Navegando Posts em Impressões de Viagens

Revisitar Emoções

J.E.M. em desenho de Maria Fernanda Martins Rosella, Março de 2008.

Retornar à Bélgica e ao Portugal de meu sangue é sempre prazeroso, pois revisito sensações musicais e olhares amigos. A ansiedade só existe quando o local é desconhecido. Este, ao tornar-se familiar, apenas caracterizará expectativa de novos encontros.
O ato voluntário de hoje preferenciar pouquíssimas apresentações públicas, que ocorrem basicamente no Exterior, seria conseqüência de longa reflexão a respeito da música e de sua importância em minha vida. Se o estudo pianístico permanece um norte, gravação e repertório são decorrências e continuam a povoar meu universo sonoro. Sob aspecto outro, há determinadas fases da existência em que bifurcações na senda trilhada fazem-nos escolher um caminho a apresentar paisagens que imaginávamos existir, mas diversas de outras tantas, fosse diferente a estrada. Esta pode ser plena de gente, iluminada, mediática, provavelmente a expor pouca margem à introspecção. Aquela, voluntariamente serena, a evidenciar o que sabemos amar, fulcro da paz interior acalentada e perene meta a ser atingida. Cada CD gravado na planície flamenga, na milenar Capela de Sint-Hilarius, em Mullem, é um ato de afeto. Toda a longa preparação tem datas e horários previstos com um ano a anteceder o encontro. Atravessar o oceano para esse amálgama, que só entendo se absoluto, leva-me à felicidade de antever momentos únicos, quando busco os meus limites na interação com as reverberações que Sint-Hilarius me proporciona.
Haverá os recitais em Gent, um integrando a temporada da Rode Pomp, o outro para crianças. Após, curso em Lisboa e recitais em Évora, Coimbra e Braga. Estarei atento e a escrever posts para o blog. Em São Paulo, Magnus e Regina Maria cuidarão das inserções com competência e dedicação. Minha filha Maria Fernanda deverá encontrar-se com o pai em Lisboa, e idéias não faltarão para seus desenhos.
As viagens do ano passado resultaram em textos. Eles continuarão a surgir, pois o olhar estará a observar as transformações dos lugares, das pessoas e as nossas também. Cada ano acumulamos sensações que provocam o sentir diferentemente. O certo, contudo, é reencontrar intensidades emotivas permanentes, pois as mudanças, quando fidelidade na amizade existe, não atingem essencialidades.

J.E.M. em desenho da neta Emanuela, 4 anos.

Possivelmente escreverei posts mais curtos, devido à imprevisibilidade do tempo disponível. Serão constantes, porém. Quebrada a rotina, está-se a mercê do imponderável. Novamente, buscarei acentuar mais o que me causa emoção àquilo que, mesmo a provocar impacto, pode ter tido germinação fugaz. Que sejamos cúmplices nessa nova peregrinação sonora e visual.

Emotions Revisited:
Once more a fly to Belgium and Portugal for recitals and to record a new CD. My posts will not be interrupted, but will be shorter and more frequent. Let us be partners in this new experience.

