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Narrativa em Torno do Notável Henry Le Boursicauld

À loucura da peregrinação do meu antigo confrade,
Henry Le Boursicaud, quis eu juntar a minha peregrinação,
de esgarafunchar a história da “herética divinização” dos Papas.
Mas não vejam aqui senão uma crítica amiga.
Luís Guerreiro
(dedicatória manuscrita do autor e amigo no exemplar que nos foi enviado)

Luís Guerreiro é um escritor de convicções fortes.  Bem anteriormente, dediquei um post ao instigante romance Oitavo Dia da Criação (29/06/07). O presente, O Peregrino (Brasília, Ser, 2012), vem comprovar a preocupação maior do autor com os rumos da Igreja Católica Apostólica Romana. Para tanto, descreve com acuidade os passos sofridos do missionário redentorista francês, Henry Le Boursicaud (1920- ), em uma caminhada épica empreendida a pé pelo padre aos 75 anos de idade. Escritos de Le Boursicauld durante o trajeto são entremeados pela interpretação de Guerreiro, a dar movimento à narrativa, numa caracterização em que a veracidade pode ter eflúvios da inventiva do escritor, sem, contudo, fugir à certeza de um fato real.

Henry Le Boursicauld é uma figura notável. Padre da Ordem dos Missionários Redentoristas. À certa altura deixou o abrigo certo do convento e partiu para uma aventura que se prolonga aos nossos dias. Percorreu o mundo, a viver nas comunidades mais carentes, não apenas aquelas dos pobres e desvalidos, mas também a integrada pelos oprimidos, pelas populações desprovidas das necessidades básicas. Inicialmente viveria entre milhares de imigrantes portugueses em Champigny,  perto de Paris. Esteve prolongadamente em alguns dos guetos mais desfavorecidos deste planeta, a desenvolver ações comunitárias. Notáveis suas contribuições junto aos abandonados pelo poder público em Fortaleza e entre os catadores de lixo em São Paulo, assim como a prolongada ação junto aos pigmeus, na África, onde ensinou o plantio de inúmeros vegetais, que corroborariam o sobreviver da etnia africana. Seus livros são o resultado desses apelos interiores e de uma vida cristã realmente dignificada pela ação. E tudo teria acontecido quando recebeu um tapa em reunião de párocos, simplesmente por ter dito que não lhe parecia difícil encontrar a casa da paróquia em pequena localidade, pois esta era preferencialmente a melhor.

Luís Guerreiro, que em Oitavo Dia da Criação ratificava sua posição clara relacionada a alguns desvios da Igreja, e o personagem do livro, Deodato, apreendia o sentimento solidário relacionado àqueles oprimidos pelos poderosos, encontra no exemplo de Henry Le Boursicauld o herói vivo, palpável, admirado, mormente pelo fato de ter sido seu antigo confrade redentorista. Constrói uma história a partir de um feito inédito e excepcional empreendido pelo personagem.

Desiludido com a pompa existente em setores da Igreja e com a falta de dedicação plena aos menos favorecidos, Henry Le Boursicauld empreende uma viagem tida por tantos como um ato de loucura, de sonhador, de visionário. Segue a pé de Paris a Roma, a fim de entregar carta de seu punho e cinco livros do teólogo alemão Berhnard Häring ao Papa João Paulo II. Na missiva,  pede com firmeza uma ação maior voltada aos oprimidos e aos pobres segregados. Fá-lo aos 75 anos e de 18 de Junho a 23 de Setembro de 1995 caminha em direção ao Vaticano. Seriam 97 dias em que sequer pediu carona, pois o trajeto teria de ser completado a pé!!! Apenas aos sábados descansava. Quase sempre recebia acolhida para repouso em casas de moradores ou religiosos das pequenas localidades. Em França e na Itália. Transpôs os Alpes! Nas longas e perigosas subidas pelo acostamento das estradas alpinas, receberia convite de motoristas querendo levá-lo, pois sua peregrinação ganhara manchetes. Recusava sistematicamente. Tantos o têm como um Profeta. Creio que Luís Guerreiro soube captar essa vontade férrea de Le Boursicauld. Nessa epopeia, o missionário redentorista se faz – involuntariamente – acompanhar de um jovem alemão forte e alto que se sentiu impelido a segui-lo: “Henry, dou-te três meses da minha vida”. Guerreiro insere os textos fortes do missionário sobre episódios papais, alternando-os com os seus, colega redentorista, descritivos, romanceados. Essa técnica torna leve a interpretação do cotidiano da longa viagem, a possibilitar que as observações duras escritas pelo padre tornem-se referências aguardadas pelo leitor. Dos diálogos entre Jürgen, o jovem, e o velho missionário, Guerreiro sabe caracterizar a intrepidez do sacerdote nascido na Bretanha. Não por vezes há discordâncias entre os dois peregrinos, mas Guerreiro capta nesse “romance histórico” o lado altruístico do germânico companheiro de Henry e a sua admiração pelas características indomáveis de Le Boursicauld.

