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Dificuldades em Pensar Transições

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Mesmo na certeza
de sermos iguais
perante a morte,
não é menos certo
que não somos iguais
defronte a morte.

Joan Reventós i Carner

O pensar a morte sempre despertou as mais variadas interpretações, a depender das religiões ou até das divagações não precisamente espirituais. Temor, resignação, paciência, ansiedade, compaixão, fé, revolta, todos são valores que podem aflorar nos momentos derradeiros para quem parte e para os que ficam em torno daquele ser humano prestes ao desenlace. São absolutamente naturais quaisquer das reações, e quase todos já presenciaram entes queridos partirem para a outra margem.
A possibilidade de se pensar em outras vidas, renascimentos infindáveis ou “categorias” do post mortem é objeto de livros sagrados das mais diversas religiões ou seitas e alimenta a imaginação dos humanos. Como se preparar para a morte? O que se passaria na verdade na linha demarcatória? Mistérios que acompanham a humanidade desde os mais remotos tempos. Como viver a vida a pensar no destino final, ou transitório, segundo os budistas tibetanos?
Anteriormente já comentáramos o ótimo livro de poemas de Joan Reventós i Carner Os Anjos não Sabem Velar os Mortos (post publicado aos 06/12/08). No final de um de seus mais expressivos poemas escreve: “É a razão desde o parto./É correr pela vida,/ Carregando sempre a morte.”
Tinha conhecimento de O Livro Tibetano do Viver e do Morrer de Sogyal Rinpoche (São Paulo, Talento-Palas Athena, 2008, 530 pgs.). Meu diletíssimo amigo Álvaro Guimarães, poucos meses antes de sua partida (vide Álvaro Guimarães – In Memoriam, 04/07/09) escreveu-me a dizer que recebera de uma amiga o precioso livro e que a sua leitura fazia-o melhor entender a difícil passagem que se aproximava. Adquiri a obra que se tornou não apenas meu livro de cabeceira, como motivo para troca de e-mails e telefonemas com Álvaro a respeito dessa possibilidade do vir a ser. Poucos dias após a sua morte, a dedicada esposa, Katrijn Friant, escrevia que ele passara para a outra margem. Tenho a mais absoluta convicção que a obra de Sogyal Rinpoche ajudou-o nessa complexa transição. Tendo finalizado a leitura nesses últimos dias, aspectos fulcrais que podem ajudar todo ser humano merecem ser difundidos, mais do que conteúdos doutrinários, pois sou admirador do pensamento budista-tibetano, mas leigo na matéria.
Abordar O Livro Tibetano do Viver e do Morrer pressupõe a vontade de aprofundar-se no tema, mesmo para o leitor não iniciado. Sogyal Rinpoche interpreta para os leigos o célebre Livro Tibetano dos Mortos, publicado em 1927 e acessível àqueles com conhecimento mais avançado da prática budista originária da região himalaia. Sogyal Rinpoche é mestre conceituado, discípulo que foi de dois iluminados tibetanos, Jamyang Khyentse Chökyl Lodrö (1896-1959) e Dilgo Khyentse Rinpoche (1910-1991), este último abordado em post bem anterior (Leituras sobre o Himalaia – II – Reflexão, Arte, Transcendência, Realidade, 14/12/07). Especializado na meditação budista, Sogyal Rinpoche percorre o mundo a difundir os conceitos da religião, a oferecer cursos nos quais, entre outros temas, a transição vida-morte e o preparar moribundos para a passagem são constantes. Frequenta hospitais, analisa depoimentos de especialistas e experiências daqueles prestes a morrer. A eliminação da carga carmática e a incessante procura do ser humano no desiderato de se chegar à compaixão tornam-se constantes na obra de Sogyal Rinpoche. Ensinamentos a partir da visão budista tibetana, frise-se.
Vida e morte têm outro sentido na mentalidade dos religiosos dessa região. No Tibete, como assevera o autor, as experiências pessoais de ensinamentos apreendidos da natureza essencial, original e mais profunda da mente não tendem a ser popularizados. Pressionado por alunos e amigos do Ocidente buscou difundi-los em seus cursos de maneira até certo ponto assimilável para um não iniciado. Afirma “A natureza da mente só pode ser apresentada por alguém que a tenha realizado por inteiro, e que traga consigo a bênção e a experiência da linhagem”. Diria que se trata de um longo aprendizado, difícil de ser compreendido por quem não penetre a fundo na prática e no desenvolvimento de técnica espiritual exegética. “A contemplação