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Parte essencial do universo de afetos em Gent

Dois amigos impecáveis em torno da Música. Afetos duradouros. Dediquei um blog a um outro amigo gantois igualmente impecável (vide blog: “Tony Herbert – TTTT e o saber viver”, 12/04/2008). Tony foi o criador dos dois cartazes que ilustram o blog anterior.

Mais de 20 anos de relacionamentos que só se aprofundaram. André Posman é figura singular. Franco, direto, tem a generosidade dos que realmente existem para acrescer. Estimula sempre. Não tem a menor preocupação com a aparência e é capaz de andar pelas ruas com as roupas repletas de manchas de tinta, se antes esteve a pintar ou a consertar algo. Nossa empatia foi imediata e, como relatei anteriormente, tinha acesso a sua casa através de uma chave que me deu. A contrastar com essa atitude generosa, André teve sempre o maior rigor com os CDs que lançava. Nada lhe escapava. Professor de História aposentado, André hoje cuida de temas culturais da cidade, colabora em vários projetos e escreve. Sua esposa Jamila, marroquina, está sempre ao seu lado nesse estímulo permanente voltado aos seus ideais. Os filhos Taha e Yassim, jovens músicos de talento.

Johan Kennivé é o engenheiro de som dos sonhos de qualquer intérprete. Também tivemos empatia absoluta desde o primeiro instante. Psiquiatra em acréscimo, Johan atinge o de profundis do intérprete e, atento e calmo, transmite àquele que está a gravar a tranquilidade necessária. O tempo, bem, o tempo inexiste durante as gravações e jamais, nestes quase vinte anos de trabalho conjunto, pressionou-me em relação aos horário do término dos registros fonográficos.

Creio que já relatei em algum blog do passado que certa noite, após recital, jantava na De Rode Pomp, que mantinha restaurante e galeria de arte abertas de quinta a sábado, quando o representante de uma afamada empresa de gravações senta-se à minha frente e convida-me a entrar na lista de seus intérpretes. Afirmou inicialmente que sua organização tinha divulgação mundial, o que realmente corresponde a verdade. Fiz algumas perguntas relacionadas à escolha do repertório, engenheiro de som, local de gravação e texto do encarte. Respondeu-me que a organização escolhia as obras que deveriam ser gravadas e que o local poderia ser em um país por ela escolhido, sendo que o texto não pertencia ao contratado, mas a um especialista nesse mister. Foi quando passava por mim André Posman. Levantei-me, beijei-lhe o rosto e afirmei que a nossa ligação musical era eterna. Inútil dizer que o cidadão despediu-se sem dizer nada. Continuei a gravar na Capela Saint-Hilarius, em Mullem, sob a magia do engenheiro de som Johan Kennivé.

São tantas as outras personagens gantoises que admiro. A lista é grande.

Ao regressar farei a exposição das apresentações. Focalizei, nas semanas em que me encontro na Europa, fatos que me são essenciais e que se relacionam mais com a estreita ligação humana. No próximo blog, já em São Paulo, estarei a narrar as experiências vividas durante e depois dos quatro recitais apresentados em Portugal e Bélgica. Haverá fotos.

Um recital vinte e dois anos após uma primeira apresentação

I have spread my dreams under your feet:
Tread softly because you tread on my dreams.
W.B. Yeats (1865-1939)

Elegemos nossos paraísos imaginários. Cada indivíduo tem lá seu paraíso; ou vários. São tantas as circunstâncias que determinam a escolha. Gent é um de meus paraísos encantados e razões há para a eleição. Foi em Gent que gravei meu primeiro CD no Exterior. Em dois dias, o excelente violinista Paul Klinck e eu gravamos a integral para violino e piano de Henrique Oswald (selo belga PKP). Meses após, ainda no ano de 1995, o Conservatório Real de Gent realizou um concerto inteiramente dedicado a Henrique Oswald para o lançamento do CD. Foi uma das grandes emoções musicais em minha vida. Com quase duas horas de duração, participei de todas as obras da primeira longa parte: Sonata para violoncelo e piano op. 44, Quarteto com piano op. 26, Poema Lírico Ofélia para soprano e piano, várias peças para piano solo. Na segunda parte, o magnífico coral Novecanto apresentaria a Missa de Requiem a capella do nossa maior compositor romântico. A menção ao primeiro CD é feita, pois no recital do dia 27 será lançado meu 23º CD, sob o sugestivo nome “Éthers de L’Infini”, com obras de quatro excepcionais compositores: Eurico Carrapatoso e Jorge Peixinho (Portugal), François Servenière (França) e Gheorghi Arnaoudov (Bulgária), sob a égide do selo francês ESOLEM.

