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Cidade dos Cavaleiros do Templo

Tomar. Convento de Cristo. Janela da Sala do Capítulo, uma obra prima da arte manuelina. Clique para ampliar.

Nessa longa tournée em Portugal, o primeiro recital deu-se na bela cidade de Tomar, cidade anteriormente visitada para recitais no triênio 1982-83-84. Revestiu-se essa apresentação de rememorações muitas. Dos recitais anteriores, as presenças de saudosas amigas, a notável gregorianista portuguesa Júlia d’Almendra e a professora Manuela Tamagnini, Diretora do Conservatório Regional, hoje com as atividades encerradas. Os convites dos ilustres Professores Mário Vieira de Carvalho, da Universidade Nova de Lisboa, e do Professor Antônio de Souza, da Escola de Música Canto-Firme de Tomar, possibilitaram a atual apresentação.

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Diria que a presente vinda a Tomar tem um significado espiritual. Nela nasceu o maior músico português e um dos maiores do século XX, Fernando Lopes-Graça (1906-1994), e no berço do grande compositor estou a apresentar sua Cosmorame, coletânea exemplar para piano. Devo a Lopes-Graça estar presentemente a comemorar o meu cinquentenário em terras portuguesas como pianista. Durante este mês ainda terei muito a falar do extraordinário compositor e pensador.
Tomar, cidade templária, tem muito a contar. Guardo com todo o carinho a História de Portugal, do historiador João Ameal, pois oferta com dedicatória do então Consul Geral de Portugal em São Paulo, o ilustre Dr. Adriano de Carvalho, após meu recital na Casa de Portugal em 22 de Outubro de 1958. Do livro, retirei antes dessa minha travessia: “As Ordens Militares alastram, avolumam-se com adesões inúmeras. Dentro de curto período, são já focos poderosos e influentes, donde irradiam auxílios a empresas alheias e iniciativas de empresas próprias. A sua ação na Península – frente de luta intensa contra o islamita – é considerável. Desde o início se depara entre fatores primordiais da Reconquista espanhola e do alargamento de Portugal para o sul.
Dos Templários, embora se admita a sua anterior existência em território português, sabe-se que em 1128 Dona Teresa lhes doa a vila de Soure e as terras entre Coimbra e Leiria. Por 1147, concede-lhes Dom Afonso I as rendas eclesiásticas de Santarém e em 1159, por estas haverem revertido ao Bispo da diocese, o terreno de Cêra ou Cêras. Ali fundam o castelo e o Mosteiro de Tomar, sob a direção de Gualdim Pais; próspera vila se desenvolve ao seu abrigo”. Foi o caudaloso livro de João Ameal (806 págs.) que me fez ficar encantado com a história determinante de minhas origens. Tomar é parte fundamental da fantástica epopéia portuguesa.
A história da cidade confunde-se com muitos dos grandes feitos portugueses. Cercada pelos mouros no final do século XII, foi heroicamente defendida por Gualdim Pais; no início do século XIV, o Papa tentou acabar com a Ordem Templária na Europa, mas D. Dinis demoveu-o, sendo criada a Ordem de Cristo. Nos séculos a seguir vê-se tremular a Cruz da Ordem de Cristo nas caravelas que seguiam além-mar para as epopéias em África, Índias, Extremo-Oriente e Brasil, sendo que a autoridade do Prior de Tomar permaneceria até 1514. Pode-se apreender muito da importância dessa cidade monumento ao se conhecer o Convento de Cristo, Patrimônio Mundial pela UNESCO. Fundado em 1162, conserva o Convento de Cristo essa aura dos monges cavaleiros que partiam para as célebres cruzadas. Impressiona sua Charola do século XII, onde monges guerreiros assistiam, com suas armaduras e montados em seus cavalos, à missa dentro do próprio convento. A história arquitetônica dos claustros portugueses pode ser seguida através daqueles construídos no Convento de Cristo, da fundação ao século XX, onde estilos diferenciados perpassam vários períodos: românico, gótico, manuelino (a Janela da Sala do Capítulo é uma preciosidade), barroco e outros, derivantes desses. O Castelo cercado por muralhas foi fundado em 1160 e abrigaria o Convento, formando um magnífico conjunto. O militar e o religioso num belo amálgama.
Se o Convento de Cristo é uma das jóias arquitetônicas em Portugal, cartão-postal da cidade, pois edificado em lugar elevado, conserva Tomar outros monumentos e jardins. As muralhas do Convento, seu bosque, as Igrejas de São João Batista e Santa Maria, a Capela de Santa Iria, a Sinagoga. Há forte comprometimento histórico dos judeus com a cidade, pois numerosos foram perseguidos em séculos anteriores. Túneis de escape testemunham períodos de dificuldades vividos. Hoje tudo pertence à história dessa magnífica cidade.
Nas visitas anteriores, como na presente não deixo de visitar, entre ensaios e apresentação pianística, esses monumentos absolutamente singulares. Tomar é realmente um grande marco.

