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Recitais e palestras em Portugal

Com a verdade da minha vida
me posso condecorar ou me condenar;
sinal de que a vivo bem vivo.
Agostinho da Silva
(“Espólio”)

Os convites existiam desde Janeiro de 2021 para apresentações em Portugal e Bélgica. A pandemia, o constante fechamento de fronteiras e a insegurança frente ao malfadado vírus impossibilitaram viagens, ainda mais para cidadãos da terceira idade. Finalmente as apresentações em Portugal estão confirmadas. Nesta viagem terei a companhia de uma das minhas netas, Valentina, formada em gastronomia e a finalizar o curso de sommelier.

Em Coimbra, dos dez recitais que apresentei, oito foram na magnífica Biblioteca Joanina, datada do século XVIII e localizada no Pátio das Escolas da Universidade. Em estilo barroco, a Joanina é uma das mais belas Bibliotecas do planeta. Apresentei-me pela primeira vez em 2004, por ocasião dos festejos do tricentenário de nascimento do notável compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742), em um recital monolítico inteiramente com Sonatas de Seixas. Ao longo dos anos duas outras apresentações se deram em teatros da cidade. O convite para o recital foi feito no início de 2021, pelo Diretor das Bibliotecas da Universidade de Coimbra, o ilustre medievalista, Professor Doutor João Gouveia Monteiro.

Empolga-me esta viagem em especial. Leva-me à reflexão sobre o tempo da existência. É ele determinante na preparação para o epílogo relativo à apresentação pública que se dará no próximo ano na Bélgica? É-o, na medida em que devemos nos familiarizar com a verdade absoluta. É-o, na revisão que podemos realizar da vida. É-o, na certeza de que a vida é uma dádiva. Nas palavras de Guerra Junqueiro: “Sim, o crítico dos críticos é só ele – o tempo. Infalível e insubornável”. Esta travessia estará sob a égide do tributo. Para os recitais e palestras, escrevi aos organizadores inserirem nos programas “Recital in memoriam ao amigo-irmão José Maria Pedrosa Cardoso”. Solicitei ao ilustre compositor português natural de Trás-os-Montes, Eurico Carrapatoso, grande amigo do homenageado e meu também, uma peça como introito aos recitais. Inspiradíssimo, escreveu uma peça que atinge o âmago da interioridade e dedicada in memoriam ao notável musicólogo. Emana da bela criação polifônica o espírito voltado à meditação. Transcorre em baixíssima sonoridade, para atingir a exaltação compassos antes de um instigante intervalo de quinta no grave (fá-dó naturais em pppp) com a frase em francês “Cet accord doit avoir la valeur d’une pierre taillée”, finalizando com arpejo em Ré Maior na mesma intensidade. Curiosamente o recital se dará no dia oito de Junho, exatos seis meses da morte de nosso pranteado José Maria Pedrosa Cardoso.

No recital em Coimbra haverá obras de Carrapatoso (1962- ), Carlos Seixas (1704-1742), Bach-Liszt (1685-1750 – 1811-1886) Henrique Oswald (1852-1931), Gilberto Mendes (1922-2016, centenário) e Alexandre Scriabine (1872-1915), pois dele tocarei 10 Poemas neste ano em que se comemora o sesquicentenário de nascimento.

No dia 11, em Tomar, abrirei o recital com a criação de Carrapatoso e a seguir interpretarei a extraordinária coletânea de Fernando Lopes-Graça 1906-1994), “Viagens na Minha Terra”, “dezanove peças para piano sobre melodias tradicionais portuguesas”, como o próprio compositor assinala no subtítulo. Um dia antes, darei palestra na Casa Memória Lopes-Graça, a ter como tema o meu envolvimento com a obra deste nome maior da composição em Portugal. O convite veio do Professor, Musicólogo e Diretor Artístico do coro Canto Firme de Tomar, António Sousa. Atentou para duas efemérides em especial, os 40 anos da minha primeira apresentação em Tomar e… o meu aniversário (84).  António Sousa é um dos mais respeitados estudiosos da vida e da obra de Fernando Lopes-Graça.

