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Como não pensar em Santa Cecília?

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O santo se constrói sobre o homem.
D. Henrique Golland Trindade (Matt Talbot)

Minha fé inquebrantável
espera ainda muito…
muito mais.

Norberto de Moraes Alves (Quintal de Sonhos)

Era uma tarde de primavera em Lisboa neste último Maio. Estava a conversar com minha amiga de tantas décadas, Idalete Giga, em um café no Chiado. A certa altura, já lá não me lembro a razão, o tema abordado relacionou-se aos contos de nossa juventude. A puerilidade de tantos deles, que as ávidas leituras transformavam em maravilhamento. Chegamos à nova geração formada pela internet. Temáticas outras fizeram estiolar determinado gênero de conto. Aquele que acalentou sonhos, a partir de nosso imaginário, permanecia em nossa conversa como tênue luz a ser vislumbrada com afeto. Nem questionamos valores, apenas, nostalgicamente, constatamos fatos. Ao cair da noite deveria dar o primeiro dos dois recitais consagrados à música portuguesa na lendária Academia de Amadores de Música. Nem sei bem como surgiu o nome de Santa Cecília nessa conversa informal. Bastou a lembrança, e Idalete prometeu-me um conto que estava a ser amorosamente germinado em sua mente privilegiada. Lembrei à amiga que mantive sempre sobre meu piano de estudos uma estampa de Santa Cecília que me foi oferecida pelo saudoso D. Henrique Golland Trindade em 1954. O ilustre prelado, arcebispo de Botucatu, era meu padrinho de crisma. Gostaria Idalete que minhas netas sentissem esse clima perdido em histórias outras que não contos de nossa geração. Serenamente o texto chegou, mas apenas alguns dias antes de 22 de Novembro, dia consagrado à Santa Cecília, padroeira da música. Como outros temas armazenados em meu baú mental aguardavam o vir a ser, pois igualmente cronológicos, não foi possível inserí-lo na oportunidade. Sob outra égide, Natal sem música perde um rito de fundamento. Daí ter associado o conto de Santa Cecília à efeméride natalina. Ao frequentador assíduo de meus posts, apresento a singeleza que é o conto de Idalete Giga. Aqueles de minha geração poderão associar, através do texto da amiga, lembranças de infinidade de contos cristãos que povoaram nossa imaginação. E segue o meu voto profundo de paz, a todos os leitores, para essa que é a mais expressiva celebração da cristandade.

O sonho de Santa Cecília

Para o meu querido Amigo José Eduardo

“Roma. Corria o ano 222 da era cristã. As incontáveis loucuras, devassidão e crueldades do imperador Heliogábalo tinham chegado ao fim. Mas a este ser cruel sucedeu outro igualmente cruel e sanguinário – Alexandre Severo. O maior divertimento deste facínora era assistir ao martírio dos cristãos lançados aos tigres e leões no sinistro e malcheiroso circo de Roma. Sempre que os arautos espalhavam pela cidade a notícia do espetáculo preferido do imperador, de todos os lados surgia gente estranha correndo para o mesmo local – o circo. Alguns vestiam túnicas negras e usavam tatuagens diabólicas espalhadas pelo corpo, especialmente na cara e nos braços. Quando o imperador entrava, triunfante, no circo, ia sempre acompanhado pelas suas concubinas e escravas. O circo ficava a abarrotar de povo sedento do sangue de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes que eram devorados brutalmente pelas feras, enquanto o mesmo povo lançava gritos a exigir mais mortes e mais sangue de cristãos.