Nessa determinação, até certo aspecto visionária, a almejar que sua carta pudesse ser lida pelo Papa João Paulo II, reside o cerne do livro. Mostra-se Le Boursicaud obcecado por mudanças na Igreja, que na realidade pouca guarida poderiam ter por parte das autoridades eclesiásticas. Percebe-se, por parte do padre, uma revolta interior pelos desmandos dos papas, desde os primórdios da Igreja. Tece reflexões a respeito da célebre frase contida nos evangelhos “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”. A interpretação, tomada à risca pelos papas, teria sido a responsável por tantas arbitrariedades cometidas por suas ações ao longo da história. Le Boursicaud historia em seus apontamentos o lado trágico e autoritário nessa milenar sucessão de papas. Essa constatação, somada à infalibilidade papal, apenas do Papa, proclamada durante o pontificado de Pio IX no século XIX, à ostentação ainda existente na cúpula da Igreja e à existência de determinado “sistema” elitista arcaico constantiniano (secreto?) a visar ao Poder iriam se chocar com a visão oposta voltada aos abandonados, à miséria, aos oprimidos, razão maior da cruzada apostólica do missionário. Diria que amor sincero e revolta, não ódio, frise-se, fazem-se presentes no transcorrer da obra. Ficaria claro que o amor é a essência na vida do missionário peregrino, mas a revolta estaria a apontar o caminho da denúncia.  Afirmaria Le Boursicauld: “Colossais despesas das viagens do papa pelo mundo endividam as dioceses. Ao mesmo tempo, João Paulo II é obrigado a colar-se aos ricos, por vezes pouco desejáveis. Em Bogotá, antes de sua chegada, retiraram da rua todas as crianças miseráveis, para que ele não as visse, e levantaram anteparas diante dos bairros de lata. O primeiro dos crentes parte dos palácios luxuosos para anunciar a Boa Nova aos pobres! Como se pode compreender isso”? Como afirma Luís Guerreiro, “supostos sucessores de Pedro, houve papas santos, alguns deles mártires. Noutros, Cristo não teria hipotecado a sua confiança”. O padre redentorista bretão teve a fortificá-lo em suas convicções o Abbé Pierre (1912-2007), fundador do Movimento Emaús, motivo maior para que Le Boursicauld fundasse posteriormente a sua comunidade “Emmaüs Liberté”. Influenciou-o e o estimularia posteriormente o ilustre teólogo Bernhard Häring (1912-1998).

A grande decepção de Henry Le Boursicaud, cuja peregrinação durara 97 dias, sempre a andar, e cuja repercussão na mídia antevia bem antecipadamente a sua chegada ao Vaticano, foi a de não ter sido recebido pelo Papa João Paulo II. Entregou sua carta e presentes ao Cardeal Etchegaray. Assim como duas cartas endereçadas ao papa nunca foram respondidas, essa em especial, após essa caminhada épica, também não seria.

O Peregrino é livro polêmico. Li-o com a devida cautela, cônscio da austeridade, probidade e competência teológica do autor e da extraordinária Missão Apostólica de Henry Le Boursicauld, que, às portas de seus 92 anos, foi morar com os mais pobres e oprimidos na favela Vila Velha, em Fortaleza. Ali pretende ficar, até que Deus o receba. Mistérios.

An appreciation of the book “O Peregrino” (The Pilgrim), in which writer Luís Guerreiro recounts, in a mixture of facts and fiction, the epic journey from Paris to Rome undertaken on foot by the Redemptorist Father Henry Le Boursicauld in 1995.

      

 

 

 

Entrevistas Antigas com Serge Nigg

Em arte, o erro afigura-se tão fecundo como os acertos.
É aos ziguezagues que a arte avança.
O que num momento se supunha erro
vem a revelar-se com frequência um manancial de virtualidades.
João José Cochofel

De meu grande amigo António Ferreirinho recebi  em Novembro último quando de tournée por terras lusíadas, Opiniões com data, de João José Cochofel (1919-1982). O conimbricense Cochofel foi poeta, ensaísta, crítico literário e musical muito respeitado em Portugal. Integrou o movimento neorrealista português e foi ativo organizador e colaborador de revistas e periódicos importantes para a vida cultural de Portugal.