Passaram-se os anos e visitei a cidade mais de 20 vezes, a fim de recitais e gravações, aqueles sempre tendo relação intrínseca com o repertório a ser gravado para o selo De Rode Pomp, hoje desativado. Todavia, as gravações continuam tendo como engenheiro de som Johan Kennivé, um dos mais competentes especialistas da área no planeta, e o local, a mágica capela de Saint-Hilarius do (século XI), perdida na planura flamenga em Mullem, cidade com pouco mais de 300 habitantes.

Retornar a Gent traz-me recordações guardadas em meu de profundis. A apresentação, marcada para o dia 27 na Sala Quatre Mains, já está a congregar público que, durante todos esses anos, tem acompanhado meus recitais. Em minha caixa de e-mails recebo mensagens de frequentadores antigos que prestigiavam os músicos que se apresentavam na sala da De Rode Pomp.
Como afirmei anteriormente, os blogs durante a viagem estão bem resumidos pela dificuldade de determinados acessos, pois não levo comigo nem laptop, tampouco tablet, o que evidencia minha pouca familiaridade com esses inventos.

Sabedor do recital, meu dileto amigo Tony Herbert criou o cartaz que ilustra o blog. Um artista pleno de imaginação. Bem anteriormente já fizera cartaz de recital que apresentei na De Rode Pomp, após o qual o CD com a integral dos Estudos de Debussy foi lançado. Na foto, tirada pelos amigos belgas Danièlle Lemaître e Rudy, a garrafa de champagne está pintada pelo excelente pintor de São Peterburgo, Boris Chapovalov, um artista que visita frequentemente a cidade de Gent. Após jantar na De Rode Pomp no ano anterior em que apresentei os Doze Estudos de Debussy e outras obras, Chapovalov colocou a garrafa em baixo do braço sem nada dizer. No dia seguinte oferecia-me a sugestiva pintura.

Penso encerrar o ciclo escrito além-mar com um breve post, a focalizar meu diletíssimo amigo André Posman, que criou as temporadas musicais na De Rode Pomp e manteve acesa a chama da gravação através de dezenas de CDs lançados, esmeradamente produzidos. Também escreverei sobre o engenheiro de som Johan Kennivé, um mágico da gravação.

Cidades revisitadas

O que faço só importa
se traduz o que vou sendo
se assim não for tudo é nada
só finjo que estou fazendo
Agostinho da Silva

O Festival de Música Religiosa de Guimarães teve pleno êxito. Programação intensa, a privilegiar repertório específico muito bem elaborado pelos organizadores e pela Câmara Municipal de Guimarães. Louve-se o hercúleo trabalho do Prof. Dr. José Maria Pedrosa Cardoso. Esteve à testa de toda a extensa programação que se estendeu do dia 8 de Abril à Páscoa no dia 16. Quando em São Paulo farei o relato do recital que apresentei no dia 15, assim como o dos outros que estão por vir.

Descemos de Guimarães para Coimbra, do Minho para a antiga província Beira Litoral. O dileto casal Pedrosa Cardoso nos conduz à bela Coimbra, pois, em acréscimo, José Maria foi professor na lendária universidade.

Não poucas vezes me apresentei nas belas e tradicionais cidades portuguesas de Coimbra e Évora, mormente na cidade alentejana. São inúmeras as recordações, amizades aprofundadas em sólidas raízes, mágica e mística apreensão histórica, programas diferenciados que revelaram, entre outras composições, inúmeras criações portuguesas.

