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“Subsídios para uma Revisão Musicológica em Villa-Lobos”

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“Eu não tenho tempo para fazer revisão,
tenho muitas ideias para colocar no papel…”

Villa-Lobos (frase recolhida pelo violonista Turíbio Santos)

O gênio nunca erra; as pessoas comuns são quem,
às vezes, têm dificuldade em compreendê-lo.
E o editor facilita essa tarefa,
traduzindo, em caligrafia legível e fiel,
os “palimpsestos” deixados pelo artista criador e que,
depois de corretamente editados,
serão divulgados pelos intérpretes de hoje.

Ricardo Tacuchian

A noção do erro sempre despertou a curiosidade em todas as áreas do conhecimento. Equívocos, falhas, distrações, cansaço, quiçá esgotamentos físico e mental perpetuam-se entre aqueles que criam. Frequentam sub-repticiamente o universo misterioso das ideias, incorporando-se a elas. No ato insondável da criação, o deslize ocorre sem ser notado pelo autor. Pode o erro até ser intencional, como o fio preto que atravessa determinados tapetes persas de extraordinária feitura, a demonstrar que, ao percorrer a obra de arte, mais fica evidente que a perfeição só existiria em Alá.
Na área musical, o erro, a ter tantos sinônimos, perpassa em menor ou maior quantidade as composições. Todos os autores cometeram lapsos ou senões. Se pensarmos em Mozart, que escrevia como respirava, impossível a não detectação de pequenos enganos. Debussy, possivelmente o primeiro compositor a tudo assinalar nos campos da agógica, articulação e dinâmica, visando a interpretação a mais adequada, cometeu seus mínimos equívocos. É humano e esses descuidos devem ser entendidos como irrelevantes no todo. O trabalho mais recente sobre cópias de manuscritos autógrafos para piano do notável compositor português Fernando Lopes-Graça, levou-me a constatar pequenas incorreções, mormente mercê da intrincada mudança de compassos proposta pelo autor e de uma escrita extremamente densa em segmentos precisos. Minimiza a criação? Rigorosamente não. O revisor tem que estar atento e corrigir, sem nada alterar. Se pensarmos na composição interpretada, não há uma só gravação musical “humana” em que mínimos ou não tão mínimos equívocos existam. É só seguir pormenorizadamente uma partitura para verificar essas falhas ou enganos, que tantas vezes se confundem com o próprio ato da interpretação. Valores e tantos outros sinais propostos pelo compositor podem, em determinado momento, não ter a resolução adequada. Entender-se-ia como falta grave? Melhor seria compreender essas “distrações” interpretativas como a fazer parte de respirações diferenciadas. E, felizmente, essa é a salvaguarda do interpretar. Contudo, há extremos nefastos, e esses são detectáveis. Cai-se nesses casos na sombria irresponsabilidade, que sequer merece um pormenor.
Roberto Duarte é pesquisador de mérito. Um de nossos mais importantes maestros, tem como qualidades irretocáveis a grande competência musical e a contenção dos gestos. Debruçou-se, como uma de suas missões de vida, sobre a obra de Villa-Lobos, gravando no leste europeu, com qualidade insofismável, CDs referenciais contendo segmento considerável de suas composições orquestrais. O aprofundamento levou-o a apreender a intimidade da escrita de Villa-Lobos, mormente quando surgiu a possibilidade de edição de partituras de nosso grande compositor. Relação amorosa com a obra de Villa-Lobos e com o ato da criação envolto em névoas, mistério insondável que exala segredos possíveis de serem desvelados.
