Navegando Posts em Interlúdio

Dignidade Mantida

Seu Constantino - Amolador; foto: J.E.M.

Lembranças sempre vêm quando nos deparamos com o estímulo a aguçar analogias. Quando miúdo, diariamente convivíamos com artesãos solitários ou vendedores, que se tornavam partícipes do cotidiano. Estou a me lembrar dos anos 40, quando verdureiro, engraxate, amolador, vendedor de leite de cabra a puxar por um corda alguns animais, entregador de leite, todos a passar pela calçada de nossa casa em dias certos, dando-nos uma alegria que se foi estiolando a partir do crescimento mal planejado da cidade. Recordo-me dos triciclos que traziam, do filão, da pescada num grande bagageiro em zinco, pleno de pedaços de gelo. Havia garrafeiros e catadores de papel, aqueles dando uns trocadinhos por certas garrafas, estes a pesar jornais velhos em balança manual. Sabíamos os nomes de todos, e era sempre um prazer vê-los em suas atividades. Os sons ficaram no de profundis: os guizos das cabras a tilintarem à distância eram a certeza do bom leite a ser tomado in loco; a flauta de Pã do amolador, a correria em busca de facas, canivetes, tesouras de minha mãe, navalhas de meu pai que, após cuidadoso trato, ficavam afiadíssimos. Pregões de vendedores, quando próximos ao portão, ressoavam pelo quintal, a identificar os personagens. Havia cordialidade e tempo para estreitar relações. A urbe descontrolada e imensa, a violência à espreita, a pressa que leva ao individualismo, o anonimato forçado pelas contingências, tudo contribuiu para o desaparecimento daquele maravilhamento que a criança via e ouvia. Mas a infância tem essa magia de proporcionar a tardia visitação às imagens retidas, de maneira clara, sem névoas.
Se aquele universo acalentado, ao ser rememorado, esvaiu-se, é uma felicidade verificar um remanescente que persiste, na evidência de que nem tudo desapareceu. Aos domingos, sempre por volta do meio-dia, um amolador à antiga passa há anos pelas ruas de minha cidade-bairro, o Brooklin. De longe faz-se ouvir através de sua flauta de Pã, instrumento que remonta ao deus grego dos pastores. Hoje de plástico, na minha infância de lata ou madeira. Povos andinos, da Oceania e dos Bálcãs empregam essa flauta em suas danças e folguedos. Em nossas terras, flauta de Pã e gaita de boca ficaram associadas à presença de um amolador. Escalas rápidas ascendentes e descendentes têm as intensidades variadas determinadas pela aproximação e afastamento desse especialista. Exatamente como aquelas que ouvia quando pequeno.
Estava a estudar e parei. Fui ter com o Seu Constantino, espanhol que há 47 anos exerce o trabalho em São Paulo, após três na Espanha. Aos 79 anos, ei-lo em sua moto antiga, ferramentas e a pedra de esmeril. Aciona o motor, afia o que lhe entregam, toca a flauta de Pã e sempre surgem clientes que o conhecem e confiam em seu trabalho impecável. Exatamente como o amolador de minha infância. Fixo a sua imagem, que poderia ficar acoplada, sem retoques, àquela guardada nos anos 40. Seu Constantino, após trabalho feito, sobe em sua moto, aciona-a e parte lentamente, sempre a tocar as mesmas escalas. Os sons se distanciam e eu vou ao encontro daqueles outros, de meu piano.

Meliponideos – Abelhas do Convívio

A colméia entre as ramas da unha-de-gato. Foto J.E.M.

O inverno está a começar e raios solares atenuam-se graças à sua menor incidência sobre o hemisfério sul nesse período. Num fim de tarde agradável, quando o sol já buscava ocultar-se, observei que um pequeno foco de luz recaia diretamente sobre a entrada de uma colméia logo abaixo de minha janela. Presenciava um espetáculo rotineiro extraordinário. A luz mostrava-se tênue, realçando o cenário. As pequenas abelhas negras, sem ferrão, mergulhavam em vôos rápidos e rasantes no orifício de pouco mais de sete centímetros de diâmetro, a buscarem proteção durante a longa noite. Era uma sucessão contínua, que se prolongou. Pouco a pouco fazia-se sombra e rapidamente começou a escurecer.
Fiquei a pensar durante um bom tempo. Que relação plena com os filmes de ficção, onde pequenas naves espaciais recolhem-se à nave mãe! Exatamente da mesma maneira e com a mesma precisão. Nos filmes, geralmente não há equívocos, a depender dos roteiros. Na natureza, as abelhas fazem essas incursões sem jamais errar. Absoluta competência.
Há trinta e tal anos convivo com essa colméia. Diria que faz parte da família. Essas abelhas, em suas muitas gerações a povoarem o mesmo local, inicialmente construíram sua morada na compacta vegetação conhecida como unha de gato, que com o tempo tudo cobriu, exceção à entrada. Um volume apreciável é possível perceber. Não ferroam, mas causam um grande transtorno àqueles que se aproximam, a fim de aparar as ramas da unha de gato. Estou a me lembrar de um velho jardineiro, que durante muitos anos freqüentou nossa casa para podar essa trepadeira tão comum. Munia-se de um pano sobre a cabeça, óculos de piscina, tampão para os ouvidos, luvas e ia ao corte. Praguejava sempre quando nesse mister. Após o ótimo trabalho do bom homem, tinha por hábito olhar para a entrada da colméia a ver, com mais clareza, a rotina de entrada e saída das pequenas abelhas negras. Num determinado dia, não vi esse movimento. Subi numa escada e, devidamente protegido, verifiquei in loco que o apavorado jardineiro havia introduzido um pano embebido em querosene à entrada da colméia de minhas velhas amigas. Retirei o trapo com o devido cuidado, elas vieram sobre mim, mas tudo se passou bem, pois entendia de longa data as reações desses insetos tão necessários. Dizem que essas abelhas produzem ótimo mel e, como não ferroam, imiscuem-se pelos cabelos, tornando-os uma pasta, ou então azucrinam os ouvidos. Alguns as chamam de Abelha Cachorro, mercê do ruído, outros de Jataí… O certo é que todas as abelhas são insetos Hymenopteros, da extensa comunidade Apoidea. Se denominações variam, dependendo das regiões, o certo é que as pequenas abelhas negras em questão, minhas vizinhas tão próximas, são familiares. Não raras vezes, uma delas entra em meu quarto, permanecendo longos momentos. Após, busca o seu habitat original. Essa colméia tão antiga integrou-se à minha história. Partilhamos uma convivência tranqüila. Que continuem seu destino de fidelidade à velha morada!