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Foi uma grande emoção conhecer a casa em que nasceu Lopes-Graça, hoje Casa Memória, carinhosamente organizada. Comoveu-me ter apresentado em primeira audição, no auditório Fernando Lopes-Graça, a extraordinária coletânea Cosmorame, do grande compositor. Precedida de palestra com data show, interpretei a obra integral (circa 50 minutos). Meu dileto amigo Mário Vieira de Carvalho, Professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa e um dos maiores conhecedores da obra e do pensar de Lopes-Graça, prefaciou a apresentação do recital-palestra, a enfatizar a importância da magistral composição do mestre de Tomar.
Emoção maior esteve reservada para o final. A magnífica Escola Canto Firme de Tomar ofereceu-nos um jantar e, após o congraçamento, o Coral do Estabelecimento, conduzido de maneira comovente pelo Diretor da Escola, Professor António de Souza, cantou obras do grande compositor.
O intérprete recebeu do Presidente da Câmara Municipal de Tomar uma belíssima salva de prata, com dizeres alusivos à primeira audição de Cosmorame.
Tomar, já inesquecível desde os anos 80, fica hoje no meu mais sensível imaginário. A tournée continuará. Outras cidades ouvirão a panorâmica da extraordinária música portuguesa para piano, perpetuada por intérpretes de real valor no país, mas sistematicamente negligenciada por outros, mais interessados na permanência através do repetidíssimo repertório de sempre, que exclui a criação de Portugal, mas agrada a um público que evita, hélas, o descortino. A impermanência será destino que a história simplesmente ratifica. Os holofotes, sempre os mesmos. Nada a fazer. Contudo, a luta empreendida durante toda a vida por Lopes-Graça, no sentido de que a música autêntica de Portugal seja ouvida, continuará.

As part of my concert tour in Portugal, I’ve been to Tomar, the city of the Knights Templar and also the hometown of Fernando Lopes-Graça. It was with great emotion that I presented the world premiere of Cosmorame, a series of 21 piano pieces of this outstanding Portuguese composer of the 20th century.

Em Torno de um Cinquentenário


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Tempos que mudam. Ainda bem.
Mas que isso não signifique a extinção de valores que,
por insignificantes que possam parecer,
não deixam de ser patrimônio
e fazer parte da história de cada gente,
de cada terra.

Sérgio Sá (Memórias de uma Aldeia)

A nova travessia do Atlântico atendeu a um apelo interior. No mais recôndito do de profundis, tem significado especial a 43º visita a Portugal. Sempre asseverei que não faço diferença entre Brasil e Portugal. Aprendi a amá-los, nesse amálgama, desde a tenra infância.
Apresentações fazem parte da trajetória de um intérprete. Todavia, quando integrantes de rememoração expressiva, revestem-se de outra aura. Anteriormente já comemorara o cinquentenário de meu relacionamento com a música portuguesa (vide site, item Essays, A Relação de Meio Século com a Música e Músicos de Portugal, 2006). O regresso à terra paterna apreende um sentimento de inefabilidade, nessa lembrança que se faz de meu primeiro recital em terras portuguesas, no distante 1959. Gerações de músicos que conheci em Portugal, alguns desaparecidos, dão-me a certeza da extraordinária pujança da criação composicional do país, comparável ao que de melhor existe em outros economicamente mais pujantes na Europa. Economia gera mercado, fortalece laços de intercâmbio e compositores de países ao norte e os latinos a leste de Portugal foram contemplados com maior divulgação. Isso é fato.
Recitais estão a me esperar nesta tournée afetiva, que se estende do Minho ao Algarve. Tendo selecionado autores portugueses da maior importância, do barroco à contemporaneidade, para as apresentações, incluí obra basilar na criação de Fernando Lopes-Graça. Interpretá-la na integralidade, em apresentação que está a apontar para pequena panorâmica da música portuguesa para piano, não se mostrava possível. Daí ter colocado algumas das peças de Cosmorame, coletânea composta em 1963. O caderno será tema de um futuro post, quando de meu regresso à minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo.
Para a programação que inicio neste Maio, a partir de Tomar, a cidade dos templários, berço que viu nascer Lopes-Graça, incluí um texto explicativo. Inseri-lo no blog pode bem dar a visão do que se deve passar nesta tournée por solo lusíada.