Questão de Estilo

ESMAE/IPP

Retornei à bela cidade do Porto para a segunda sessão do 1º Concurso, a nível nacional, de provas públicas para provimento de uma vaga de Professor Coordenador do quadro da Escola Superior de Música e das Artes do Espetáculo do Instituto Politécnico do Porto, para a área científica de Música, na especialidade de Piano. Foi a primeira vez em Portugal que houve Concurso para essa finalidade.
As primeiras reuniões deram-se em fins de Maio, quando estava eu em Portugal para recitais em várias cidades, constando minhas observações das Impressões de Viagem deste blog. As reuniões posteriores foram agendadas para a primeira semana de Julho em sua integralidade. Ponderações mereceriam comentários, a fim de que compreendamos outro estilo de procedimento, um olhar diferenciado sobre este ritual da vida acadêmica.
A Escola teve o cuidado de convidar professores pianistas desconhecedores dos seis candidatos inscritos, assim como professora de área teórico-musical de outra Instituição de Ensino em Portugal. Uma das características essenciais era a experiência internacional dos inscritos: teses, apresentações artísticas, textos publicados com inserções em Portugal e fora de suas fronteiras. Só essa constante já estava a apontar qualidade dos candidatos. Logicamente, diferenças havia, mas foi inegável o nível de um Concurso visando apenas a um cargo. Com a desistência de um dos candidatos, tivemos pois cinco concorrentes. Aulas teóricas e práticas, recital dos competidores, análise dos currículos, o fato é que o desiderato precípuo esteve sempre a apontar preocupação única pela qualidade daquele que deveria ocupar o cargo. Apesar da dificuldade em escolher o candidato, pois realmente os dons diferenciados dos pianistas professores foram uma surpresa, na apuração verificou-se um consenso quanto à vencedora. A preferência recaiu sobre a pianista e professora Madalena Soveral, de longa trajetória como intérprete em Portugal e em outros países, mormente na interpretação de autores referenciais da música contemporânea.
Ficou-me a nítida certeza de uma total isenção quanto à escolha do futuro Coordenador para a área específica de Piano. Esse desconhecimento prévio dos candidatos, por parte dos membros pianistas do júri, razão transparente da comissão organizadora e do Presidente do Concurso, o Professor Fernando Beja, de outra área que não a Música e impecável na condução do processo, deu consistência fundamental ao todo desse Concurso histórico em Portugal. Entre os membros, tive o grato prazer de rever meu colega de longa data, pianista e professor Caio Pagano, assim como a Professora Elisa Lessa, Diretora do Departamento de Música da Universidade do Minho. Sob égide outra, o comprometimento do Instituto, no sentido de custear passagens aéreas e outras despesas num Concurso em duas etapas, evidencia o rigor em relação ao objetivo almejado, exemplo a ser seguido.

Considerations regarding my experience as member of a hiring committee for the selection of a coordinator of piano teachers at ESMAE/IPP (School of Music and Performing Arts of the Porto Polytechnic Institute).

Breves II
Cabo de São Vicente, Algarve. Foto J.E.M.

Firmino é um homem do mar. Pescador durante 60 anos, só bem recentemente vendeu seu barco. Septuagenário, vê as águas marítimas com amor e saudades do ondular da embarcação. Sente quaisquer alterações que interfiram no mar: fases da lua, ventos, aguaceiros, mudanças de temperatura. Firmino é uma enciclopédia do oceano algarvio. É, contudo, ao falar das pescarias vividas durante decênios que sua voz se altera e seus olhos brilham. Não há exageros. Sua competência, mercê de longa experiência, impede a empáfia, tipicidade do amador. Quando a noite descia, Firmino buscava o mar, só regressando pela manhã, aquinhoado ou não.
Conheci Firmino em Lagos, ao sul do Algarve. Em um fim de semana livre, aceitei o convite do colega e amigo, professor da Universidade de Coimbra, José Maria Pedrosa Cardoso. Firmino é pai de Maria Manuela, esposa do amigo musicólogo. Em casa dos sogros lacobrigenses ficamos hospedados. Igualmente mestre na culinária pesqueira, Firmino apreendeu o momento exato da perfeição ao assar sardinhas, carapaus, peixes-espada, cavalas. Algo inesquecível apreciar o que o velho homem das noites marítimas prepara. Há ciência, da escolha dos peixes à exatidão do ponto em que devem estar prontos.
Fiz-lhe muitas perguntas. A todas respondia com serenidade, mas amorosamente. Algumas poucas vezes sua vida esteve em risco, pois amalgamou-se ao mar e a intimidade se fez. Quando estivemos no Cabo de São Vicente, ponto referencial do ciclo das navegações em Portugal, falou-me do medo. Sim, nas primeiras viagens entre Sagres e o Cabo, a fim de pescar sardinhas, não decifrara ainda as correntes desse oceano que encontra em terra as grandes falésias. Insisti, e depois? Tornamo-nos íntimos, respondeu tranqüilamente. O que você encontrou durante aqueles sessenta anos passados diariamente nessas águas tantas vezes bravias? Qual o segredo do mar? Firmino olha-me e responde com sabedoria: O segredo do mar é o vento.