A leitura de Villa-Lobos errou? – Subsídios para uma revisão musicológica em Villa-Lobos (São Paulo, Algol, 2009), apenas ratifica posicionamento que defendo desde sempre, ou seja, livro sobre música tem de ser escrito por músico competente. Mencionei recentemente que as estantes de nossas livrarias comerciais e bancas de jornais estão inundadas por livros e artigos escritos por amadores, que jamais poderiam responder a um questionamento concernente à intrincada criação musical. O leigo, cada vez mais acentuadamente, mergulha nessa literatura, compilação maquilada extraída de livros outros e, pior, com o acréscimo emanado do livre arbítrio. No caso, pai de todos os malefícios.
Primeiramente tem-se de considerar a seriedade do Maestro Duarte. Suas revisões traduzem aspecto fulcral de sua personalidade. “Revisar não é alterar a ideia do compositor, não é achar que deva ser desta ou daquela maneira”, escreve. Continua: “Revisar é estudar a fundo não só a partitura mas o conjunto da obra do compositor. É limpar aqueles pequenos, porém incômodos lapsos, com o único objectivo de fornecer aos intérpretes e, finalmente, ao público, partituras dignas da grandeza do compositor”. E Roberto Duarte desvenda, sugere teorias quanto ao ato de compor, apresenta provas insofismáveis que o credenciam como pioneiro em uma vertente analítica a ser considerada.
O respeitado regente, ao mencionar que o autor não é o melhor revisor de sua obra, faz-me lembrar o nosso compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931), que, ao escrever a Furio Franceschini, notável organista que estava a revisar a Sonata para órgão do criador de Il Neige !, afirmou igualmente que o pior revisor é o autor e, ele, Oswald, o pior deles. Seria possível entender essas distrações de Villa-Lobos pois, de acordo com suas próprias palavras transcritas por Duarte: “Eu confesso que não me deixo dominar pela meticulosidade. Quando estou trabalhando não me importo que crianças entrem pela casa, liguem o rádio, cantem ou dancem…” Questão de estilo.
Seleciona seis enganos mais comumente presentes na obra orquestral de Villa-Lobos “ ‘erro’ de ritmo; ‘erro’ de nota; ausência de clave; ausência de nome de instrumento; ausência de instrumento(s) nas mudanças de página; problemas de orquestração”. Como modelo, Duarte utilizou-se de obra referencial para orquestra de Villa-Lobos, A Floresta do Amazonas (1957-1958). Disseca esses “deslizes”, que não agem no todo da criação. A minimizar o fato, enumera os milhares de sinais em uma obra, que se expandem da notação às indicações relacionadas aos intentos quanto à interpretação. O número ínfimo de “erros” ou enganos viria corroborar a irrelevância.
O autor considera fundamental o conhecimento das técnicas de um compositor, a fim de que a revisão tenha embasamento sólido: “Villa-Lobos utilizou várias técnicas, desde as escalas tonais tradicionais até uma espécie de atonalismo a seu modo, passando pelas escalas modais, algumas escalas exóticas, escalas por tons e utilizando fartamente os acordes de sétima e nona além dos encadeamentos não ortodoxos. Passeou, não com muita frequência, pelo bi e pelo politonalismo e empregou acordes feitos por superposição de intervalos determinados, principalmente os de quarta e de quinta”.
A criatividade de Villa-Lobos teria sido ilimitada. Roberto Duarte menciona a utilização daquilo que o compositor denominaria “a linha das montanhas”, sistema sui generis empregado pelo compositor na criação de melodias, mormente na obra orquestral. Através de foto de uma montanha, gráficos em escala milimetrada, folha quadriculada e pantógrafo, Villa-Lobos determinava contornos melódicos. Dir-se-ia, uma analogia musical com os picos das montanhas. Roberto Duarte pormenoriza-se igualmente no inusitado instrumental empregado por Villa-Lobos: viololinofone, solovox, tambu-tambi e alguns outros. Apresenta as maneiras diferenciadas propostas pelo compositor para se tocar determinado instrumento. Dá ênfase aos cuidados necessários, nesses casos especiais, durante a revisão.

Processo evidenciado por Roberto Duarte da interação piano-orquestra em Villa-Lobos. Clique para ampliar.