Opiniões com data, que integra as obras completas de Cochofel,  estende-se de 1939 a 1954. É possível seguir o desenrolar intelectual do autor no conjunto de seus artigos publicados em Portugal. Mais interessante se torna ao compreendermos a necessidade de Cochofel de interagir bem posteriormente ao preservar os textos originais, mas a fazer comentários analisando a feitura dos escritos. Ferreirinho sabia de meu interesse por tudo o que se refere ao notável compositor e pensador Fernando Lopes-Graça (1906-1994), e João José Cochofel não apenas foi amigo do grande músico,  como autor dos poemas das Cinco canções de “Os dias Íntimos” para canto e piano (1950-1966) do compositor nascido em Tomar.

Estando a ler Opiniões com data homeopaticamente entre tantas outras leituras, torna-se revelador o pensamento inteligente, arguto e profético do autor. Certamente João José Cochofel será citado em posts futuros pelos conceitos que emitiu, sempre com raro interesse. Por ora fica a surpresa ao me deparar com interessante entrevista que Cochofel realizou em Paris em 1951 com o ilustre compositor Serge Nigg (1924-2008), que foi tema de um de meus posts do ano passado (vide Serge Nigg “Captar o Passado, Apreender o Presente, Pressentir o Futuro“, 04/03/2011). O jovem compositor, que teria escrito pela primeira vez em França, no ano de 1946, uma obra onde utilizou a técnica dodecafônica (Variations pour piano et 10 instruments), logo se tornou celebridade que não passaria desapercebida para Fernando Lopes-Graça, que o entrevistou em 1947 (Visita aos Músicos Franceses, Seara Nova, 1948), no período em que Serge Nigg surgia como um estímulo para a vanguarda musical em detrimento da música de ampla audiência, isso logo após a Segunda Grande Guerra. A uma das perguntas de Lopes-Graça sobre o possível coadunar dodecafonismo e a tradição musical francesa, Nigg responde: “Certamente. Não há incompatibilidade entre o dodecafonismo e a tradição musical francesa, antes de mais nada porque não se trata de estética quando se fala de dodecafonia, mas sim de técnica de composição, ao passo que, quando se fala de uma tradição musical (o que é muito vago) tem-se em mente sobretudo o apego a certos conceitos estéticos, frequentemente vazios de sentido”. Pois bem, por volta de 1950 Serge Nigg rompe com o “movimento” que apregoava o dodecafonismo em França. João José Cochofel, ao comentar bem tardiamente outra entrevista de Serge Nigg a ele concedida em Paris no ano de 1951, diz: “Em nome da generosa miragem da arte para todos, Nigg consentiu no maior sacrifício que a um artista é dado fazer, o sacrifício das suas tendências profundas, ao renegar o dodecafonismo” e conclui “De qualquer modo, foi Boulez, seu émulo e opositor, quem triunfou e se tornou conhecido”.

Cochofel, ao procurar Serge Nigg, tinha em mente elucidar várias questões, inclusive a da “ruptura” do compositor com a técnica que passava a ter guarida entre os jovens músicos franceses. Escreve que Nigg começava “a suspeitar da irredutibilidade do esoterismo daquela corrente aos seus ideais humanísticos”. Prossegue Cochofel: “E Nigg acaba realmente por abandonar a ortodoxia dodecafônica, levantando grande celeuma nos meios musicais, que fizeram por ignorar a honestidade e a coragem de que deu provas ao procurar novas formas de expressão quando começava a triunfar, e vencendo uma crise inevitavelmente dolorosa de desilusões e renúncias, mas que a sua consciência lhe impunha”. A uma incisiva pergunta do entrevistador sobre a razão de ter abandonado o dodecafonismo, Serge Nigg, aos 27 anos, responde: “Por este não levar a coisa nenhuma, destruindo o caráter nacional, fazendo uma música de receita, igual em todos os países, nivelando tudo. Há tempos assisti a um concerto de jovens compositores sul-americanos, mas em vez de encontrar o Brasil, encontrei música escrita em Viena de Áustria…”. Em 1965, Cochofel observaria que colocou em Opiniões com Data a entrevista concedida em 1951 por Nigg, apesar de asseverar que se tratava de “ideias mais alheias do que minhas”.  João José Cochofel comenta que “a experiência das duas últimas décadas veio mostrar cruelmente que os experimentalismos eram irreprimíveis e que não se pode travar o desenvolvimento natural da arte…”. Contudo, tem consciência de que deve ser combatida a rotina, mesmo em movimento de vanguarda.