Na austera Igreja de Santa Maria, em Lagos, José Maria e eu ouvimos um belo concerto em que foi apresentado o Magnificat em Talha Dourada op. 17, de Eurico Carrapatoso. Dois corais, soprano, orquestra de cordas e cravo deram à obra uma interpretação entusiasmada. O Magnificat visita formas antigas, alternando-as com a modernidade. Esta associação proporciona um rico interesse. Carrapatoso é um dos compositores de destaque em Portugal. Quanto à Igreja de Santa Maria, foi construída no século XVI, tendo havido intervenções posteriores.

José Maria e eu, com as nossas respectivas esposas, não retornamos a Lisboa pela auto-estrada. Fomos serpenteando até bem além do Alentejo, para depois atingirmos novamente a rodovia principal. Ele quis que conhecêssemos duas das cidades que constam das Viagens na Minha Terra, de Lopes-Graça, coletânea de 19 peças por mim gravadas em CD pelo selo Portugaler. Silves, com sua cruz medieval trabalhada em pedra logo à entrada da cidade e sua bela Igreja ao alto, fez-nos lembrar de Em Silves já não há moiras encantadas. Ao visitar a lendária Ourique, veio-nos à mente Em Ourique do Alentejo , durante o S.João. Quanto a José Maria Pedrosa Cardoso, ele está presente em vários de meus textos. Inteligência rara, competência impecável no conhecimento da música do século XVI ao XVIII em Portugal e latinista profundo. Em Coimbra, fez os comentários de meu recital e apresentou um data show referente às Sonatas Bíblicas programáticas de Johann Kuhnau.

Ao conhecer, em 2004, João Gouveia Monteiro, Professor Associado da Universidade de Coimbra, pertencia o amigo à equipe reitoral da Universidade, como Pró-Reitor para a Cultura. Absolutamente ímpar na organização do Colóquio Carlos Seixas, que teve lugar nos próprios da Universidade, quando tive o privilégio de dar um recital na Biblioteca Joanina e uma conferência. Especialista em Estudos Militares, mais precisamente da História Medieval, Gouveia Monteiro é freqüência obrigatória nas mais importantes universidades, dentro e fora de Portugal. Entre suas numerosas publicações, salientem-se A Guerra em Portugal nos finais da Idade Média (Lisboa, 1988) e Aljubarrota, A Batalha Real (Lisboa, 2003). Sereno, com ampla visão da Universidade – senti bem essa qualidade quando até este ano esteve à frente da Pró-Reitoria – João Gouveia Monteiro é um estudioso vocacionado, voltado ao conhecimento profundo de sua área e conversar com o amigo é enriquecedor.

No dia do recital em Évora tive duas grandes alegrias. Almoçava com a dileta e competente amiga Idalete Giga, Diretora do Centro Ward Júlia D’Almendra em Lisboa e Professora da Universidade de Évora, quando, em dado momento, chegou o jornalista e historiador Joaquim Palminha Silva. Polêmico, é um apaixonado pela história de Évora. Li com profundo interesse seu livro Évora – Cidade Esotérica e Misteriosa (Lisboa, Europress, 2005, 270 págs.). Ofereceu-mo com bela dedicatória durante nosso encontro. Ouvi-lo contar as epopéias eborenses milenares é uma aula. Quanto à Idalete, foi em torno da saudosa gregorianista Júlia de Almendra, em cuja morada em Lisboa, à Rua d’Alegria,nº 25, hospedei-me diversas vezes na década de 80, que uma amizade se fez com a fidelíssima discípula da grande Mestra. Em todos os retornos à Lisboa, reencontro Idalete e sigo sua bela trajetória como educadora musical e gregorianista.

No recital no Convento dos Remédios estiveram presentes os amigos e professores da Universidade de Évora: João Vaz, organista, que está a realizar uma carreira consistente, e Manuel Moraes, Diretor e Regente do consagrado Segréis de Lisboa. Moraes ofereceu-me Gil Vicente e Évora – nos alvores de Quinhentos (Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2005, 121 págs.), importante coletânea de textos. Moraes contribuiu com o estudo Música para as peças de Gil Vicente estreadas em Évora e um CD, encarte do livro, com as obras mencionadas no texto interpretadas pelo conjunto por ele dirigido.