Duarte revela ter sido o piano uma fonte inesgotável para as criações orquestrais, e que inúmeras formulações instrumentais surgiram dessas “fôrmas” pré-construídas no piano e transferidas para a orquestra. Sabe-se que quantidade expressiva de compositores tiveram o piano como laboratório primeiro para a destilação de suas ideias. O autor analisa e vai às profundezas da criação ao elaborar inúmeras ilustrações, onde ficaria evidente o comprometimento de Villa-Lobos com essa passagem do teclado à grande orquestra.
Modestamente, Roberto Duarte, cônscio da imensidão que representa o criador das Bachianas, entende que o trabalho de décadas não está terminado. Há muito por fazer. Contudo, Villa-Lobos Errou? passa doravante a ser livro referencial para todo estudioso que busca apreender parcela da genialidade do grande compositor brasileiro, um dos maiores do século XX em termos mundiais. Um extraordinário e original contributo ao desvelamento do ato de compor em Villa-Lobos. A edição trilíngue e muitíssimo bem cuidada, ricamente ilustrada, enriquece a bibliografia villalobiana. Livro a merecer todos os louvores.

An appreciation of the book Was Villa-Lobos Wrong?, written by the accomplished conductor and musicologist Roberto Duarte, who dedicated part of his life to studying, editing and promoting Villa-Lobos’ works. It is thus with authority that Roberto Duarte analyzes the composer’s creative process, proposing new ways to approach the great composer’s scores. A tribute to Villa-Lobos and, at the same time, a guide for conductors, interpreters and researchers in the future.

Para Facilitar Acessos

Charge de Luca Vitali. Clique para ampliar.

Compreender é rodear, mas também penetrar,
e, quando renunciamos a colocar alguma coisa em um círculo,
há a chance de se chegar ao seu centro, ou seja,
uma outra maneira de tecer explicações.
Tentemos este segundo procedimento,
que nos é mais acessível.