Cecília era uma jovem romana muito bela que pertencia à nobre família dos Soletem. Vivia na cidade de Roma com seus pais. Era cristã desde a infância e desde muito cedo revelou dons extraordinários. Conseguia ler na memória da Natureza. Via através de tudo o que era opaco. Entrava facilmente noutras dimensões e mundos paralelos. Tinha frequentes visões de Anjos e de outros seres misteriosos que a acompanhavam sempre que se juntava com os seus amigos nas catacumbas da cidade. Aqui rezavam todos, cantando os mais belos hinos e salmos de louvor a Deus, acompanhados com harpas, cítaras e liras. Também recolhiam bens entre todos e depois, na calada da noite, distribuíam-nos pelos mendigos espalhados por toda a cidade. Cecília era a mais forte. Nada temia. Cobria-se com uma túnica esfarrapada para poder passar por mendiga e não se cansava de percorrer as ruas mais sujas e sombrias de Roma, levando alimentos , palavras de carinho e curando as chagas aos mendigos e crianças abandonadas. Quando a noite caía, todos ansiavam por ela. Todos a amavam, mas ninguém sabia donde vinha e quem era esta jovem tão bela que parecia vir do céu. Por isso, uns chamavam-na ‘a deusa misteriosa’ e outros ‘o lírio branco’, por aparecer sempre com uma túnica branca.

Numa noite fria e chuvosa de inverno, quando Cecília regressava das suas caminhadas, os pais esperavam-na, ansiosos. Depois de a saudarem amorosamente, o pai dirigiu-se-lhe, um pouco receoso:
- Cecília, nossa querida filha, tua mãe e eu temos uma surpresa para ti. O nobre soldado Valeriano ama-te muito e deseja desposar-te. Por isso, prometemos preparar o vosso casamento na Primavera, quando os campos começarem a florir.

Cecília estremeceu ao ouvir as palavras do pai, pois já tinha prometido ao seu Anjo Shealiah que se manteria virgem. Porém, não querendo entristecer os pais, embora contrariada, aceitou casar com Valeriano. Casou numa tarde perfumada de Maio. Valeriano não cabia em si de contente. Estava muito feliz por desposar uma jovem tão bela e tão bondosa. No fim da festa, Cecília e Valeriano foram transportados numa pequena liteira até à sua villa situada na via Ápia. Ficaram ambos sentados no jardim da casa, silenciosos e contemplando as flores durante algum tempo. Foi então que Cecília, caindo de joelhos aos pés de Valeriano, falou-lhe de Shealiah:
- O Anjo Shealiah apareceu-me no próprio dia em que nasci, dizendo que vinha de outro Universo, de outra dimensão, mandado por Deus para me proteger da maldade das criaturas humanas.

Valeriano, ao ouvir Cecília, pensou que ela tivesse enlouquecido, pois não compreendia aquela estranha linguagem. Pensou tratar-se de outro homem e quis, de imediato, enfrentá-lo. Mas Cecília tranquilizou-o, dizendo-lhe que Shealiah não tardaria a aparecer a ambos. Antes que a noite descesse, Shealiah surgiu num raio de luz intensíssimo trazendo consigo duas coroas, uma de lírios e outra de rosas. Envolveu os noivos com a sua luz e disse-lhes:
- Cecília, recebe esta coroa de lírios brancos perfumados. E tu, Valeriano, recebe esta coroa de rosas perfumadas. Enquanto permanecerem sobre a vossa cabeça, nunca hão-de murchar e a vossa fé jamais perecerá. Os vossos corações são puros, por isso verão a Deus.

Depois de pronunciar estas palavras, o Anjo desapareceu. Valeriano ficou tão emocionado que caiu, chorando, aos pés de Cecília e converteu-se à fé cristã nessa mesma noite.
Quando Tibúrcio, irmão de Valeriano, soube da sua conversão, quis procurá-lo na sua casa para o humilhar e troçar dele. Antes, porém, de entrar no jardim de Cecília, viu uma luz muito brilhante vinda do céu que o envolveu e o fez parar. Então ouviu uma voz suavíssima que lhe disse:
-Tibúrcio, porque queres humilhar e perseguir o teu irmão? Toma esta coroa de lírios e rosas e vai para junto de Cecília e Valeriano, que te esperam.

Tibúrcio não queria acreditar no que estava a acontecer com ele, mas logo que a luz desapareceu, entrou, já completamente transfigurado, na casa de Cecília. Ao chegar, encontrou Cecília e o irmão, de joelhos, rezando. Abraçou-os com grande ternura, relatando-lhes o seu encontro com a luz que o envolveu e a voz misteriosa que acabara de transfigurá-lo.