As entrevistas pontuais que Fernando Lopes-Graça (1947) e João José Cochofel (1951) fizeram com Serge Nigg, atestando a adesão e a posterior “rejeição” ao dodecafonismo – fatos que ocorreram bem antes dos 30 anos do compositor – seriam, cinco décadas após, durante o longo depoimento mantido com Gérard Denizeau  (1998-2008) e publicado em 2010 na série Témoignages (nº 3), do Observatoire Musical Français da Université Paris Sorbonne, amplamente ratificadas por Serge Nigg. Vem  demonstrar a profunda coerência do ilustre compositor e pensador francês. Esse substancioso depoimento foi o material temático do post acima mencionado.

Seria possível entender que decênios transcorridos, realizações e vicissitudes advindas, assim como a longa maturação do pensar tivessem provocado em Serge Nigg a necessidade de deixar depoimento definitivo já nos estertores da existência. A coerência do compositor difere bem de determinadas autobiografias em que o passado se torna nebuloso ou, mais grave, fantasioso. É a integridade intelectual do depoente que estaria a comprovar a veracidade dos fatos. Apreendida a premissa, o que fica do memorialista íntegro é a condição de autenticidade, o que o tornará partícipe da História.

No extraordinário depoimento, tema do post sobre ele, Serge Nigg considerava que no crepúsculo da vida o músico terá construído seu mundo abstrato, fiel ao que almejou. Confessa ter sofrido “tentações da fantasia que podem permitir derivações” e que a inspiração deve nortear o compositor. Ao afirmar que o caminho de um criador é a lógica inevitável, considera, contudo, que há tributo a pagar, sendo este  a “solidão”. Não estaria a pensar na longa trajetória e naquele rompimento com o dodecafonismo no início dos anos 50? Que houve marginalização, sabe-se. Todavia, a coerência de Nigg, compondo com a maior competência, sem amarras ideológico-musicais e a confiar na “inspiração”, tornaram-no paradigma para tantos nas décadas que se seguiram. Próximo de seu fim existencial faz a autocrítica de seu desligamento do dodecafonismo após o entusiasmo inicial: “ignorava na época que a ‘repetição’ carregava a ornamentação” referindo-se aos compositores barrocos e clássicos, observando que “Schöenberg, no fim da vida, compreenderia o caráter desumano de seu método”. Afirmaria que, naqueles anos pós-guerra, infortunado o músico que não aderisse às novas tendências. Daí a dimensão incomensurável, com todos os tributos pagos posteriormente, de seu desligamento daquela avassaladora vanguarda, mormente quando estava a ser considerado um expoente da técnica dodecafônica em França. Teriam Lopes-Graça e João José Cochofel entrevistado Nigg não fosse ele referência?

Sob outra égide, Serge Nigg mostra-se avesso à obra aberta, aos modismos, à concessão, à proliferação de jovens compositores: “Quando um Festival especializado anuncia, como exemplo, ’80 criações mundiais’, tem-se frio na espinha”. Alérgico à música eletroacústica, exprime: “Para mim, os sons eletroacústicos são sons mortos, enquanto que nada me parece mais belo que o som do violoncelo, de um oboé ou de um violino… Sempre fui partidário da música instrumental pura, por gosto e temperamento. A ideia da máquina intrusa e da ciência puramente especulativa na música, expressão a mais profunda do gênio humano, é uma coisa que me aterroriza”. Ficaria implícita a ideia de novos caminhos trilhados por Nigg, livres da ortodoxia.

O notável compositor Serge Nigg revisitaria o dodecafonismo, sob outra égide, a partir de 1960, “quando toda aridez, toda sistemática já teriam sido dominadas” segundo Gérard Dénizeau. O autor de obras que se tornaram referenciais tem suas criações executadas por muitos dos mais importantes intérpretes, assim como por orquestras e conjuntos camerísticos vocais de excelência. As entrevistas realizadas nas fronteiras da segunda metade do século XX por dois pensadores fundamentais da música em Portugal apenas ratificam a grandeza de Serge Nigg e sua corajosa coerência, que perduraria através das décadas.