profunda da mensagem secreta da impermanencia – aquilo que de fato está além da impermanência e da morte – leva diretamente ao coração dos antigos e poderosos ensinamentos dos tibetanos: a introdução à essencial ‘natureza da mente’. A realização da natureza da mente, que pode ser chamada de nossa essência mais profunda, aquela que todos nós buscamos, é a chave para a compreensão da vida e da morte”, considera Sogyal Rinpoche. O autor, numa visão ampla da espiritualidade, em vários contextos referentes ao viver e ao morrer não deixa de citar preceitos do cristianismo. Se o Cristo é mencionado várias vezes, assim também São Francisco de Assis, Thomas Merton e outros mais. Poder-se-ia considerar que não há radicalismo no livro, mas um discorrer sereno das profundas convicções budistas do autor frente à complexidade vida-morte.
Toda uma tradição que remonta há milênios faz com que a vida e a morte se fundam numa só compreensão durante a permanência física na terra. Forte convicção de renascimentos infindos, de cargas cármicas a determinar essas novas vidas, a crença em uma transição denominada bardo, mas com conotações outras de grande profundidade e complexidade. Sogyal Rinpoche observa “Bardo é uma palavra tibetana que quer dizer simplesmente ‘transição’, ou um intervalo entre o encerramento de uma situação e início de outra. Bar significa ‘entre duas coisas’, e do é ‘suspenso’, ou ‘lançado’ “. Contudo, o leitor não deve se iludir, pois a compreensão do Bardo é para iniciados, devido à sua profunda abrangência. Considere-se que para o budista tibetano as cargas carmáticas, os estados de serenidade ou angústia frente ao desenlace e até a postura física nos momentos que precedem a morte têm influência na maior ou menor permanência nessa transição morte-renascimento. Em outro contexto, mas tão absolutamente próximo, os versos mencionados de Reventós i Carner estariam a indicar a essência da existência de um budista tibetano.
Ratifico minha condição de leigo nesses temas tão significativos. Entretanto, alguns aspectos fulcrais contidos em O Livro Tibetano do Viver e do Morrer estarão a servir doravante como possíveis acúmulos à minha condição de católico: a coragem de apoiar, sem restrições, aquele em condição terminal – como ocorreu nos meses que precederam a morte de Álvaro – e buscar entender naturalmente esse nosso caminho de finitude, sem ansiedade ou temor.
A experiência do autor levou-o a trazer ao Ocidente práticas tibetanas, como o simples toque de mão, um carinho para aquele que vai morrer. Usar igualmente a técnica de obter do moribundo, através de palavras de reconforto, a possibilidade da reconciliação com aqueles que ficam e que até as horas ou instantes que precedem o falecimento com ele mantinham discórdia; assim como estimulá-lo na medida do possível, a imaginar fatos, paisagens, cores ou pensamentos que transmitam a paz. Para Sogyal Rinpoche, a morte física em situação de desespero, desalento absoluto ou rancor somente propiciará bardos tormentosos. Narra experiências daqueles que morrem na solidão extrema. Recorre à compaixão como elemento essencial e mesmo que não se conheça aquele que está para partir, deve-se tentar essas práticas de alívio. Considere-se que há sempre, à maneira de um leitmotiv, a constância dos renascimentos. Muitas dessas práticas budistas tibetanas são aplicadas diferentemente no Ocidente, mas visando também minimizar os difíceis momentos que antecedem o desenlace. Contudo, entre nós, há, para aqueles que ficam, uma percepção mais dramática do vazio deixado pelo que partiu. Possivelmente, menor resignação.
Um outro tema, muito controverso, é a eutanásia. Há conceituações budistas tibetanas flexíveis quanto ao ato da eliminação. A depender dos contextos, decisões consensuais determinariam atitudes que suprimiriam sofrimentos para quem parte e para os que permanecem. O suicídio, em contrapartida, é entendido como decisão a levar o infortunado ao bardo pleno de negatividade.
O Livro Tibetano do Viver e do Morrer deve ser entendido como leitura preparatória. Budistas ou não podem retirar da competente obra de Sogyal Rinpoche ensinamentos que os ajudem a melhor aceitar a passagem inexorável. A leitura que empreendi só foi possível pela experiência trágica que dileto amigo atravessava. Contudo, ajudou-me a compreender mais satisfatoriamente a transição vida-morte.