Passaram-se alguns dias. A notícia da conversão dos dois irmãos chegou rapidamente aos ouvidos do imperador, que ordenou de imediato que os acorrentassem e os obrigassem a adorar a estátua de Júpiter. Como ambos recusassem, foram presos e decapitados no mesmo dia.
Cecília sabia que o imperador não a pouparia. Por isso, estava pronta para morrer. Acabou por ser presa por ter dado sepultura, no seu jardim, a Valeriano e Tibúrcio, abandonados na prisão onde foram decapitados. Na noite em que foi presa, o carrasco Almáquio, enviado pelo imperador, tentou tirar-lhe a vida, por asfixia, com vapor de água a ferver no Caldarium da sua própria casa. Mas Cecília resistiu a todo este tormento. Por fim, caiu exausta e adormeceu. Foi durante a mesma noite que teve um sonho extraordinário. Viu surgir do céu uma pequenina luz que, pouco a pouco, foi crescendo até se transformar numa lira de cristal. Cecília ouvia sons belíssimos, como se alguém, invisível, estivesse tocando este instrumento que lhe era tão querido, tão familiar e que aprendera a tocar na sua infância. De repente, ouviu pronunciar o seu nome :
- Cecília, Cecília, coração puro, lírio abençoado do céu, eu sou o Mensageiro da Música Divina. Deus transformou-me numa lira de cristal e enviou-me a ti para que me guardes no teu coração e na tua alma. Serás para sempre, a inspiradora dos músicos cristãos.

Quando acordou, Cecília viu diante de si Shealiah segurando a lira que aparecera no seu sonho. Mas a sua visão durou pouco tempo. Começou a ouvir pesados passos e pancadas brutais na porta da sua casa. Era de novo Almáquio e dois guardas, que vinham decapitá-la por ordem do imperador. Cecília ainda resistiu a vários suplícios. Nenhum dos três carrascos conseguiu decapitá-la, apesar dos golpes desferidos. Morreu a cantar o Salmo 91 (Salmo de louvor a Deus que governa o destino dos homens com Sabedoria e Justiça). Quando a ouviram cantar o Salmo, Almáquio e os dois guardas ficaram tão impressionados com a sua coragem e resistência que caíram de joelhos, pedindo-lhe perdão. Cecília ainda levantou a mão para os abençoar e exalou, pouco depois, o último suspiro. Os três homens, já convertidos, choraram junto do seu corpo transfigurado.

No momento da sua morte , passava junto do jardim de Cecília um grupo de crianças que andavam a mendigar pela cidade. Eram as mesmas que Cecília amara e das quais cuidara com tanto carinho. Ao olhar para o céu, as crianças viram três Anjos levando Cecília. O Anjo da Morte segurava-lhe a mão direita. Shealiah sustentava a coroa de lírios brancos sobre a sua cabeça transfigurada e o Anjo Mensageiro da Música segurava a lira que se unia e confundia com o coração de Cecília. Só as crianças puderam ver os Anjos e a alma de Cecília elevando-se suavemente nos céus. Só as crianças puderam ver a sua coroa de lírios e a sua túnica branca esvoaçando, iluminada como um sol. Só as crianças puderam ouvir os sons da lira que o Mensageiro da Música tocava, cantando ao mesmo tempo este hino:

Cecília, coração puro
Lírio do céu perfumado
Tu és o porto seguro
Deste mundo conturbado

Quando o Anjo ficou silencioso, as crianças reconheceram a sua ‘deusa misteriosa’ que agora partia deixando-os sós. Então, começaram a chorar e choraram tanto que os três Anjos vieram consolá-las, dizendo-lhes:
-Não chorem, queridos pequeninos. Cecília não morreu. A sua alma viverá eternamente. As crianças pararam de chorar e para seu grande espanto começaram a ver uma chuva de pequeninas estrelas brilhantes que Cecília lhes mandava dos céus. Ao pousarem suavemente nas suas cabeças, transformaram as crianças nas mais belas flores que ficaram para sempre no jardim de Cecília.

