de Sint-Hilarius em Mullem, na planura flamenga. Horas a fio escutamos a masterização final dos dois CDs, dedicados a esse gênio absoluto que foi Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Finalmente chegamos aos masters de obras como Música de Piano para Crianças, Cosmorame, Canto de Amor e de Morte e as nove Músicas Fúnebres. Quanto ao Canto de Amor e de Morte, temos uma das mais extraordinárias criações para piano escritas na segunda metade do século XX em termos mundiais. Os dois CDs deverão ser lançados em 2012 em Portugal.

JEM e Johan Kennivé, após a masterização dos dois CDs Lopes-Graça. Cemitério que circunda a Capela Sint-Hilarius em Mullem (-4º). Clique para ampliar

Nossa longa amizade ultrapassou as barreiras da fraternidade. Johan Kennivé e eu conversamos muito sobre a essência do homem, suas aspirações, suas fraquezas. Psiquiatra, sabe ouvir e deduzir. Raramente conheci maior acuidade. Com naturalidade falamos sobre o passar dos anos. Refletimos sobre o olhar que não envelhece e pode tudo apreciar. Falava-lhe de implacáveis espelhos em espaços públicos que, com iluminação plena, evidenciam que o tempo passou, mas não o tal olhar e a vontade de prosseguir com os projetos. A aparência a demonstrar a trajetória.
Nesses instantes fugazes, a história do ser humano passa como um relâmpago. Valeu a pena o longo caminho ? A depender de cada indivíduo, as respostas podem ser as mais díspares. Dizia eu a Johan que o espelho, nesse conflito que se acentua, aparência-aspirações, traz-me reconforto, mormente a partir dessa âncora traduzida pela família harmoniosa. Traços nostálgicos estão a surgir. Foram tantos os que nos precederam e que nos serviram de referência, inclusive em Gent. A partir de determinada idade, mais difícil se torna fazer novas amizades. As que existem são salvaguardas do entendimento.
Dou um até breve aos amigos gantoises. Estou de regresso a Paris. Encontros com musicólogos no Centre Debussy e mais a tese deste 5 de Fevereiro, a segunda de que participo como membro do júri na Université Sorbonne no espaço de uma semana. Terei prazer em relatar os resultados.
Meus amigos franceses. Dizer que amo essas outras referências é a pura realidade. Estivemos juntos e convivemos. Proles que geraram outras proles e o entusiasmo é sempre intenso. Bem haja!!

Quando Relações Marcam a Existência

JEM. Primeira foto em Paris, 1958. Clique para ampliar.

Jouis toujours du présent avec discernement,
ainsi le passé te sera un beau souvenir
et l’avenir ne sera pas un épouvantail.

Franz Schubert

Essa nova travessia, como todas as outras para a Europa, está sob a égide da Música. Não sei se terei um dia uma viagem para o Exterior unicamente de recreação. Diria, contudo, que em nenhumas das dezenas de deslocamentos para o Velho Continente meus olhos deixaram de perceber o cotidiano das ruas, a imobilidade vivificante dos museus, a paz de templos por vezes milenares, as diversificadas paisagens, os cantos de pássaros silvestres e, num patamar amoroso, as amizades, muitas delas já tendo ultrapassado o cinquentenário da afeição.
Brevemente escreverei sobre as teses que me trouxeram, neste final de Janeiro, à Universidade de Paris. Será a quarta vez, nestes últimos vinte anos, que adentrarei os velhos espaços da instituição, as duas primeiras para conferências e uma outra igualmente a integrar júri que examinava tese de doutorado. Quando há originalidade nos trabalhos acadêmicos, princípio essencial para uma meritória tese, já temos uma salvaguarda. Presentemente há muitos dados relevantes, mas prefiro um mínimo recuo de tempo para poder acomodá-los em meu pensar e transmi-ti-los resumidamente ao prezado leitor.
Estar entre amigos em Paris é privilégio. Já não são poucas as vezes em que mencionei os Roberts, família que comecei a amar nos meus sonhos de vida, quando os estudos pianísticos e musicais descortinavam um futuro incerto, mas com tênue luz no horizonte, a mostrar que poderia valer a pena continuar o caminho. Segui-o sem jamais me arrepender, e dadivoso foi o percurso que ainda não findou, a me proporcionar o vislumbre do multidirecionamento. E os Roberts, já decantados em post bem anterior (vide La Querye-Férias Inesquecíveis, 01/02/08), nunca deixaram de estar presentes, apesar de um oceano a nos separar. Estar em Paris, entre os Billys, é recordar projetando. Nicolle descreve programas violinísticos ainda não desvelados; Emmanuel, as peças egípcias, gregas, etruscas, que manuseia com perícia, revelando ao amigo a feitura da criação. Traços de fragmento egípcio ou as tanagras da Grécia antiga lhes são familiares. Colecionador na essência. Hospedo-me ou nos Billys ou nos Roberts, amigos fraternos entre si, e que sempre me acolheram com carinho.
Quando escrevi o blog sobre a Rue de Lévis, mencionei o excelente músico, compositor, arranjador e editor François Servenière. Amizade gerada pelo epistolar prolongou-se e nossos longos e-mails, a abordar interpretação e criação musicais, um dia poderão resultar em um opúsculo. Assim imaginamos. Polemista e pensador, Servenière comenta meus e-mails e suas observações abrem outras portas para novas divagações a respeito da arte. Foi uma emoção grande tê-lo conhecido pessoalmente. Perspectivas se abrem nesse amplo sentido de troca de ideias. Não é esse um dos princípios do maravilhamento ? Poder discutir livremente temas intrínsecos sobre a criação artística e o meio que nos cerca, por vezes asfixiante, sem quaisquer amarras ditadas pela Academia, o que torna o pensamento mais solto e conduzido pela fluidez das ideias. Mutuamente sentimos que ainda há muito a ser desaguado em nossos e-mails. Resultará.
Faz-se noite precoce nesta gélida Paris, mas a reunião que acaba de findar com o clã Robert trouxe-me alegria, surda nostalgia e a certeza de que laços verdadeiros de amizade são imorredouros. Amanhã viajo para a Bélgica de comboio. Essa Europa invernal não chega a esfriar minha emoção. Estarei novamente em Gent com velhos amigos. Tony Herbert me abrigará como sempre o fez. Sua esposa Tânia e seus filhos são encantadores. Com Johan Kennivé, o mago engenheiro de som, teremos três dias de intenso trabalho na masterização dos dois CDs Lopes-Graça gravados em Maio último. Verdadeiras obras-primas desse grande mestre estão agora fixadas. Missão a visar ao repertório desconhecido ou pouco frequentado. Não seria essa uma razão fulcral para que minha vida musical tenha um sentido pleno ? Continuarei…