Vários blogs anteriores pormenorizaram Coimbra quando de recitais, sendo que o primeiro deu-se em 2004, em circunstâncias que me foram, diria, dramáticas. Contrariando rigorosas restrições médicas para que não viajasse em período em que a saúde estava num quase impasse, atravessei o oceano e me apresentei com programa unicamente dedicado ao grande compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742), justamente nas comemorações do terceiro centenário de nascimento do músico. Seria possível admitir que, independentemente da qualidade absoluta de sua obra, o fato de ele ter nascido no dia do mês que veria nascer, meu saudoso pai, no final do século XIX, e eu certamente foi estímulo.

Se o local desse primeiro recital foi a belíssima Biblioteca Joanina, cujo início da construção remonta ao ano de 1717, no reinado de D. João V, e é uma das mais importantes Bibliotecas do período barroco na Europa, mais ainda quis conhecer sua história, lendas e particularidades de seu estilo. Adentrando-se pela grande porta, deparamo-nos com três salas que se comunicam, com portais idênticos. Chamam a atenção as distintas colorações das três salas douradas, mas tendo como cor de fundo o verde, o vermelho e o preto, respectivamente. Essa disposição causa uma sensação de grandiosidade graças à perspectiva, mormente se for considerado o enorme retrato de D João V em moldura de extraordinário impacto, justamente a pairar na parede derradeira, como se estivesse num altar. Na foto que ilustra o blog vê-se bem a posição do piano na terceira sala, instrumento doado pela ilustre musicóloga Maria Augusta Barbosa (1912-2012).

Embora o programa seja diferenciado daquele apresentado no Festival de Música Religiosa de Guimarães, inclui, a pedido, as duas lendas franciscanas de Franz Liszt, que me levam a rememorar recital oferecido uma década atrás no qual interpretei essas belas criações lisztianas. Em São Francisco de Assis falando aos pássaros, um rouxinol no alto da biblioteca gorjeava durante várias passagens plenas de trinados, imitando passarinhos. Continuou durante uns bons segundos e desapareceu. Amalgamou-se à composição de Liszt, diria, “vibração por simpatia”, utilizando-me metaforicamente de expressão musical.  Causou impressão ao numeroso público e, segundo relato, jamais houve ocorrência de pássaro a cantar no interior da Biblioteca.

No recital do dia 19 não deixarei de apresentar duas Sonatas de Carlos Seixas como introdução ao programa, que terá ainda obras de Francisco Mignone, Almeida Prado, François Servenière, Claude Debussy, Henrique Oswald e Alexander Scriabine.

Desceremos a seguir para o Alentejo, conduzidos pela dileta amiga e gregorianista de mérito, Idalete Giga, tantas vezes presente em meus blogs. O recital será em Évora, na bela capela do Convento Nossa Senhora dos Remédios, e a promoção está a cargo do Eborae Musica. Será o mesmo programa conimbricense. Quantas não foram as vezes que toquei nesse espaço, hoje não mais destinado ao culto, mas que guarda símbolos essenciais da Igreja Católica. Percorrer a estrada que leva à cidade de Évora já é tema especial. A planura alentejana é única com sua vastidão, seus sobreiros, chaparros e oliveiras, o manto de flores do campo e as cegonhas aninhadas nas torres de transmissão. Nossa neta Valentina sonha conhecer o Alentejo, tanto o avô discorreu sobre seus encantos e sobre a paisagem completamente diversa da que ela tem visto em Portugal. Relatei para Valentina dados essenciais do magnífico livro do amigo Joaquim Palminha Silva (1945-2015), “Évora, cidade esotérica e misteriosa”, despertando sua curiosidade.

A quase impossibilidade de acesso ao computador, ainda mais para um músico que teima em não conhecer as atuais “geringonças” manuseadas facilmente por crianças e adolescentes, faz-me refém de minha ignorância. Valentina tem-me ajudado, mas somente quando em São Paulo, após visitar a Bélgica para um último recital dessa turnê, levarei ao leitor minhas impressões, a recepção às apresentações e, logicamente, fotos dos recitais. Essa dificuldade frente à tecnologia obriga-me a redigir textos mais curtos, mercê igualmente de outras atividades: estudo pianístico, atenção dada à entrevista (Antena 2), contatos com músicos portugueses e a edição de Canto de Amor e de Morte de Lopes-Graça, sob minha revisão, quando encontros no Museu da Música Portuguesa em Cascais e com membros do Movimento Patrimonial da Música Portuguesa tornam-se imperativos.