Hoje, quem visitar Roma e for à Igreja onde era a casa de Santa Cecília, se tiver o coração puro sentirá o suave perfume de lírios e de rosas e ouvirá os sons da lira de cristal que ficaram suspensos para todo o sempre na memória invisível, mas real, da Natureza.”

Idalete Giga
17/Novembro/2009

Clique para ouvir “Christus Natus Est”, com o Coro Capela Gregoriana Laus Deo, sob a direção de Idalete Giga.

A Pianista Zhu Xiao-Mei e os Segredos Desvelados

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Meus relacionamento com as pessoas eram puramente
animais, automáticos, maquinais…
Sim, eram de alguma maneira histórias de animais !
Que me compreendam hoje,
pois não me é mais possível contar todo o meu passado filosoficamente,
olhando do alto, com serenidade,
os bons velhos tempos de horror e de absurdos.
Agradeço ao céu ter-me tirado do inferno,
como se fosse o desenho indecifrável da Providência.

György Cziffra

Trabalha-se a argila para se fazer vasos,
mas é do vazio de seu interior
que depende o seu uso.

Lao-Tzé

Quantos não foram os artistas, escritores, intelectuais que viveram as situações as mais dramáticas em campos de concentração ou de “reeducação”. Os regimes dirigidos por títeres não têm clemência, e no intuito de sedimentar ideias totalitárias, tantas vezes proclamadas democráticas, impõem aos cidadãos as maiores agruras. Alexander Soljenítsin (1918-2008) denunciaria as repressões em campos de prisioneiros soviéticos, e o conjunto de sua obra, incluindo-se o Arquipélago Gulag, render-lhe-ia o Prêmio Nobel. Wladyslaw Spilman (1911-2000) escreveria a narrativa Morte de uma Cidade, décadas após reeditada com o título O Pianista. Conta a sua história nos guetos de Varsóvia durante a Segunda Grande Guerra e o seu instinto de sobrevivência. Roman Polansky dirigiria o premiado filme O Pianista a partir do dramático relato. György Cziffra (1921-1994), telúrico e extraordinário pianista húngaro conheceria durante longo período as maiores adversidades e o contato permanente com a morte em campos de prisioneiros nazistas e comunistas, relatando-os em livro (Des Canons et des Fleurs. Paris, Robert Laffont, 1977, 291 págs.). Lilly Krauss, notável pianista austríaca sofreria em campo de concentração nazista. O bailarino Li Cunxin narra também sua história plena de tribulações em Adeus, China – O Último Bailarino de Mao (Brasil, Fundamento, 2007, 400 págs.). Há uma tendência mórbida dos senhores da guerra nessa perseguição às artes, à liberdade de expressão, ao livre pensamento, às comunicações independentes, às ciências ou, paradoxalmente, ao incentivo ao desempenho excepcional de alguns como forma de propaganda política. Assim aconteceu no Terceiro Reich, na União Soviética, na China e em Cuba não apenas para intérpretes e bailarinos de exceção, como para atletas fantásticos. Entretanto nem todos tiveram a mesma sorte e sucumbiram aos horrores, como os músicos levados pelos nazistas ao campo de Terezin, ou os milhões deportados para a Sibéria, ou ainda aqueles destinados ao terrível paredón. Ditadores e seus acólitos estão sempre à espreita. Aguardam apenas a oportunidade. E, hélas, periodicamente ela reaparece. Todo um rancor que parecia extinto ressurge e cidadãos aparentemente normais tornam-se ferozes, a serviço dos títeres. Vítimas da Revolução Cultural na China de Mao Tsé-Tung pouco a pouco vão tendo a coragem de expor sofrimentos incomensuráveis.