Clique para ouvir, de Fernando Lopes-Graça, “Viagens na Minha Terra”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=n0PwLys54GU

No dia 14, a palestra será no Centro Ward de Lisboa, dirigido pela notável gregorianista Professora Idalete Giga. Abordarei a temática referente à escolha do repertório português que gravei em Portugal e principalmente na Bélgica. Foram sete CDs.

Guimarães e Braga perfazem o tour pelas terras lusíadas.

Os próximos dois posts serão menores, motivado pelos deslocamentos. Possivelmente não haverá imagens que, no regresso, incluirei como conclusão do tour em Portugal. Valentina se encarregará das fotos e, possivelmente, de alguma gravação ao vivo.

I will do a short tour in Portugal in June, after two and a half years without crossing the Atlantic. My granddaughter Valentina will accompany me. In this post I give a brief description of the itinerary and of the repertoire to be presented.

Razão a determinar caminhos

O público imaginário
ao qual o intérprete se dirige em uma gravação
é infinitamente vasto, anônimo e, na verdade, eterno e ideal:
é um público de todos os países e de todos os tempos,
tendo exigências exorbitantes.
Gisète Brelet
(“Linterprétation Créatrice vol II)

É necessário que um dia todos os homens vejam
que o desejo de chegar mais longe,
a atenção à crítica, a calma ante o que fere,
nada têm a ver com a força e a fraqueza:
são qualidades da alma.
Agostinho da Silva

Desde 1995 visito Gent, na Bélgica, sempre a pensar e agir musicalmente. Já àquela altura um registro permaneceria, a gravação em Bruxelas, para o selo PKP, da integral para violino e piano de Henrique Oswald com Paul Klinck ao violino. Sucessivamente as idas a Gent foram se acumulando e, desde 1999, começaria a gravar para o seletivo selo De Rode Pomp, apresentando-me na pequena e aconchegante sala de concertos da organização até a sua desativação por volta de 2012. Contudo, as gravações continuaram, sempre sob a supervisão técnica do engenheiro de som Johan Kennivé cujas excepcionais qualidades tenho comentado ao longo dos anos. Sob os cuidados de Kennivé, gravei posteriormente para outros selos, PortugalSom e ESOLEM, este francês, e SESC (tema do próximo blog). Portanto, a gravação que se deu em fins de Maio na pequena cidade de Mullem, perdida na planura flamenga, foi a derradeira, justamente quando Johan Kennivé e eu completávamos 20 anos de uma parceria irretocável. O lançamento do CD em pauta deverá ocorrer em data não prevista em 2020 pelo selo francês ESOLEM.

Sempre entendi a Música como parte fundamental de minha vida, mas a jamais obstaculizar outros olhares. Ela os substancia, pois a visão que posso depreender de minha formação sonora transforma a observação, dando-lhe talvez, sem qualquer sentido de empáfia, um caráter mais lírico. É possível que assim seja. Regressar a Gent pela 25º vez ou a Paris por mais de 30 vezes faz com que retornos se tornem mais tranquilos. Gent, que entrou em minha vida em 1995, recebe o olhar carinhoso para com amigos que habitam o meu de profundis e que, a cada visita, é mais intenso. Não há como negar essa interação. Creio ser essa a razão de entender a Música como elo de ligação e jamais ter me achado não pertencente a essa categoria de low profile. A interpretação pianística, mormente nas gravações, a ser pensada como fator preferencial a visar à perfeição, miragem inatingível, mas senda a ser seguida sem esmorecimento. Daí só gravar em condições rigorosamente de primeira qualidade. A Música a fazer parte do todo, a gravação a buscar esse totum sempre esperançoso.