This post is an account of my reading of “The Tibetan Book of Living and Dying”, written by the spiritual master Sogyal Rinpoche. A beautiful book, in which the Tibetan wisdom tries to teach us all – regardless of religion or nationality – how to transform suffering into peace. It is a guide for a dying person and also for the living, since death is the ultimate experience that awaits us.

Categoria Perenemente Revisitada

Wilhelm Kempff (1895-1991), ilustre pianista alemão. Clique para ampliar.

Nunca percebera semelhante ressonância ao piano.
Bach escreveu nesse segmento um cantochão para tenor,
enquanto que a melodia
apresenta-se enquadrada por alertas colcheias
tocadas pela mão esquerda
e por filigrana prateada de notas mais breves ainda,
tocadas pela mão direita.
Acreditei estar ouvindo uma trindade sonora,
um órgão do futuro.

Wilhelm Kempff
(adolescente, ao ouvir Ferrucio Busoni
interpretar transcrição ao piano.)

Quando uma obra musical sofre adaptação para outro instrumento ou conjunto deles, chama-se essa transferência de transcrição. Poder-se-ia considerar a tradução literária como equivalente à transcrição musical. A prática é bem antiga e compositores do passado dela se utilizaram para transcrever obras originalmente escritas para determinada configuração, adaptando-as a outras. A terminologia fronteiriça ainda acoberta termos como arranjo, adaptação, versão, a depender do contexto. São famosas as transcrições de J.S. Bach (1685-1750) de obras de Antonio Vivaldi (1678-1741). Jean-Philippe Rameau (1683-1764) transcreveria para cravo segmentos de sua ópera-ballet Les Indes Galantes. Tantos outros exemplos evidenciam a prática rotineira, que atravessaria os séculos. As realizadas por Franz Liszt (1811-1886) das obras originais de J.S.Bach, Paganini, Wagner, Schubert, Beethoven (Sinfonias), apresentando-as em público, ou as transcritas por muitos de seus coetâneos bem atestam a popularidade dessa categoria de linguagem musical. Bem mais tarde, Ferrucio Busoni (1866-1924) transcreveria para piano obras de Bach compostas para órgão, assim como os expressivos corais do compositor alemão. Tornar-se-ia célebre a transcrição para orquestra que Maurice Ravel (1875-1937) empreenderia da famosa criação de Moussorgsky (1839-1881) Quadros de uma Exposição, original para piano. Após a aceitação dessa versão muito divulgada, compositores, entre eles Dmitri Shostakovich (1906-1975) e Francisco Mignone (1897-1986), orquestrariam igualmente a magistral criação de Moussorgsky. Enfim, são infindáveis os exemplos que chegam até a atualidade.
A história da humanidade evidencia sempre fluxos e contrafluxos. Faz parte das aspirações do homem fazer emergir teorias e práticas de conduta, relegar para plano secundário ou mesmo tentar suprimir o que estava estabelecido imediatamente antes. Acreditam os novéis emergentes que a eliminação do passado recente propulsiona caminhos definitivos. Assim acontece em todas as áreas, sendo que nem mesmo a religião escapa e, nas inúmeras existentes, há permanentemente tendências ou seitas interpretando diferentemente textos primitivos. Num sentido mais drástico, toda a revolução tende a eliminar regime anterior. Se a transcrição teve ampla guarida no romantismo, seria contudo mal vista pelos puristas de meados do século XX, que a consideravam, inclusive, uma corruptela do original. Houve até períodos de recuo, quando compositores hesitavam mais acentuadamente em transcrever obras com as quais mantinham afinidade.