Henri-Fréderic Amiel

Magnus me propõe: “porque não ter no menu do blog um item destinado aos livros que você leu, comentou ou resenhou? Creio que o leitor poderá, através de uma listagem, obter, inclusive, conhecimento maior de suas preferências”. Confesso que hesitei inicialmente. Aliás, é muito difícil ter eu uma decisão imediata sobre qualquer coisa. Questão inalienável de estilo. Mas, após pensar, telefonei ao fiel amigo, a dizer que aceitara a sugestão. Finalizei a lista a partir do primeiro blog, datado de Março de 2007.
A elaboração trouxe-me várias certezas. Primeiramente, a de que há nítida preferência pelo multidirecionamento. Se livros de Música mostram-se em evidência, outros, voltados a diversas áreas, têm-me proporcionado agradável companhia. Romance, poesia, aventura, reflexões frequentaram nesses últimos anos o segmento Literatura do blog. Por vezes pormenorizei-me mais em determinado tema. Atração ou fascínio. Um autor, uma temática precisa, um gênero em especial. Nosso batimento cardíaco não é o mesmo durante o dia, assim também as escolhas podem oscilar. Uma só verdade, a constância, pois a leitura desde tenra idade faz parte de meu respirar.
Durante as décadas da vida acadêmica preferenciei bibliografia mais uniforme. Teses em andamento, orientações e livros concernentes à minha área. Ainda nesse longo período, não deixava de visitar as leituras paralelas. Enriqueciam-me, a partir do olhar diferenciado que delas emanava. Com a chegada da aposentadoria, o horizonte, livre de quaisquer névoas que pudessem ofuscar o descortino da vida restante, mostrou-se translúcido, e a inteira possibilidade do livre arbítrio, do retorno às escolhas literárias antes da Academia, antolharam-se-me como do prazer pleno. Prazer este que se estende de um livro profundo sobre música, sempre presente, à narrativa de um alpinista, a um conto singelo, à poesia que encanta, ou ao mistério da morte traduzido em tantos textos onde a incógnita se faz mestra, mormente nas interpretações que dela apreendem os sábios da região himalaia.
Para uma organização mínima dessa listagem busquei, no final de cada indicação bibliográfica, colocar a data em que a resenha ou comentário foi postado. Refiro-me aos dois. Resenhas, mesmo que bem tardias, preenchem basicamente um post integral, enquanto que comentários de livros são feitos, nada além de um parágrafo. Essa colocação explica a leitura da obra e a lembrança que vem à superfície quando determinado tema leva-me à consideração de conceito pertinente. Daí ter colocado um livro do grande pensador português Agostinho da Silva e um segundo sobre o autor, não resenhados, tampouco comentados como mereceriam, mas sempre citados em inúmeras epígrafes, preferencialmente quando um determinado assunto penetra uma profundidade maior. Visitação constante aos seus ensinamentos. Os deliciosos adágios açorianos, em dois volumes, encantaram-me desde os recitais que realizei nos Açores em 1992. Frequentemente sei que nas lombadas do vasto adagiário encontrarei a epígrafe que corresponde às intenções do texto. Populares, o conteúdo desses tomos presta-se às temáticas mais intrincadas. A menção aos dicionários de minha preferência fez-se necessária, pois continuo a ter certa idiossincrasia por outros, bem mais atualizados, que incluem neologismos que nos cercam, mas que estão distantes da precisão vernacular daqueles que merecem minhas permanentes consultas. Em outro enfoque, a mídia imperativa, a forçar termos de moda, tão logo estes caem em desuso torna rapidamente estiolado o efêmero. Contudo, não deixo de, por vezes, frequentar essas atualidades. Apesar de tê-las sob o olhar através da internet, nem sempre me aprazem.
Conversava com a querida amiga e colega acadêmica Jenny Aisenberg. Dizia-lhe que a liberdade que o blog me proporcionou faz com que a resenha, para mim, necessite da participação viva do autor a quem presto tributo. Entendo que as citações de trechos maiores ou menores de obra estudada propiciam, àqueles que porventura desconhecem o escritor, o conhecimento prévio de excertos, mesmo que selecionados por olhar particularizado. A resenha unicamente voltada à erudição pode extinguir-se na erudição, sobretudo quando ela vem acompanhada de notas de rodapé. Mal acadêmico necessário que, se de um lado esclarece, sob outro ângulo é a ferramenta utilizada na Universidade para a insuspeição e, sob outro mais – tantas vezes a depender de secretas intenções individuais -, traduz a nefasta erudição estereotipada. A presença da obra nessas preciosas citações que seleciono, sem notas pois, corresponde ao caminhar de mãos dadas com o autor homenageado. Diria, sem qualquer empáfia, que a sensação é a do diálogo, ele a jorrar o ensinamento, eu a tentar transmitir o que foi captado. Magnus entenderia que esse olhar em direção à inserção de segmento tem a ver com a minha prática musical, quando o intérprete está perenemente a olhar, a ouvir, a sentir e a tocar o discurso musical. A frase do autor como presença constante.
No menu à direita do blog há, a partir de agora, o item Resenhas e Comentários. O leitor terá, ao nele clicar, a lista por ordem alfabética das obras resenhadas ou comentadas. Sempre haverá a possibilidade de uma busca junto às livrarias físicas ou virtuais, ou até aos alfarrabistas, quando de obras fora de catálogo. Contudo, convido o leitor a escrever-me, via contact do site, se obra difícil de ser encontrada tornar-se porventura inacessível.
Livros continuam a chegar pelas mãos de amigos ou pela minha própria curiosidade. Obras de passado remoto ou mais próximo, que jamais foram por mim visitadas, são a salvaguarda de um debruçar em que a esperança de autores ascendentes pode também ser a nossa. Faz entender que, como observava Miguel Torga, um texto sempre tem precedente, alguém que já pensou aquilo que tentamos traduzir, mesmo que sob outra tonalidade. Inconscientemente, somos parte de uma construção sem fim aparente. Este só chegará quando o homem encontrar sua cadência interior, antítese daquele que não se preocupa com os pósteros, com a leitura, tampouco com os valores humanísticos, mas insiste em seus anseios de ganância que levam à destruição da espécie humana, homeopaticamente. Temos de acreditar, ainda.

The post of this week is a list of all the books that I commented since the beginning of this blog in March 2007, including also those that I have considered for the epigraphs.