In March 2011 I wrote a post covering the booklet Témoignages – published by the Sorbonne University – of the great French composer Serge Nigg. Now I’ve just read the interviews given by Serge Nigg in 1947 and 1951 to two Portuguese intellectuals: the composer Fernando Lopes-Graça and the poet João José Cochofel. Both interviewed Nigg in two decisive moments of his career. In 1946 Nigg was the first composer in France to write a dodecaphonic work and in 1951 he was already moving away from the twelve-tone technique. Five decades later, the subject would be resumed by Nigg in his Témoignages, where he confirmed his uneasiness with the limitations of the purely abstract technique, proving the consistency of the choices of his youth.

A Síntese no Pensamento de José Paulo Paes

O sapo saltou na sopa
de um sujeito que sem mais papo
deu-lhe um sopapo e gritou: Opa!
Não tomo sopa de sapo!
José Paulo Paes

Tive o privilégio de conviver, durante alguns anos na década de 90, com José Paulo Paes (1926-1998), escritor, crítico, poeta e tradutor. Integrávamos o Conselho Editorial da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, presidido durante certo período  pelo saudoso crítico, jornalista e editor Nilo Scalzo. Era motivo de imenso prazer conversar com José Paulo Paes. Temas que viajavam da literatura às artes eram abordados, e recebi de suas mãos alguns livros autografados. Daquele Conselho fazia parte, entre outras figuras acadêmicas, o ilustre sociólogo, escritor e amigo José de Souza Martins.

Quando da tournée de Novembro último pelas terras portuguesas ganhei, da expressiva poetisa Violeta Figueiredo, livros cuja temática era a do universo lúdico infantil. Alguns poemas serviram como inspiração para que o excelente compositor português Eurico Carrapatoso criasse as Six histoires d’enfants pour amuser un artiste, obras apresentadas nos sete recitais realizados (vide YouTube em gravação ao vivo realizada em Évora). Estava, pois, a colocar na estante pertinente dois livros de Violeta Figueiredo quando encontro Poesia para Crianças, de José Paulo Paes (São Paulo, Giordano, 1996), pequeno e substancioso opúsculo do poeta referente a depoimento proferido na V Jornada Nacional de Literatura em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, em 1993. O amigo comum Cláudio Giordano teve a feliz ideia de publicá-lo.

O texto é delicioso. José Paulo Paes revela-se sensível, competente, lúdico, confidente, amoroso. A síntese da síntese em poucas e expressivas páginas. Ao expressar elementos de sua “estratégia” para atingir o coração e entendimento dos miúdos, o autor demonstra  vocação pela ourivesaria poética. Para José Paulo importa a transmissão de um conceito, mais do que priorizar a feitura da rima e, ela, instaurada, o seu significado transcendente para a compreensão: “a rima, ou seja, a semelhança dos sons finais entre duas palavras sucessivas, obriga o leitor a voltar atrás na leitura. Esta passa então a ser feita não linha após linha, sempre para a frente, como na prosa, e sim num ir e vir entre o que está adiante e o que ficou atrás. Com isso, dezautomatiza-se a leitura e se direciona a atenção para o conjunto de significado do texto, não apenas para a sequência deles. O que é um convite e uma ajuda à memorização. É muito comum as pessoas que gostam de poesia decorarem seus poemas preferidos”.

Casado durante décadas com Dora, José Paulo não teve filhos. Sabia com acuidade incutir na mente de seus dois sobrinhos, quando crianças, conceitos para a reflexão, “brincadeiras verbais”, como dizia. Diante de um muro de cemitério, indagou aos pequeninos: “Sabem o que há aí dentro? Eles faziam que não e eu então explicava: Uma plantação de defuntos”. Essa técnica levava-os a entenderem o “ritual gesto da semeadura”. Da incursão a visar ao aguçamento da mente de uma criança, o poeta partiu para a criação de poemas a elas dedicados, mas nunca perdendo a intenção de provocar o instante do novo, da reflexão “mirim”. José Paulo Paes está sempre a fugir da rotina e o inusitado de sua poesia para os miúdos está nessa difícil missão de buscar interligar a realidade com a fantasia. Pura sedução. Não escreveria o poeta que um dos fundamentos da poesia está inerente  em “mostrar a perene novidade da vida e do mundo” naquilo que ele propõe como “estabelecer uma misteriosa unidade cósmica”?