“A convite do grande compositor Fernando Lopes-Graça, dei meu primeiro recital em Portugal no dia 14 de Julho de 1959, na velha e tradicional Academia de Amadores de Música em Lisboa. O fato de pensar nessa data comemorativa fez-me organizar um programa inteiramente dedicado à música portuguesa para piano, do barroco à contemporaneidade, exceções às três peças de compositores brasileiros que homenageiam Portugal.
Alguns dos autores constantes do programa foram, ao longo das décadas, temas para aprofundamento, resultando na gravação de CDs lançados na Bélgica e Estados Unidos, exceção àquele tributário a Lopes-Graça. Dos três CDs belgas produzidos pelo selo De Rode Pomp, primeiramente mencionaria: Francisco De Lacerda/Claude Debussy, a contemplar obras dos dois compositores e amigos (Gents Muzikaal Archief, Vol 5, 1999), e o álbum duplo contendo 23 Sonatas para tecla de Carlos Seixas (Gents Muzikaal Archief, Vol 22, 2004). Vilalbarosa, de Jorge Peixinho, está incluída no CD Tribute of Villa-Lobos gravado em Sófia, mas lançado nos Estados Unidos (Labor, Vol 1, 2001). O CD Viagens na Minha Terra, inteiramente dedicado às obras de Fernando Lopes-Graça, teve seu lançamento em 2004 pelo selo Portugaler.
Carlos Seixas (1704-1742), o notável conimbricense, está representado por duas Sonatas significativas, rigorosamente contrastantes. Dos compositores portugueses constantes no programa, tardiamente conheci algumas obras de António Fragoso (1897-1918) e Óscar da Silva (1870-1958). O primeiro morreu precocemente, mas nas poucas peças deixadas pode-se bem aquilatar o talento sensível, a qualidade da escrita musical e a apreensão de conteúdos de outros autores europeus coetâneos. Óscar da Silva, compositor e exímio pianista, legou uma produção onde não falta o apelo à virtuosidade. O seu idiomático técnico-pianístico estaria a atender às suas mãos, naturalmente possuidoras de grande abertura. Extraídas das Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste, as dez miniaturas de Francisco de Lacerda (1869-1934) revelam a maestria do compositor açoriano que manteve diálogo com Claude Debussy e outras figuras ilustres de sua época. Cosmorame (1963), de Fernando Lopes-Graça (1906-1994), é obra referencial do autor, por ele considerada como um “gesto de amor”. Da coletânea, constituída de 21 peças, estarei a apresentar 10, reservando a integral para conferência-recital que apresentarei em três universidades portuguesas no atual período. Jorge Peixinho (1940-1995) e Clotilde Rosa (1930- ) escreveram Estudos para piano para um projeto que iniciei em 1985 – temos até o presente setenta e tais Estudos, compostos por importantes compositores de muitos países -, visando a uma panorâmica do técnico-pianístico na passagem dos séculos XX-XXI. No livro Jorge Peixinho- In Memorian (Lisboa, Caminho, 2002, págs. 203-222), o compositor nascido em Montijo analisa pormenorizadamente o Estudo V Die Reihe-Courante, constante do programa, onde não falta a herança de Darmstadt. Escreve Peixinho: “O Estudo V pretende ser uma reflexão sobre o profundo significado histórico e mítico da série, a série reificada e simbólica; uma visão crítica dos seus pressupostos teóricos e filosóficos e, ao mesmo tempo, uma homenagem (comovida) ao papel histórico propulsor da modernidade neste vertiginoso caminhar da música no século XX.” A peça de Filipe Pires (1934- ), Jorge Peixinho interpretou-a durante nossa tournée no Brasil em 1994, onde realizamos cinco apresentações, unicamente com a produção contemporânea portuguesa. Ofereceu-me uma cópia de Figurações II, indicando-me intenções quanto à execução da obra.
Em 1979, solicitei ao importante compositor brasileiro Francisco Mignone (1897-1986) uma criação dedicada a Portugal. Surgiria Adamastor – O Gigante da Tempestade, tendo como inspiração o relato de Camões. Quando do centenário de nascimento de Lopes-Graça, pedi a Ricardo Tacuchian (1939- ) uma homenagem ao mestre de Tomar. In Memorian Lopes-Graça é o tributo do excelente compositor nascido no Rio de Janeiro e que mantém permanente contacto com Portugal. A peça de Gilberto Mendes (1922- ), quase por unanimidade o mais importante compositor vivo do Brasil, nasceu de uma conversa informal. Quis participar dessa efeméride comemorativa de meu cinquentenário em terras portuguesas. Como estávamos a falar do fado e de sua abrangência, surgiria Largo do Chiado, onde não falta alusão a A Severa.
A relação com Portugal foi, é e continuará a ser afetiva, das entranhas. Privar da amizade de competentes e ilustres figuras da vida musical portuguesa, algumas já desaparecidas, é privilégio, uma grande dádiva.”