“A Nova Ordem Estupidológica”

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… a exuberância dos fenômenos estupidológicos,
a sua extrema variedade,
a riqueza das suas realizações
ou a elegância dos seus refinamentos,
tudo nos faz encontrar na estupidez mais,
muito mais do que uma vacuidade,
uma ausência de inteligência.

Vitor J. Rodrigues

Sentados em uma praça no centro da Évora murada, Idalete Giga e eu tomávamos um café em tarde amena de fins de Maio último, horas antes de meu recital no Convento Nossa Senhora dos Remédios. Da música fomos para a irracionalidade encontrável hoje, em sentido ascendente, na sociedade moderna, onde valores são desprezados. O homem sofre crescentes aviltamentos de toda ordem, lamentáveis chagas rotineiras. Parte pulsante da coletividade está a entender que o ser humano vil não mede esforços no intuito de prevalecer sobre a sociedade. Diariamente convive-se com o descalabro, a mentira oficializada e os tacões, não só de coturnos periódicos, mas de calçados de grife, assim como com a insegurança ostensiva provocada por meliantes rápidos, espertos, insanos, estes a calçarem tênis. Foi quando a amiga e ilustre colega falou-me sobre dois livros do professor universitário e psicólogo clínico Vítor J. Rodrigues, Teoria Geral da Estupidez Humana (Lisboa, Livros Horizonte, 1992) e A Nova Ordem Estupidológica (Lisboa, Livros Horizonte, 1995). Ela entendia-os esgotados. Fomos a uma livraria na cidade alentejana e a funcionária conseguiu achar no almoxarifado os dois últimos exemplares. Idalete ainda tentou, via telemóvel, convidar o professor para o recital, mas este se encontrava em Paris, a participar de reunião científica.
Empregando uma metodologia a fazer certa a presença da “estupidez humana” – onipresente nas duas obras – frente à inteligência até indefesa, Vitor Rodrigues constrói uma teia em que majoritariamente a manifestação do homem passa por formas de estupidez x inteligência de toda ordem: individual, coletiva e nos mais diversos ramos da atividade. A estupidez estaria enraizada em todas as áreas, segundo ele. Contrapõe-se à inteligência sem aspirações ao carreirismo e ao poder. Como afirma o autor, “A estupidez, rainha dos assuntos humanos contemporâneos, faz sentir a sua superioridade confirmando, passo a passo, a incapacidade adaptativa dos inteligentes que, decididamente, continuam a ter grandes problemas sempre que procuram fazer valer a sua característica dominante”. Esses cidadãos teriam diretrizes quanto aos desideratos, mas, mercê da inteligência despojada, não procuram benefícios pessoais e poder. O contrário leva à instauração daquilo que Rodrigues admite como estupidologia. O termo e seus derivados, existentes ou neologismos, frequentam abusivamente as duas obras. Há fixação clara, compulsiva, a não permitir a possibilidade do desvio. Os parágrafos não se esquecem da palavra. Seguir o roteiro parcial dos dois livros permite ao leitor acompanhar e entender o discurso do psicólogo clínico como, até, visionário. Se sob um aspecto dialoga com a inteligência e a estupidez, friso, por ele proposta, sob aspecto outro por vezes realiza a “sinistra apologia” dessa estupidez como realidade absoluta, hélas, sem retorno.