A exibição de algumas fotos, testemunhos de integração afetiva, é consequência da interação com meu leitor que semanalmente tem acompanhado e entendido esses momentos, digitalizados sempre durante as madrugadas, quando a serenidade se impõe sem distrações. A viagem anual para as gravações transforma-se num ato de amor à vocação que acredito ter recebido de um Poder Maior. A dimensão do talento depende de fatores misteriosos, daí entendermos a presença de compositores e intérpretes rigorosamente únicos. De minha parte, almejo apenas realizar o melhor possível com os dons econômicos recebidos, mas resultando com disciplina, perseverança, concentração e labor, sem os quais nada realmente válido permanece. Deixar um legado. Meus blogs recentes tratam desse tema. Como o filósofo Eduardo Lourenço tem razões! Buscamos deixar algo. Recitais passam como o vento, com maior ou menor intensidade. A gravação fica. O respeito dessa fixação permanente só o entendo se em condições absolutas. Enfim, é o que podemos realizar.

A amizade com personagens de Gent, que há mais de duas décadas pertencem ao meu universo afetivo, é entendida no primeiro olhar trocado. A alegria transborda e essa sensação é inigualável. Como não sentir contentamento ao verificar que casais como André Posman e Jamila, assim como Tony Herbert e Tina, que conheci ainda sem proles, estarem hoje com filhos na faixa dos 15-17 anos e já com projetos precisos? Taha e Iassim, filhos do casal Posman, já são músicos e Taha apresentou-se durante minha curta estadia interpretando Concerto para piano e orquestra de Shostakovitch. Iassim é clarinetista de talento. Tycho e Trixie, filhos de Tony-Tina já têm planos claros. É o passar do tempo a trazer descortinos.

Em Paris, os afetos são intensos e perduram há seis décadas. Pertencemos a uma geração que está nos estertores. Sabemos disso e o fato acentua o prazer imenso do encontro. Não há palavras para exprimir essa fusão renovada. Rememorar episódios vividos na empolgação da juventude que adentrava a idade madura; situações alegres, divertidas, emotivas. Com a excelente pianista Odile Robert conversamos sobre tantos recitais e concertos assistidos com entusiasmo e apresentados pelos nomes basilares da história do piano: Arthur Rubinstein, Wilhelm Kempff, Wilhelm Backhaus, Clara Haskil, Marguerite Long, Jean Doyen, Claudio Arrau, Sviatoslav Richter, Emil Gilels e tantos outros. Lembrarmos de aulas e colegas, muitos já desaparecidos, e o momento atual em que insistimos, por devoção, nessa caminhada sem fim dedicada a uma arte que amamos. Comungamos as muitas dúvidas a respeito de legião de intérpretes orientais que invadem o continente europeu, munidos de grande virtuosidade, mas nem sempre com ideias musicais baseadas no conhecimento das Culturas do Ocidente.

Antoine Robert, irmão de Odile, aos 87 anos, é amigo pelo qual tenho a maior gratidão. Foi ele que me introduziu na riquíssima literatura francesa e, sem exagero, cerca de trezentos livros foram lidos naquele período que se estendeu de fins de 1958 a meados de 1962. Passamos um dia a conversar sobre passado e presente, adentramos livrarias e adquiri alguns livros, entre os quais três novos de Sylvain Tesson, autor aqui resenhado em mais de dez blogs dedicados às suas obras. Em noite de confraternização pura, o reencontro com outros familiares Roberts, Chantal e Daniel, ratificou emoções.

O compositor e pensador francês François Servenière, tantas vezes presente em meus blogs através de seus longos comentários sobre os posts publicados semanalmente, propiciou-me imensa alegria ao vir de Le Mans a fim de passarmos o dia em que temas musicais foram abordados. Ao final da tarde juntou-se a nós o compositor Maury Buchala, meu ex-aluno na Universidade de São Paulo. Residente em Paris há 30 anos, desenvolve bela carreira como compositor e regente. Obras dos dois estarão presentes nesse meu derradeiro CD gravado na planura flamenga.