Entende José Paulo Paes que é mais difícil escrever para crianças, mercê do vocabulário mais restrito e da escolha das referências, compreendendo, contudo, que o prazer dessa criação específica é maior para o poeta.

No substancioso opúsculo, José Paulo Paes insere alguns poemas, explicando a seguir a  proposta, no caso “Vida de Sapo”:

O sapo cai
num buraco
e sai.

Mas noutro buraco
cai.

É um buraco
a vida do sapo.
A vida do sapo
é um buraco

Buraco pra cá.
Buraco pra lá.
Tanto buraco
enche o sapo.

Lê-se que há a intenção do jogo de palavras, ficando oculta a popular expressão “encher o saco”. Portanto, uma brincadeira “sapo” e “saco”. Sob outra égide, não se descarte a grande admiração de Paes por Carlos Drummond de Andrade.

Em outro poema, José Paulo Paes confessa tê-lo escrito a partir de lição apreendida com os pequeninos, simplificar. Metamorfose é um exemplo

Um homem
que costumava achar toda gente estúpida
(menos ele próprio)
acordou certa manhã transformado em burro.
Ficou muito triste e durante três
dias não comeu coisa alguma.
Não achava mais gosto em comida de gente
e tinha vergonha de comer
comida de burro
Mas a fome o acabou forçando
a experimentar capim
que ele achou estranhamente saboroso.
Alguns dias mais tarde, já zurrava alegremente.
Passado um mês
puxava carroça pela rua
como a coisa mais natural do mundo.
E quando, muito tempo depois,
ele acordou de novo
transformado em gente
ficou muito triste
e se achou estúpido.

Em Poesia para Crianças, José Paulo Paes ainda discorre sobre uma de suas mais respeitadas atividades, a tradução. Autodidata, conseguiu, com a ajuda de gramáticas, dicionários e, sobretudo, dedicação, ser um tradutor em vários idiomas sem se expressar verbalmente, como bem afirma: “Gaguejo alguma coisa em inglês, nos restantes, sou pouco mais que mudo”. Contudo, graças à estrutura de um poema, “olhos e ouvidos atentos à sonoridade, à forma, aos matizes de significado das palavras, é que consigo compreendê-lo mais a fundo. A tradução é possivelmente a melhor via de acesso à compreensão crítica da literatura em geral e da poesia em particular”. Confessa que durante décadas chegou a traduzir cerca de cem livros, de ficção, de manuais e tantos mais outros por motivo de ordem econômica. Com amargura observou que nesse longo caminho a remuneração era aviltante, a mesma de um datilógrafo em trabalho menos responsável. Chega a dizer que o tradutor, nessas circunstâncias, é o bóia-fria da inteligência.

Só após a aposentadoria pode realizar  traduções por prazer e bem remuneradas, com direitos autorais. Daí surgiram traduções referenciais de obras de Laurence Sterne, de J.K. Huysmans. Escreve que teve “a temeridade de enfrentar para poder partilhar com o leitor brasileiro a minha descoberta pessoal da poesia de Pietro Aretino, Konstantinos Kavákis, W.H.Auden, William Carlos Williams, Friedrich Hölderlin, Paladas de Alexandria e numerosos poetas gregos deste século antologiados em Poesia moderna da Grécia e Poetas gregos contemporâneos”.

José Paulo Paes é referência. Pouco se fala a respeito desse notável intelectual, aliás como ele bem afirmava em 1996, “nestes tempos de tamanho aviltamento da expressão oral e escrita”. Mais e mais somos invadidos a todo instante, através dos meios televisivos, radiofônicos e impressos, por um “besteirol” inimaginável muitas décadas atrás. O poeta açoriano Hector H. Silva já escrevia em 1992 que os Açores estavam sendo tomados pelo linguajar chulo novelesco procedente do Brasil. Acrescentemos os famigerados programas de auditório, que apenas destroem conceitos éticos e da dignidade, a quantidade de outros tantos, com diferentes intenções profanas ou evangélicas, e o quadro está completo.

Que as mensagens de José Paulo Paes expressas em livros sejam lidas pelas novas gerações para que segmento de nossa história literária não seja esquecida.

On the book Poesia para Crianças (Poetry for Children) written by the poet, writer, literary critic and translator José Paulo Paes (1926-1998), whom I had the privilege of knowing personally in the nineties, when we both were members of the editorial board of the University of São Paulo’s Journal of the Brazilian Studies Institute (Revista do Instituto de Estudos Brasileiros – USP).