Voltando-se ao século XIX, Liszt ao realizar monumentais versões pianísticas das sinfonias de Beethoven, ou segmentos das óperas de Wagner, buscava retirar do piano todas as suas potencialidades polifônicas. Num período em que o instrumento passa a reinar, e suas possibilidades timbrísticas e ampla sonoridade já causavam impacto devido inclusive à revolução industrial, que propiciaria chapas de metal resistentes às grandes tensões das cordas, o quadro mostrar-se-ia delineado. O autor das célebres Rapsódias Húngaras como exemplo, perceberia essa transição e uniria desde logo sua extrema competência pianística a serviço da busca sonora abrangente. Piano transformado em orquestra.
O piano será doravante o instrumento ideal para a transcrição, mercê da sua evolução em curso que lhe permitia possibilidades inimagináveis antes. Os compositores do século XIX e pianistas até meados do século XX familiarizar-se-iam com as características inéditas do instrumento. Como se não bastassem os extraordinários recursos do piano, a virtuosidade como meio de sedimentar intérpretes que se consagrariam até pelos excessos de “malabarismos” pianísticos, e a aura romântica do sonho e da expressividade como veículo à emoção levariam naturalmente a maior número de transcrições. Sergei Rachmaninoff (1873-1943), compositor e notável pianista, apreciava realizar arranjos ou versões apresentados em seus concertos. O mesmo fazia o extrordinário pianista russo radicado nos Estados Unidos, Vladimir Horowitz (1903-1989), ao fulgurar em pirotécnicas transcrições de obras de Georges Bizet, J.P. Souza e, inclusive, criando versão “dificultada” dos Quadros de uma Exposição , de Moussorgsky.
Transcrições, arranjos, versões de obras, mormente de Bach, eleito naturalmente paradigma para essa categoria de linguagem musical, frequentemente povoaram o ideário de compositores e pianistas. Se o Kantor foi propagador da transcrição, seria ele também um dos mais visados em termos de versões de suas obras realizadas por tantos compositores de qualidade diversa. Houve mesmo modismo quanto a transcrever Bach para piano, uma das características românticas, a propiciar a possibilidade da eclosão da virtuosidade para alguns, ou o pleno recolhimento para outros, ou até a fusão das duas expectativas para o público. A obra vasta de qualidade para órgão, assim como para coral despertaria por parte de instrumentistas essa curiosidade na busca de adaptações pianísticas, mas geralmente no trato das mais divulgadas. A eterna necessidade de agradar ouvidos de público ávido pelo já conhecido.
Entre tantos que transcreveram obras de J.S. Bach, três mereceriam igualmente destaque: Wilhelm Kempff, Myra Hess e Alexander Siloti. Dame Myra Hess (1890-1965) foi uma das grandes pianistas do século passado. Nascida na Inglaterra, notabilizou-se sobremaneira nas interpretações de D. Scarlatti, Mozart, Beethoven, Schumann. Possivelmente a mais conhecida transcrição do célebre coral Jesus bleibet meine Freude, (Jesus Alegria dos Homens) da cantata nº 147 de J.S. Bach, tenha sido a da ilustre intérprete. Tantos outros revisitaram o coral, mas a versão da pianista traduz a síntese de procedimentos, sem qualquer ênfase a mais. O célebre pianista e professor russo Alexander Siloti (1863-1945) realizou transcrições de obras de vários autores. Aquelas dedicadas aos Prelúdios para órgão do Kantor tiveram enorme guarida nas fronteiras da metade do século XX e inúmeros intérpretes gravaram o Prelúdio para órgão em sol menor.