Kiki

O 'elétrico' do Porto

Porto deu nome ao país Portugal. Na Antologia reunida pelo grande poeta Eugênio de Andrade, Daqui Houve Nome Portugal (1968), há textos a relatarem a trajetória do Porto, desde os primórdios da cidade até a atualidade. Li com entusiasmo, em edição recente, esses textos recolhidos, a apontarem interpretações sobre o Porto através dos séculos. Cidade extraordinariamente linda por tantos aspectos – a austera Sé Catedral, as belas igrejas construídas durante o milênio anterior, monumentos, museus, ruas estreitas, o Douro a serpentear em direção à Foz, realçando as encostas com suas construções históricas -, poder-se-ia afirmar ser ela parte considerável da enciclopédia portuguesa.
Muitas vezes estive no Porto, mas há vinte anos, quando cá estou, fico na bela morada de minha dileta amiga Maria de Lurdes Álvares Ribeiro, à Rua do Passeio Alegre, junto à Foz. Simplesmente Kiki para quem a conhece, das crianças aos adultos, a professora tem uma larga experiência na educação musical, sobretudo entre os miúdos, como carinhosamente são chamados os pequenos aqui em Portugal. Tendo feito estudos pianísticos aprofundados, Kiki encontrou caminhos que a levaram a ter uma pedagogia própria, que realmente aproxima as crianças e os jovens da magia que é a Música. Está sempre atenta a todos os métodos inovadores de ensino para, através do piano, estimular o despertar infanto-juvenil no universo dos sons. No Conservatório de Braga, aplicou seus conhecimentos durante 36 anos.
Viajou o mundo. Em Dili, no Timor, deu o primeiro recital de piano aos timorenses. A uma pergunta, respondeu-me: “senti-me útil à comunidade local”. É este sentir-se útil, integrando-se aos povos, que a levaram aos Açores – durante um ano – e a tantos países da Europa, do leste ao oeste, ao Japão, às Américas, colhendo experiências de vida para enriquecer a prática pedagógica em cidades portuguesas e outras mais. E obtém resultados surpreendentes.

A Ribeira, foto J.E.M

Conversamos muito. Seus dois pianos de cauda estão sempre generosamente abertos para os estudos deste amigo e de tantos outros que a visitam. Faço de sua casa meu porto seguro no Porto, epicentro de meus recitais ao norte de Lisboa. Desta vez, em acréscimo, participo de um júri na Escola Superior de Música e das Artes do Espetáculo do Instituto Politécnico do Porto. A família de Kiki, uma união permanente, de Michu e Manuel, irmã e cunhado que vivem no andar superior ao de minha amiga, aos outros irmãos e às dezenas de sobrinhos e primos. Ao todo, cerca de 500 familiares! Conheço muitos de seu clã e pude comprovar esse convívio intenso. Percorrer a Biblioteca da amiga, conservada desde muitas gerações, a levar-nos às edições originais de obras fundamentais da literatura portuguesa dos séculos XVII e XVIII, é um privilégio. Ir com Kiki, todas as vezes que passo pela cidade, à Ribeira, onde nos espera o típico Tripas à moda do Porto, um prazer especial. Após a prática pianística, por vezes percorremos o belo jardim que separa sua morada do ponto de encontro do Douro com o mar. Seria possível compreender a ação da natureza sobre Kiki. Essa confluência das águas, a provocar, em tantas oportunidades, vagas imensas, teria forjado nela a inquietação, a independência, o destemor, o gosto pelo inusitado. Kiki é uma personagem da história da sociedade portuense. Absolutamente típica, todavia única em sua maneira de entender a vida.