Faz-se necessária pois, neste post, a menção de inúmeros segmentos das obras, a fim de que o leitor capte essa imersão realizada pelo professor em tema polêmico. Entende que a humanidade está frente à decisiva era da estupidez humana. Essa ordem estupidológica tenderia à antropofagia. Para se obter algo na sociedade, a mentalidade estúpida deveria ser a regra. Afirma Vitor J. Rodrigues sobre os inteligentes: “Andam isolados porque ninguém os entende, quando não os põem de quarentena para evitar que alguém chegue a entendê-los. Por sua vez, a obra que deixam é quase sempre deturpada e utilizada para fins que nem afloravam à imaginação de seus autores”.
O psicólogo clínico realiza as suas experiências e as traduz. Caso típico é a interpretação feita pelos vários grupos de indivíduos, previamente selecionados, a respeito da Alegoria da Caverna, do pensador grego Platão. Os resultados para ele são significativos e ajudam, em parte, a construção de seu discurso.
Se o primeiro volume apresenta-se doutrinário, o segundo pormenoriza diversas áreas. A extensão da obra levou-me a escolher três capítulos essenciais e atemporais: A Estupidez Artística, do primeiro volume, O Assalto ao Poder e O Assalto às Universidades, estes, do segundo. Há, contudo, outros “assaltos” que, na essência, têm no vocabulário monotemático do professor – mas a levar à reflexão – o debruçar atento: Religião, Psicologia, Medicina e, a finalizar, A Arma Nuclear da Inteligência.
Vitor Rodrigues aborda em A estupidez Artística, o que considera o “… lado estético da estupidez, sem dúvida uma das suas manifestações simultaneamente mais diáfanas e mais poderosas”. Haveria sempre aqueles que se sobrepõem a outros, não pelo talento real, mas por caminhos estranhos: “Assim, a arte estúpida deve tomar a aparência de busca da beleza inteligente para poder conduzir o Homem ao estreitamento mental”. É cáustico ao afirmar que “… o artista estúpido não tem musa: tem-se a si mesmo enquanto personalidade curta.” Ao se debruçar sobre a música não poupa crítica à sua massificação exacerbada, graças a um tipo de “músico” que visa diretamente à grande aceitação pública. Esse músico estúpido, assim nomeado pelo autor, prende-se a oito preceitos: Exclusão da verdadeira criatividade; Semelhança (“… o artista estúpido se esforça por estar atento aos fenômenos do seu egocentrismo naquilo que eles têm de ressonante em relação às mais baixas paixões susceptíveis de agitar a multidão”); Ritmo; Harmonia (“… mesmo quando pareça harmônica, a música estúpida deverá conservar um caráter de excesso desequilibrante”); Mensagem a (“… apelar sempre para a agressão, a revolta, a depressão, a sexualidade física e o exagero entendidos como finalidades essenciais”); Intervenção vocal (“… alguém capaz de cantar sempre com um tom de voz muito excitado, muito irritado, muito obsceno…”); Sensações físicas (“… mais ou menos ligados à agitação emocional e ao estreitamento mental”); Efeito zumbi (“… toda a música estúpida deve, evidentemente, conduzir a estados de apagamento da inteligência e escurecimento da consciência”). E essa “música” de massa tem como “poeta estúpido” alguém que, ao utilizar palavras-chave, pouco se interessa pela construção das frases, pois o que será vociferado tem como alvo excitar os destinatários, populações catalogadas em várias categorias pelo autor. Não se pode vislumbrar nesses oito itens o quadro de determinados mega shows, nos quais todas as propostas se encaixam à perfeição?