Durante a viagem, estarei a enviar posts mais curtos, devido à agenda plena e ao acesso à internet, nem sempre disponível. Fica meu perene agradecimento a Magnus Bardela e a Regina Maria Pitta que, em São Paulo, estarão a cuidar da inserção de texto, abstract e imagens enviados deste lado do Atlântico, assim como ao Banco Banif do Brasil que teve a sensibilidade de entender uma efeméride que me é tão profundamente expressiva, através de seu prestigioso apoio cultural.

Opções que se Apresentam

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Depois, há outra coisa importante a considerar:
a gravação trouxe exigências tais na execução
que elevaram esta a um nível que por via de regra
nos garante estarmos a ouvir obras interpretadas
nas melhores condições pelos conjuntos ou solistas
mais qualificados – e não é certamente este um dos
menores préstimos de que somos devedores ao disco,
esse “humanismo que bem mereceu do Espírito”,
no justiceiro dizer de André Coeuroy.

Fernando Lopes-Graça (1953)

Estava a conversar com uma amiga sobre minha recente viagem, recitais e o lançamento de mais um CD. Christina repentinamente me questiona: “há gravações suas ao vivo?” De meus 19 CDs gravados no Exterior, apenas umas poucas faixas registradas em Moscou ao vivo, no longínquo 1962, foram vertidas para CD. Após 5 LPs gravados no Brasil nos anos 80, sempre em condições insatisfatórias, somente em meados da década de 90 iniciei as gravações na Europa. Em teatros e estúdios, na Bulgária e em Portugal, mas sobremaneira na mágica capela Sint-Hilarius em Mullen, na Bélgica Flamenga, essas últimas sob a supervisão técnica desse extraordinário engenheiro de som que é Johan Kennivé. Um mestre absoluto. Muitas vezes, apresentações ao vivo foram registradas, mas por falta de interesse de minha parte não foram traduzidas para CD. É também uma questão de preferência, ou de estilo.
Nada tenho contra as gravações ao vivo. Representam elas o pulsar momentâneo no instante do acontecido, pressionado pela situação, pela reação do público, pela empatia que se tem pelo local onde nos apresentamos. Anteriormente já abordara quais as reações que um intérprete pode sentir antes e durante uma apresentação (vide O Medo do Palco – Problemática e Possíveis Soluções, 04/10/08). Dependem de tantos fatores!
Quanto à gravação sem público, entendo ser uma forma onde a responsabilidade e o preparo devam ser outros. Maiores ao meu ver; diferentes, sem dúvida. A gravação ao vivo pode admitir pequenas incorreções. Elas existem e são perdoáveis. Sob outra égide, a colocação dos microfones em um espetáculo com sala plena é feita aprioristicamente. Haverá sempre alteração sonora durante o concerto, por pequena que seja, devido à presença do público, suas vestimentas, ruidos orgânicos por vezes incontroláveis… Nos registros fonográficos sem público, anteriores à segunda metade do século XX, podem-se perceber falhas do intérprete, pois havia geralmente uma só captação sonora, por ser o processo extremamente dispendioso àquela altura. Entretanto, nestas últimas décadas a gravação, apenas frente ao instrumental que deverá captar o som, evoluiu muito e encarrega-se de transmitir a verdade sem concessão, pois de inteira responsabilidade do intérprete. Daí entender que, se possível for, só deve ser feita em condições excepcionais de tomada de som e na utilização do instrumento, o melhor que houver. Dessa maneira, a prévia preparação realizada pelo intérprete, a buscar esse desiderato último, estará sendo contemplada. O nosso de profundis tem de fluir inteiramente. Conditio sine qua non. O meu dileto amigo e