Zhu Xiao-Mei é pianista chinesa. Há excepcionalidades em vários aspectos. Escreveu sua saga que vem somar às precedentes mencionadas (La Rivière et son secret. Paris, Robert Laffont, 2007, 330 págs.). Nascida em 1949, pertencia à família considerada de “má origem”, pois burguesa letrada. Já na infância, devido aos infortúnios provocados pelo regime comunista de Mao Tsé-Tung, sua família sofreria dificuldades. Pianista precoce, tem lá seus sucessos quando a estudar no Conservatório de Pequin. Aos 14 anos, já possui base sólida, mas uma brincadeira juvenil leva-a a júri coletivo. Vivia-se o período da terrível Revolução Cultural. As denúncias, estimuladas pelo regime, não perdoavam aqueles que se desviassem do Livro Vermelho de Mao, única leitura possível. Lavagem cerebral provoca uma sua carta em que se arrepende de ser indigna frente a Mao, traidora da Revolução, a entender serem seus pais de “má origem”. Zhu tinha apenas 14 anos! Incorpora a ideologia maoísta e torna-se, sempre temerosa, uma jovem revolucionária. Tem crises não reveladas publicamente, pois entendia que tudo teria de ser feito a seguir preceitos para que a Revolução Cultural vingasse, mas dúvidas quanto aos procedimentos a deixavam perturbada. Assiste a seus mestres – alguns deles idosos – serem humilhados e surrados no pátio do Conservatório pelos jovens da Guarda Vermelha. Entende, nesse turbilhão de incertezas e confusões interiores, que excessos estavam a ser perpetrados. Acusados de terem propagado a música ocidental, de J.S. Bach aos mais modernos, professores perderiam tudo e seriam desterrados para campos de reeducação. Outros suicidaram-se nesse período de desvario absoluto. Todas as partituras do Conservatório foram queimadas, pois traduziam a cultura ocidental decadente e, portanto, distante da classe proletária. Lembrar-se-ia “das execuções sumárias, dos cadáveres sobrepostos no anexo do Conservatório”. Com coragem, Zhu Xiao-Mei observa que houve longo tempo em que acreditou na Revolução, tão grande a pressão exercida. Encaminhada para campos de reeducação, permanece cerca de dez anos longe da família – dispersa em outros campos -, da prática da música e a passar as maiores agruras e humilhações, ainda a acreditar na Revolução. Colegas e outros estudantes partilharam momentos difíceis, onde não faltavam a denúncia coletiva diária e a leitura do Livro Vermelho de Mao, atividades realizadas após dura labuta nos campos agrícolas, quando imundos e fragilizados. Só após essas terríveis sessões o infortunado tinha direito à parca alimentação e à mínima higiene pessoal. E, numa declaração de amor à música, escreve “A Revolução Cultural estava a fim de nos tirar todo o sentido de humanidade e isso não foi possível. No fundo de nós mesmos existia um lampejo de humanidade, esse que os regimes totalitários que subestimam as potencialidades do homem, esquecem sempre, infelizmente para eles. É esse lampejo que a música trouxe de volta”. Comentaria: “Mao percebeu o poder da arte e principalmente da música sobre o povo. Ele sabia que os artistas eram perigosos, questionando sempre o real, querendo sempre mais liberdades. Esse o motivo para os atacar, a razão pela qual deixava sua esposa se apropriar da arte através de seus Yanbangxi. Na verdade, Mao considerava o saber em geral como perigoso: seu obscurantismo organizado, sistemático, extremista é testemunho.”
As vicissitudes sofridas pela pianista levaram-na a vários traumas que a acompanham. No último período em campo de reeducação conseguiu “burlar” incultos guardas e recebeu de sua mãe o seu velho piano da infância. Cordas quebradas eram substituídas por arames e J.S.Bach, Beethoven e outros, no dizer de Xiao-Mei, eram ouvidos pelas autoridades como se fossem música chinesa revolucionária. A ignorância deles, para resignado prazer da pianista, resultaria na possibilidade de estudar. Reiteradas vezes menciona a indecisão e a dúvida como integrantes de seu pensar. Ao sair da China para os Estados Unidos, depois de enormes tribulações, certezas em relação à música antagonizavam-se