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Em Assalto ao Poder, quarto capítulo de A Nova Ordem Estupidológica, o escritor traça perfil que faz pensar no que se propaga da política nos últimos tempos. Trata-se de radiografia au point. No segmento Pressupostos de base da Ciência Política Estupidológica, o autor menciona sete, entre os quais aquele em que se mede a capacidade do político obter votos, “… maquilhados e, numa boa parte dos casos, transaccionáveis”. No número três, Os estúpidos são donos da Verdade e proprietários da Realidade, comenta “Esta é, sem dúvida, uma das razões pelas quais eles preferem largamente vencer um debate a conquistar uma vitória para a Verdade (seria ridículo curvarem-se dessa maneira perante uma subalterna sua)”. O item A gestão do poder é um jogo: o jogo do poder tem a seguir Quando não podemos vencê-los, é preferível juntarmo-nos a eles, em que o psicólogo clínico traduz essa tendência de se encontrar “… da parte de muitos políticos estúpidos, uma habilidade excepcional para, antes de serem derrotados, se aliarem ao partido, movimento, ideia ou pessoa que iria derrotá-los. Convenhamos que isto é mais saudável do que a opção dos inteligentes que nunca se rendem perante a estupidez das ideias e procedimentos mesmo quando elas têm por si a força dos tempos e das ações eleitorais”. Verifica-se que o professor joga por vezes com a ironia, a justificar essa “era da estupidez”.
No subcapítulo Perfil do Político Estúpido Elegível, considera o autor seis itens aos quais se adequa: flexível; magnético, carismático: “… não esqueçamos: o carisma de um estúpido depende da sua aptidão para mobilizar, galvanizar e encaminhar populações com as armas da estupidez”; esgrimista verbal: “… a relação com a Verdade ou a Realidade não é importante devido aos direitos políticos sobre elas”; bom vendedor; bom líder.
Outro segmento é dedicado à Propaganda Eleitoral, onde encontramos duas menções a sedimentar o discurso: “… a arte do político estúpido assemelha-se, em parte, à do ilusionista: trata-se de fazer as pessoas acreditarem que está a acontecer aquilo que, na realidade, é bem outra coisa.” E continua: “… os únicos objectivos dignos da Nova Ordem Estupidológica são a conquista e a manutenção do poder – pagando por isso, os preços que haja a pagar; ora, nos dias que correm, a inteligência está tão desvalorizada que até sai barato aos políticos sacrificarem os valores dela…”
Nesse capítulo do Poder, aborda a Acção Governativa. Para a perpetuação dos governantes, o autor fundamenta serem necessários: consolidar o poder; convencer o público de que os seus interesses estão a ser objeto de um zelo desvelado; justificar cuidadosamente as decisões tomadas; afastar do poder as pessoas inteligentes: “Além disso, mesmo quando estão dispostos a percorrer os caminhos do acesso ao poder, os inteligentes não estão dispostos a optar pelos atalhos ditados pela estupidez e, com isso, perdem a vez face a estúpidos que, graças a esses atalhos, chegam lá mais depressa”. Sobre a convivência, observa que os políticos “… raramente se mostram tolerantes, colaborantes ou complementares frente a outros políticos – o que seria inteligentemente possível se o objectivo da campanha fosse eleger o melhor e, sobretudo, as melhores ideias governativas face a uma realidade socio-económica e cultural devidamente investigada”. Crítico, comenta: “… não se vence uma eleição com preocupações altruístas e desinteressadas (que levam imediatamente os estúpidos à desconfiança)”. Nesse critério avaliativo, enfatiza: “… um bom comando anti-inteligente na política deve, antes de tudo, assegurar-se do uso dos meios que forem precisos para atingir a finalidade de subir ao poder e ficar lá”. Conclui neste capítulo: “Obviamente, uma das preocupações dominantes consiste em conservar as pessoas inteligentes fora dos partidos”. Neste ano em que as eleições batem à porta, as considerações de Vitor Rodrigues não estariam a ter parentesco com o que se presencia? Não haveria um antropofagismo em toda essa realidade que estamos a viver?
Em post anterior abordei livro de Russel Jacoby (“Os Últimos Intelectuais” – Realidades bem Próximas, 18/03/09), em que o autor tece duras críticas à Universidade. Não distante do discurso proposto por Jacoby, Vitor Rodrigues envereda, sempre a insistir na palavra paradigma de sua exposição, nessa avaliação não desprovida de forte interesse. No capítulo Assalto às Universidades, mostra-se absolutamente cônscio de suas experiências junto à Academia e argumenta que a emergência do que ele nomeia “Comandos Anti-Inteligentes Universitários” estaria a “… desmoralizar ou obstaculizar a actividade dos inteligentes”. Observa que, na Universidade, a inteligência dedicada ao aprofundamento está sempre a correr riscos “… as ideias inteligentes têm-se visto ameaçadas de extinção (e, nalguns casos, têm-se extinto) por não serem capazes de se adaptar ao mundo humano. Pelo contrário, as ideias estúpidas, feitas à imagem e semelhança de uma parte da sociedade humana passada e actual, prosperam e desenvolvem-se em mil variantes”. O psicólogo clínico entenderia que a inteligência provoca a ira daqueles dela não possuidores.