professor de guitarra na Academia de Amadores de Música de Lisboa, António Ferreirinho, escreveu-me recentemente: “Um dia perguntaram ao escritor António Lobo Antunes se um dado romance seu tinha alguns aspectos autobiográficos. Ele respondeu simplesmente que tudo o que um escritor escreve é autobiográfico. Isto vem a propósito do CD dedicado a Fauré… Voltando ao Lobo Antunes, diria que todos os CDs do José Eduardo são autobiográficos. Tudo aquilo que o José Eduardo é está lá.” Esse conteúdo intrínseco, observado por generoso amigo, intransferível, fronteiriço ao limite individual, tem de estar presente. Somos nossos acúmulos. Quando ouço uma gravação, sinto se o intérprete transmite. Tudo está presente. É só estar aberto aos eflúvios que o registro tem de conter em sua essência. Se o executante mostra-se apenas um hábil instrumentista, sem penetrar no âmago da criação, desde logo foge-se do que deve ser exposto, dito, interpretado. Ouvidos sensíveis sabem distinguir. Sempre. Habilidade sem anima é como um prato sem tempero.
Christina insiste: “Você guarda gravações de recitais antigos ou recentes?” Sim, respondi. Quando, por motivos ligados a determinada organização, o recital é gravado, recebo quase sempre o resultado e ouço pelo menos uma vez. Serve como parâmetro, essencial para aperfeiçoamentos. O caminho do intérprete não tem fim. Não obstante o fato, prefiro sempre a gravação realizada sem o público. É também lenda não poder o instrumentista transmitir toda a emoção diante apenas de “frios” microfones. Considero que a alma penetra, sim, naqueles pequenos receptores de sons que estão a captar tudo. Nosso interior é insondável, mas o que temos a dizer através dos sons deve fazer parte de nosso respirar.
Já estávamos a tomar café em um desses pequenos recintos na nossa Brooklin-Campo Belo e Christina volta ao tema fulcral. Ela sentia, nas gravações ao vivo, essas pequenas incorreções, mas gostava de participar das tosses, pigarros e aplausos presentes nessas tomadas diretas. É como se estivesse in loco. Citei Glenn Gould que, precocemente, não mais se apresentou em público, gravando apenas em locais vazios. Essa opção tem de ser considerada. Depende muito de cada intérprete verificar qual o veículo que melhor se adequa aos seus propósitos. Se ele se apresenta poucas vezes, como no meu caso, a escolha tem lá seus fundamentos. Christina pareceu compreender meu posicionamento, rigorosamente pessoal, favorável à gravação sem público, acrescentando que também gostava imenso delas. O café selaria um acordo, pois. Desde logo entendemos serem válidas as duas categorias e que o importante é a transmissão da mensagem musical, não importando o veículo.

Gent. Recital de J.E.M. no Parnassus. Painéis pintados por Boris Chapovalov. Foto:Tony Herbert, 14/02/09.

Tendo interpretado os dois cadernos de Images de Debussy no recital do dia 14 de Fevereiro último em Gent, na Bélgica, e sabedor de que Cristina é fiel leitora de meus posts, insiro, no presente, o segundo caderno dessa excelsa coletânea que tem como peças: Cloches a travers les feuilles, Et la lune descend sur le Temple qui fut e Poissons d’or. A gravação foi feita ao vivo em antiga igreja dominicana, hoje Parnassus, sobre o patrocínio da De Rode Pomp, recital este em benefício da Unicef. O piano, um Bösendorfer de ¾ de cauda.

Clique aqui para ouvir na interpretação de J.E.M. o 2o caderno de Images de Claude Debussy. Gravação ao vivo realizada em Gent, Parnassus (De Rode Pomp), 14/02/09.

On the differences between performing in the intimacy of a recording studio or at a concert hall before an audience.