às dúvidas quanto à sobrevivência. Nesse país trabalhou como doméstica, faxineira em restaurante e mais outras atividades, a habitar em tantas casas de imigrantes que a acolhiam. A fim de obter o green card, casa-se por conveniência. Estuda em Boston, mas seu instinto leva-a a Paris. Obteria mais tarde, após difíceis tramitações, o passaporte francês. Hoje é reconhecida internacionalmente como pianista e professora do Conservatório Superior de Música e Dança de Paris. Seus pais e suas irmãs estão sempre em sua mente, nesses constantes deslocamentos. Retornaria à China mais de uma vez, mas com as salvaguardas da diplomacia internacional.
Quantos não são os momentos em que sente insegurança frente à vida prática? Num outro contexto, em muitas oportunidades comenta com ênfase que apenas a música livrou-a do naufrágio absoluto. O livro tem como epicentro repertorial as Variações Goldberg de J.S. Bach. A grande revelação. No entender de Zhu Xiao-Mei, trata-se da maior criação para teclado. Percorre o mundo a interpretá-la, entre tantas obras do repertório consagrado. Tão grande a empatia da artista frente à monumental composição, que se torna dignificante lê-la descrever emocionalmente da Ária às variações. Pormenoriza-se na última, Quodlibet e na reprise da Ária, quando Bach finaliza a obra. Dir-se-ia que Xiao-Mei percorre seu próprio caminho ideal, sem máculas ao descrever as Goldberg-Variationen. No Youtube-vídeos pode-se ouvir a grande criação do Kantor interpretada pela pianista chinesa. A partir da Ária, apresentada de maneira singular, pois imbuída da maior reflexão, capta-se parcela da profunda identidade de Zhu Xiao-Mei com as Goldberg… e com a vida. O gestual da pianista é econômico. Observa, a partir de conto chinês a respeito de um pintor e sua obra, a fim de exemplificar a inocuidade do gesto exagerado ao interpretar uma composição: “…ele pintou sobre o solo uma serpente de um realismo tal que o réptil parecia vivo. Uma pessoa ao passar pela rua, pisou na pintura e começou a gritar: ‘fui picado pela cobra!’ Os transeuntes se aproximaram para ver o que acontecera. Todos também pisaram exclamando: ‘Jamais vimos uma serpente tão bem pintada’! Logo, o povo conheceu a criação do artista. A fim de torná-la mais bela, o pintor colocou patas na cobra, mas ao perceberem a serpente assim configurada, os cidadãos disseram: ‘Que animal ridículo’! E o pintor caiu no esquecimento”. Em outra imagem significativa, a sugerir a introspecção frente à composição: “Para se ver o fundo de um lago, é necessário que a superfície da água esteja lisa e calma. Mais ela é tranquila, mais transparente é o fundo”.
A leitura de La Rivière et ses Secrets, ao revelar a perene insatistação da artista frente à perfeição e ao gestual inócuo refletido pelos holofotes, vem apresentar a essência essencial do que deveria ser entendido por interpretação sincera. Escreve: “Sinto-me incapaz de atingir a perfeição que eu sonho. Como tantos outros intérpretes, estou impregnada por essa impotência. Como Richter, que no final da vida diria ‘Eu não me amo’. A sabedoria seria certamente reconhecer que a perfeição não existe. Os chineses entendem bem esse axioma, quando introduzem um defeito num bordado ou na caligrafia, considerando que o defeito tornará a obra mais bela ainda. Os iranianos fazem o mesmo em seus tapetes para testemunharem que apenas Deus é perfeito”.
Zhu Xiao-Mei lega-nos um testemunho de fidelidade à música, sem jamais traí-la. Seu livro merece ser lido. O conteúdo de La Rivière et son Secret faz melhor compreender a força criativa da artista, a lutar no desespero, mas na confiança, contra a bestialidade humana. A obra foi traduzida para o português: O Rio e o seu Segredo (Guerra & Paz).