Em subcapítulo, Formas de Governação Universitária, Vitor Rodrigues considera a Ditadura e o Feudalismo intelectuais. Trata-se de um jogo para a obtenção do poder e, este conquistado, atingir-se o controle intelectual dos inteligentes. Quanto ao feudalismo intelectual, o território da Universidade estaria dividido “… em feudos intelectuais (também conhecidos como ‘capelinhas do saber’). O rei, ou reitor, tem grandes dificuldades para assegurar algum tipo de unificação deste território pois cada feudo é muitíssimo independente”. Estaria a referir-se às Unidades e aos Departamentos universitários. Observa que “… esta norma, sobejamente conhecida no feudalismo e assumida por quase todos, é apenas consuetudinária – não está escrita em lado nenhum”.
Metaforicamente, Vitor Rodrigues comenta o que denomina “terrenos tabu universitários”, o que impede a penetração dos inteligentes. Minas intelectuais seriam instaladas, a implicar que “… o transgressor será vítima da explosão da mina – o que, geralmente, implica o estropiamento ou mesmo a morte da sua carreira acadêmica sob o efeito da explosão. Com efeito, uma mina intelectual possui geralmente, no núcleo, um explosivo poderoso – cólera preconceituosa concentrada – encerrado, sob pressão, num invólucro de estreiteza teórica (sem quaisquer aberturas de espírito). Caso exploda, disseminará estilhaços cortantes, sobretudo de tipo administrativo, capazes de reduzir subsídios a nada, retirar privilégios, negar instalações, até mesmo desintegrar contratos. Os estúpidos aprendem desde cedo que a simples referência a certos territórios intelectuais é, também ela, um tabu universitário. Quanto aos inteligentes, a sua imperícia em lidar com essa ordem de subtilezas, bem como a sua impetuosa curiosidade científica, tendem a conduzi-los à perdição…”.
No subcapítulo Modalidades de Assalto às Universidades, o autor observa que as áreas humanas recebem pouco na divisão orçamentária, se comparadas às tecnológicas. Haveria uma minimização do ser humano como tal, considerado até com certo desprezo pelas áreas mais aquinhoadas. Comenta a respeito do carreirismo. Aponta as barreiras que dificultam a ascensão dos mais inteligentes ou dos que, eventualmente capazes, almejam por funções diretivas. Um outro fator seria o acomodamento: “Estar numa Faculdade passa a ser um emprego como os outros, cuja finalidade principal é ‘ganhar o seu’, ou uma carreira onde, claro, alcançar fama, poder e alguma riqueza constituem os principais objetivos”.
Preocupa-se com a quantidade de Congressos, trabalhos apresentados, farto material a servir às carreiras acadêmicas. Aponta dois objetivos básicos: a obtenção de diplomas de presença e a apresentação de trabalhos científicos que pesem no currículo. Observa: ”Quantos mais destes trabalhos obtiverem publicação e quanto menos disserem, melhor será para a causa da estupidez universitária. Por essa razão, muitas das comunicações científicas a que se assiste nas Universidades em todo o lado não visam finalidades de intercâmbio de informações e/ou progresso científico; pelo contrário, ficam fechadas na finalidade de serem apresentadas e de isso poder aparecer escrito num currículo”.
Vitor Rodrigues ao abordar a Inserção activa das Universidades na Sociedade Actual se preocuparia com itens fulcrais: interesses econômicos de instâncias privadas e estaduais, referência às Fundações e Instituições do Governo; competividade desenfreada; ambições máximas; luta pelo poder, incapacidade gerencial na Universidade; outrismo (quer apático quer belicizante) ”, traduzido na perene desconfiança; interesses menores.
Por fim, faz crítica cruenta, a denominar “… mercenários do saber pois, obviamente, estão à venda e recebem dinheiro para travarem as mais diversas guerras intelectuais: a única questão é quem lhes paga, quanto lhes paga e com que paga…”.
Os dois livros são intrigantes. Se as opiniões de Vitor Rodrigues caracterizam-se por extremo rigor frente ao que ele denomina a ascensão crescente da “estupidez humana”, há que se considerar que suas teorias polêmicas levam à reflexão. O que parece evidente é a existência de categoria nada recomendável entre os humanos. Estejamos alertas.