Rui Vieira Nery é figura exemplar na cultura musical portuguesa nos dias de hoje. Solicitado pelo mundo, percorre a Europa e as Américas proferindo palestras e conferências em Congressos, Seminários e Colóquios. Professor da Universidade de Évora, é Diretor Adjunto da Secção de Música da prestigiosa Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa. Com a mesma facilidade, escreve sobre a música dos primórdios de Portugal ao Fado, essa expressão tão genuína do país. Ainda estou a ler o seu livro fundamental, Para uma História do Fado ( Lisboa, Público, Corda Seca, 2004, 301 págs.), onde está depositado um profundo conhecimento, atávico certamente, pois seu pai, Raul Nery, teve belíssima carreira de guitarrista de fado. Estivemos juntos, desta vez, em três oportunidades e sempre com uma alegria mútua. Disso tenho certeza.

Amizades mais recentes formaram-se a partir da Academia de Amadores de Música. Antônio Ferreirinho, professor de guitarra – violão, no Brasil – tem feito um belo trabalho visando à divulgação de Lopes-Graça e da música específica para guitarra em Portugal. No ano passado, fez-me conhecer parte da obra do excelente poeta José Gomes Ferreira, autor de poemas musicados por Lopes-Graça. Ferreirinho tem uma profunda admiração pela arte violonística do nosso Edelton Gloeden. Alexandre Branco Weffort, professor de flauta no Conservatório Nacional, desenvolve paralelamente um substancioso trabalho de recuperação da obra de Lopes-Graça (vide texto sobre Lisboa). José Carlos Florentino é entusiasta sereno do grande mestre nascido em Tomar. Generoso, sempre tem algo para mim. Desta vez, ofereceu-me o livro Olga Prats – Um Piano Singular, conversas com Sérgio Azevedo (Lisboa, Bizâncio, 2007, 369 págs.). Olga Prats divulga há décadas, com plena dedicação, as obras de Lopes-Graça e de outros importantes compositores contemporâneos portugueses.

Maria José de Souza Guedes e Luís Meireles formam um duo singular. Professores do Conservatório do Porto, a pianista e o flautista realizam uma carreira de mérito e já gravaram CDs referenciais, privilegiando a música contemporânea portuguesa. A atuação do casal estende-se a muitos países da Europa, mormente no Leste Europeu. Em todas as visitas ao Porto com eles me encontro e os temas interpretativos e didáticos dominam nossas conversas.

Através do amigo e arquiteto Benedito Lima de Toledo, conheci na cidade portuense seu colega António Menéres, Professor convidado da Universidade Lusíada do Porto. Figura de imensa cultura, apesar de não ser músico, tem prestado um contributo especial à música portuguesa na divulgação da obra de Óscar da Silva (1870-1958), compositor que pertenceu ao saudosismo - corrente estimulada pelo poeta Teixeira de Pascoais – e cuja obra é muito bem escrita. Menéres conheceu pessoalmente Óscar da Silva, tendo concebido o túmulo definitivo em Leça da Palmeira, homenagem ao ilustre compositor. A Sonata Saudade para violino e piano, de Óscar da Silva, tem essa atmosfera decorrente do prolongamento romântico tão característico também em obras do nosso Henrique Oswald (1852-1931). Versátil, Menéres escreveu Crónicas Contra o Esquecimento (Matosinhos, Edium, 2006, 238 págs.). Lerei com prazer.

José Abel Carriço, Professor da Escola de Música da Póvoa de Varzim, atendendo a um apelo de Pedrosa Cardoso, apresentou-me a Igreja Românica de São Pedro de Rates na Vila de Rates, berço do Primeiro Governador Geral do Brasil, Thomé de Souza. Há décadas pretendia visitá-la. Pormenorizou a construção, exterior e interior, e suas múltiplas particularidades. Saí absolutamente encantado. Tendo recebido uma rica bibliografia, penso um dia escrever um texto sobre esse maravilhamento.

Em meu programa Idéia, Criação e Interpretação, apresentado todas as terças-feiras, das 22 às 23 horas, na Rádio USP-FM 93.7, divulgarei apenas CDs inéditos de música portuguesa que recebi nessa viagem. Destaco In Memoriam Béla Bartók, suítes de Fernando Lopes-Graça para piano, na excelente interpretação de António Rosado; Polifonistas da Sé de Évora dos séculos XVI e XVII, na versão do Coro Eborae Musica, assim como, Música para o Teatro de Gil Vicente na interpretação dos Segréis de Lisboa.