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A ligação de Wilhelm Kempff (1895-1991) com J.S. Bach é atávica. Seu pai foi organista, seus familiares músicos. Cristão de fé intensa, desde miúdo Kempff conviveu com o universo bachiano em seus aspectos essenciais voltados ao culto religioso. Ainda criança, ficaria indelével o encontro mágico que teve com o grande músico do período, Ferrucio Busoni, pianista, compositor e pensador que realizaria revisões e transcrições de obras do Kantor. Do notável mestre italiano, o pequeno Wilhelm que fora com seu pai a fim de tocar e dele receber sábios conselhos, ouviria: “Você percebe, ‘nosso’ órgão (referindo-se ao piano) tem somente um teclado, mas na verdade tem muitos. Sou mesmo herético ao pretender que a maioria dos prelúdios e corais de Bach se exprimem melhor sobre nosso piano atual que sobre o órgão, bem mais possante e maciço para essas jóias musicais”. E Kempff comenta em suas memórias (Cette Note Grave – Les Années d’Apprentissage d’un Musicien, Paris, Plon,1955): “E suas mãos voavam sobre o teclado, a fazer ressoar o Prelúdio do coral ‘Regosijai-vos todos, irmãos cristãos’. Quando o mestre terminou, só consegui inclinar a cabeça, em completo silêncio”. O pai de Wilhelm, ao término da execução desse coral transcrito para o piano por Busoni, afirmaria: “Nunca ouvi Bach ao órgão como hoje ao piano. Se houvesse um dia mais homens dessa estirpe, os simples virtuosos e os autômatos do piano desapareceriam por completo”.
A tradição que levaria o excelso pianista Wilhelm Kempff a se notabilizar na interpretação de obras de J.S. Bach, Beethoven, Schubert e Liszt, fê-lo um dos sensíveis compositores a transcrever corais do Kantor. Um dos mais expressivos, Wachet auf, ruft uns die Stimme (Despertai, as Vozes Ordenam), adquire na transcrição de Kempff a aura da inefabilidade.
Felizmente, pouco a pouco pianistas voltaram a interpretar transcrições de mérito. Traduzem essas versões período fundamental da trajetória dos gêneros musicais e merecem, com toda a justiça, a revisitação. Enriquecem o repertório.

Clique nos links abaixo para ouvir as transcrições de obras de J.S. Bach, com J.E.M. ao piano. Gravações realizadas em Müllem, Bélgica.
Bach-Hess: Jesus Alegria dos Homens
Bach-Kempff: Prelúdio-Coral “Wachet auf, ruft uns die Stimme”
Bach-Siloti: Prelúdio para Órgão em Sol menor

Traditionally transcription is the musical counterpart of literary translation. It prevailed particularly during the Romantic period. Wilhelm Kempff, the renowned German pianist and composer of the XXth century, prepared a number of Bach transcriptions and wrote a captivating book on his own early years as a music student. In the book he describes how he listened in fascination to the great Italian pianist Ferruccio Busoni playing his piano transcription of a piece by J.S.Bach originally written for organ.

Infinitesimais Sonoridades Fronteiriças

Desenho a lápis. Maria Fernanda, 2009. Clique para ampliar.

Chaque fleur s’évapore ainsi qu’un encensoir…
Charles Baudelaire

Um dos grandes segredos da interpretação é saber lidar com a dinâmica (do grego dynamiké), termo utilizado na música para determinar as oscilações da intensidade sonora, da máxima à mínima. A música denominada clássica, erudita ou de concerto convive com essa maleabilidade no tratamento das intensidades. Saliente-se que o domínio absoluto desses opostos é de rara dificuldade. Em 1961, estudava em Paris e, ao visitar a insigne professora Nadia Boulanger (1887-1979), uma das mais importantes mestras francesas do século XX, toquei emocionado várias obras para ela. Após, durante os preciosos momentos em que passei em sua residência, recebi conselhos sobre interpretação que permaneceram como normas. No quesito dinâmica, jamais me esquecerei de seu conceito. