Razão a determinar caminhos

O público imaginário
ao qual o intérprete se dirige em uma gravação
é infinitamente vasto, anônimo e, na verdade, eterno e ideal:
é um público de todos os países e de todos os tempos,
tendo exigências exorbitantes.
Gisète Brelet
(“Linterprétation Créatrice vol II)

É necessário que um dia todos os homens vejam
que o desejo de chegar mais longe,
a atenção à crítica, a calma ante o que fere,
nada têm a ver com a força e a fraqueza:
são qualidades da alma.
Agostinho da Silva

Desde 1995 visito Gent, na Bélgica, sempre a pensar e agir musicalmente. Já àquela altura um registro permaneceria, a gravação em Bruxelas, para o selo PKP, da integral para violino e piano de Henrique Oswald com Paul Klinck ao violino. Sucessivamente as idas a Gent foram se acumulando e, desde 1999, começaria a gravar para o seletivo selo De Rode Pomp, apresentando-me na pequena e aconchegante sala de concertos da organização até a sua desativação por volta de 2012. Contudo, as gravações continuaram, sempre sob a supervisão técnica do engenheiro de som Johan Kennivé cujas excepcionais qualidades tenho comentado ao longo dos anos. Sob os cuidados de Kennivé, gravei posteriormente para outros selos, PortugalSom e ESOLEM, este francês, e SESC (tema do próximo blog). Portanto, a gravação que se deu em fins de Maio na pequena cidade de Mullem, perdida na planura flamenga, foi a derradeira, justamente quando Johan Kennivé e eu completávamos 20 anos de uma parceria irretocável. O lançamento do CD em pauta deverá ocorrer em data não prevista em 2020 pelo selo francês ESOLEM.

Sempre entendi a Música como parte fundamental de minha vida, mas a jamais obstaculizar outros olhares. Ela os substancia, pois a visão que posso depreender de minha formação sonora transforma a observação, dando-lhe talvez, sem qualquer sentido de empáfia, um caráter mais lírico. É possível que assim seja. Regressar a Gent pela 25º vez ou a Paris por mais de 30 vezes faz com que retornos se tornem mais tranquilos. Gent, que entrou em minha vida em 1995, recebe o olhar carinhoso para com amigos que habitam o meu de profundis e que, a cada visita, é mais intenso. Não há como negar essa interação. Creio ser essa a razão de entender a Música como elo de ligação e jamais ter me achado não pertencente a essa categoria de low profile. A interpretação pianística, mormente nas gravações, a ser pensada como fator preferencial a visar à perfeição, miragem inatingível, mas senda a ser seguida sem esmorecimento. Daí só gravar em condições rigorosamente de primeira qualidade. A Música a fazer parte do todo, a gravação a buscar esse totum sempre esperançoso.

A exibição de algumas fotos, testemunhos de integração afetiva, é consequência da interação com meu leitor que semanalmente tem acompanhado e entendido esses momentos, digitalizados sempre durante as madrugadas, quando a serenidade se impõe sem distrações. A viagem anual para as gravações transforma-se num ato de amor à vocação que acredito ter recebido de um Poder Maior. A dimensão do talento depende de fatores misteriosos, daí entendermos a presença de compositores e intérpretes rigorosamente únicos. De minha parte, almejo apenas realizar o melhor possível com os dons econômicos recebidos, mas resultando com disciplina, perseverança, concentração e labor, sem os quais nada realmente válido permanece. Deixar um legado. Meus blogs recentes tratam desse tema. Como o filósofo Eduardo Lourenço tem razões! Buscamos deixar algo. Recitais passam como o vento, com maior ou menor intensidade. A gravação fica. O respeito dessa fixação permanente só o entendo se em condições absolutas. Enfim, é o que podemos realizar.

A amizade com personagens de Gent, que há mais de duas décadas pertencem ao meu universo afetivo, é entendida no primeiro olhar trocado. A alegria transborda e essa sensação é inigualável. Como não sentir contentamento ao verificar que casais como André Posman e Jamila, assim como Tony Herbert e Tina, que conheci ainda sem proles, estarem hoje com filhos na faixa dos 15-17 anos e já com projetos precisos? Taha e Iassim, filhos do casal Posman, já são músicos e Taha apresentou-se durante minha curta estadia interpretando Concerto para piano e orquestra de Shostakovitch. Iassim é clarinetista de talento. Tycho e Trixie, filhos de Tony-Tina já têm planos claros. É o passar do tempo a trazer descortinos.

Em Paris, os afetos são intensos e perduram há seis décadas. Pertencemos a uma geração que está nos estertores. Sabemos disso e o fato acentua o prazer imenso do encontro. Não há palavras para exprimir essa fusão renovada. Rememorar episódios vividos na empolgação da juventude que adentrava a idade madura; situações alegres, divertidas, emotivas. Com a excelente pianista Odile Robert conversamos sobre tantos recitais e concertos assistidos com entusiasmo e apresentados pelos nomes basilares da história do piano: Arthur Rubinstein, Wilhelm Kempff, Wilhelm Backhaus, Clara Haskil, Marguerite Long, Jean Doyen, Claudio Arrau, Sviatoslav Richter, Emil Gilels e tantos outros. Lembrarmos de aulas e colegas, muitos já desaparecidos, e o momento atual em que insistimos, por devoção, nessa caminhada sem fim dedicada a uma arte que amamos. Comungamos as muitas dúvidas a respeito de legião de intérpretes orientais que invadem o continente europeu, munidos de grande virtuosidade, mas nem sempre com ideias musicais baseadas no conhecimento das Culturas do Ocidente.

Antoine Robert, irmão de Odile, aos 87 anos, é amigo pelo qual tenho a maior gratidão. Foi ele que me introduziu na riquíssima literatura francesa e, sem exagero, cerca de trezentos livros foram lidos naquele período que se estendeu de fins de 1958 a meados de 1962. Passamos um dia a conversar sobre passado e presente, adentramos livrarias e adquiri alguns livros, entre os quais três novos de Sylvain Tesson, autor aqui resenhado em mais de dez blogs dedicados às suas obras. Em noite de confraternização pura, o reencontro com outros familiares Roberts, Chantal e Daniel, ratificou emoções.

O compositor e pensador francês François Servenière, tantas vezes presente em meus blogs através de seus longos comentários sobre os posts publicados semanalmente, propiciou-me imensa alegria ao vir de Le Mans a fim de passarmos o dia em que temas musicais foram abordados. Ao final da tarde juntou-se a nós o compositor Maury Buchala, meu ex-aluno na Universidade de São Paulo. Residente em Paris há 30 anos, desenvolve bela carreira como compositor e regente. Obras dos dois estarão presentes nesse meu derradeiro CD gravado na planura flamenga.

Pela primeira vez, a visita a Paris foi apenas de confraternização com amigos, entre os quais Myriam Chimènes, Secretária Geral do Centre de Documentation Claude Debussy, e Anik Devriés-Lesure, membro do Conselho Administrativo do Centro e viúva do grande musicólogo e maior referência sobre Debussy na segunda metade do século XX, meu saudoso amigo François Lesure.

O reencontro com o professor e poeta português Fernando Rosinha e sua esposa Marina, com Emanuel Billy e sua esposa, a expressiva violinista Nicole, ratificaram amizades que perduram.

Adentrando os 81 anos encerro as gravações, mas continuarei a tocar. Há que se saber o momento de encerrar uma atividade. Faço-o com paz interior. Estou consciente de que, para transmitir minhas ideias a partir da interpretação, busquei nestas mais de duas décadas a mais apurada qualidade de captação sonora. A surda alegria de ter escolhido sempre meu repertório para as gravações, nas quais tantas composições extraordinárias foram redescobertas ou interpretadas pela primeira vez, leva-me a considerar fato corrente que conduz intérpretes a se submeterem a obras impostas pelas grandes gravadores. Entendo meu posicionamento como uma espécie de desbravamento. Alpinistas, navegadores e aventureiros sentem algo especial ao chegar a termo. Creio que tenho a mesma sensação após a gravação do 25º CD. Convido o leitor a ouvir no YouTube cerca de 100 composições que gravei ao passar dos anos. Legado? Talvez.

Back in São Paulo, I recall my trip to Belgium and France, two countries I feel bound to by ties of deep friendship. In Gent, where I went to record my 25th CD, it was a pleasure to see so many old friends and faces throughout the week. In Paris, I’ve been with friends of decades, a chance to recall episodes of our youth, when I was there with a scholarship from the French government. From Le Mans came composer François Servenière and we’ve spent a day together discussing musical issues. Composer Maury Buchala, my former student at Universidade de São Paulo now living in Paris, joined us in the afternoon. At 81, I put an end to my recordings happy for being always able to choose my own repertoire and conscious I’ve been a kind of pathfinder, choosing the seldom-used path, unveiling and fostering piano works from the past and the present.