In this post I give my view of the book “La Rivière et Son Secret”, the amazing and true story of the Chinese pianist Zhu Xiao-Mei. We follow her as a young girl in China, her efforts to go on with her piano practice during the Cultural Revolution, the years in a working camp. In 1979 she managed to leave China for the US and today lives in Paris. Now internationally acclaimed, she is an example of a strong female character who never gave up her dream.

Horizontes Abertos às Gerações

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Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.

Eugénio de Andrade

Desde Março de 2007, rememorar o passado tem preenchido posts. Faz parte da existência olhar o presente, vislumbrar passos a serem dados, mas também revisitar mentalmente caminhos trilhados. O regresso às lembranças registradas e às leituras que permaneceram apenas dimensiona a apreensão do todo de uma vida. Somos forjados nesse gigantesco acúmulo que, ao final da trajetória, deverá resultar na interação completa dos tempos de maneira harmoniosa, ou demonstrar que certas sendas levaram a impasses, dependendo de nossa atitude frente à vida, ou até do imponderável.
A geração a que pertenço cresceu sob égides desconhecidas ou difíceis de serem entendidas pelas que a sucederam. No quesito leitura, a formação dos pais pode ter sido determinante à qualidade dos livros. Se interessados, sabiam como entusiasmar os filhos nessa mágica viagem que os volumes proporcionam. Não havia distrações ditadas pela tecnologia em veloz aceleração, o que permitia ao jovem concentração maior nas poucas alternativas existentes. E o livro preponderava.
Estou a me lembrar das coleções que ganhei de meus pais, mercê da evolução pianística paulatina a causar guarida no coração dos dois. Serviam de estímulo aos progressos alcançados pelo adolescente. Sabiam qual orientação dar, não se esquecendo contudo de preferências individuais de cada filho. Foi assim que recebi O Mundo Pitoresco em nove volumes, que me abriu a janela geográfica do planeta (vide Leituras sobre o Himalaia (I) – Origens do Fascínio, 07/12/07), Os Doze Trabalhos de Hércules de Monteiro Lobato em doze fascículos e, nessa ampla visão enciclopédica, o Thesouro da Juventude em 18 substanciosos compêndios (Estados Unidos da América do Norte, The Colonial Press. Inc., s.d. Distribuído no Brasil pela W.M.Jackson, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, 5.904 págs.). À Introdução, o insigne Clóvis Bevilacqua escreve: “ É, portanto, o Thesouro da Juventude uma biblioteca apurada, escolhida e condensada, onde se acham as noções essenciais das ciências, os conhecimentos de utilidade geral, as artes e a moral, e que resume e substitui uma dispendiosa e vasta, que muito poucos podem adquirir, e menor número ainda consegue ler”.