Pela primeira vez, a visita a Paris foi apenas de confraternização com amigos, entre os quais Myriam Chimènes, Secretária Geral do Centre de Documentation Claude Debussy, e Anik Devriés-Lesure, membro do Conselho Administrativo do Centro e viúva do grande musicólogo e maior referência sobre Debussy na segunda metade do século XX, meu saudoso amigo François Lesure.

O reencontro com o professor e poeta português Fernando Rosinha e sua esposa Marina, com Emanuel Billy e sua esposa, a expressiva violinista Nicole, ratificaram amizades que perduram.

Adentrando os 81 anos encerro as gravações, mas continuarei a tocar. Há que se saber o momento de encerrar uma atividade. Faço-o com paz interior. Estou consciente de que, para transmitir minhas ideias a partir da interpretação, busquei nestas mais de duas décadas a mais apurada qualidade de captação sonora. A surda alegria de ter escolhido sempre meu repertório para as gravações, nas quais tantas composições extraordinárias foram redescobertas ou interpretadas pela primeira vez, leva-me a considerar fato corrente que conduz intérpretes a se submeterem a obras impostas pelas grandes gravadores. Entendo meu posicionamento como uma espécie de desbravamento. Alpinistas, navegadores e aventureiros sentem algo especial ao chegar a termo. Creio que tenho a mesma sensação após a gravação do 25º CD. Convido o leitor a ouvir no YouTube cerca de 100 composições que gravei ao passar dos anos. Legado? Talvez.

Back in São Paulo, I recall my trip to Belgium and France, two countries I feel bound to by ties of deep friendship. In Gent, where I went to record my 25th CD, it was a pleasure to see so many old friends and faces throughout the week. In Paris, I’ve been with friends of decades, a chance to recall episodes of our youth, when I was there with a scholarship from the French government. From Le Mans came composer François Servenière and we’ve spent a day together discussing musical issues. Composer Maury Buchala, my former student at Universidade de São Paulo now living in Paris, joined us in the afternoon. At 81, I put an end to my recordings happy for being always able to choose my own repertoire and conscious I’ve been a kind of pathfinder, choosing the seldom-used path, unveiling and fostering piano works from the past and the present.

 

 

 


Relações de afeto


Após três longas noites a gravar meu derradeiro CD, houve confraternização com amigos que eu amo em Gent, na região da Bélgica Flamenga.

As gravações em Mullem, um dia após meu recital, foram feitas após o jantar, sempre acompanhado pela insuperável cerveja belga. Aguardávamos, Johan e eu, o cair da noite, que a essa altura nessa região dá-se por volta das dez horas.

Silenciam-se os pássaros, entre os quais o extraordinário mestre, o Melro. Adentrávamos na Capela Saint-Hilarius, meu Templo Mágico, e as musas inspiravam o intérprete em seu derradeiro registro, ciclo iniciado em 1999. Completava 20 anos a gravar na Capela com meu amigo fraterno, o inigualável engenheiro de som Johan Kennivé. As gravações eram feitas até o despertar da passarinhada, pouco antes do alvorecer.

Uma sensação estranha, nostalgicamente prazerosa, dava-se naqueles momentos finais de tão longo convívio. O intérprete se despedia da milenar Capela, que certamente abrigará durante muitos séculos outros sons das gerações pósteras.

Vim a seguir a Paris para visitar amigos que conheci no final da década de 1950. Amizades sólidas como a rocha mais rígida. Ainda estive com extraordinários amigos do Centre Debussy.

No próximo blog, já em minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo, colocarei fotos da viagem. Agradeço a ajuda técnica de meus diletos amigos em São Paulo, Regina Maria e Magnus Bardela. Continuo jurássico em relação às novas tecnologias. Nada a fazer.