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A obra é realmente um tesouro. Atendia às mais variadas áreas do conhecimento, a possibilitar, inclusive, a precoce escolha de uma profissão pelo adolescente que frequentava a leitura dos compêndios ricamente encadernados. Cada um tratava harmoniosamente de várias categorias, prioritariamente denominadas livros. A fim de não se tornar cansativo, cada seção não se exauria de uma só vez, mas era intermediada por todas as outras. Dessa maneira, o retorno a segmento já apresentado pressupunha a visita progressiva a todos os outros “livros”, ou o encontro mais adiante com a categoria de interesse naquele momento. Estruturava-se a divisão nos seguintes compartimentos: O Livro da Terra, O Livro da Natureza, O Livro da Nossa Vida, Os Livros do Velho e do Novo Mundo, Cousas que Devemos Saber, O Livro dos “Porquês”, Homens e Mulheres Célebres, O Livro dos Contos, Cousas que Podemos Fazer, O Livro das Bellas Acções, O Livro da Poesia, Os Livros Famosos e O Livro das Licções Attrahentes. Todos os segmentos apresentavam-se em doses homeopáticas, distribuídos pelos 18 compêndios. Se as poesias escolhidas mantinham-se quase sempre na íntegra, o mesmo não acontecia com os Livros Famosos ou o dos Contos, apresentados resumidamente, mas a estimular o jovem leitor ao conhecimento da obra na sua abrangência. Nos títulos O Livro da Terra, O Livro da Natureza e O Livro da Nossa Vida, deparávamo-nos não apenas com o universo e seus mistérios, assim também com todas as implicações da origem, formação e sedimentação do planeta – mares, rios, águas subterrâneas, minérios, fauna, flora. O Thesouro… aguçava o conhecimento da história e da geografia através dos Livros do Velho e do Novo Mundo – apresentados separadamente. Exemplos dignificantes ficavam reservados aos Livro das Bellas Acções e Homens e Mulheres Célebres. Muitas das atitudes perante à vida não teriam sido influenciadas por exemplos representativos? Nos segmentos: O Livro das Licções Attrahentes, O Livro dos “Porquês” e Cousas que Podemos Fazer, aprendemos lições teóricas e práticas que serviriam para a vida. Estou a me lembrar que, nesse último compartimento, minha mãe disputava a leitura quando algo referia-se às prendas domésticas.
O ilustre economista Roberto Macedo escreveria uma sensível crônica com o título O “Thesouro da Juventude”, publicada em O Estado de São Paulo (30/12/1999, pg.2), a relembrar os efeitos duradouros que a obra teve sobre sua formação humanística. Comenta “Seja por interesse ou porque na época não havia muitas alternativas, particularmente as audiovisuais que hoje tanto atraem a juventude, devorei quase todos esses livros e devo muito a eles”. Creio que para todos aqueles que tiveram o grande privilégio de contar com essa extraordinária coletânea, lendo-a preferencialmente, marcas indeléveis permaneceram, mercê da diversidade das áreas abordadas em textos claros, objetivos, sintéticos, mas sempre a provocar o aprendiz da leitura.

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Minhas filhas ainda chegaram a consultar os tomos, que estavam a conhecer outra geração. Entretando, a coleção não resistiu à geração das netas, pois a grafia e fatos tantos que perderam a atualidade desviaram suas atenções para as tecnologias virtuais em evidência. Possivelmente as conexões cerebrais dessa novíssima geração, voltada aos contextos multidisciplinares e suas cargas em constante mutação, provoquem uma outra apreensão do mundo, de tudo o que nos cerca. Muitos dos contos “pueris” do Thesouro da Juventude, lidos hoje para os miúdos, deixam até de ser compreendidos. Todavia, os temas que ficaram congelados perante o caminhar diário da humanidade tornam-se motivo de nostálgica alegria para aqueles que conviveram com a coleção. Mencionemos dois: “ O aeroplano moderno, capaz de desenvolver uma velocidade de 300 kilômetros à hora”, ou “Podemos affirmar desde já que é impossível para um carro ordinário marchar sobre um só rail, porque as suas rodas estão collocadas d’um lado e d’outro, duas a duas ou quatro a quatro, nas duas extremidades de cada carruagem, precisando pois de dois rails para se apoiarem”. Conceituações hoje “ingênuas”, mas que ajudaram gerações a entender transições que se processariam com o desenrolar do tempo.
Conservei intacto o meu Thesouro e é sempre com carinho que observo esses velhos tomos repetidamente visitados durante minha formação. Foi em momento de descontração que consultei-o e a idéia germinou. Lombadas amareladas pelo passar das décadas, afagadas pelas mãos do adolescente que eu fui, mas que não abalaram sua estrutura, tampouco apagaram as inscrições douradas. Enciclopédia envelhecida, mas a revelar que houve carinho a protegê-la. Como a obra redigida data de meados dos anos 30, os episódios da história, comprovadamente “atuais” do período, proporcionam-me, ao revisitá-los, prazer especial. Transmitir aos meus leitores esse afeto faz-me relembrar o passado, que abriu as portas para o desvelar do grande enigma que é a existência. A depender de nossa intenções, podemos, apesar de tantas distorções, entendê-la como maravilhamento.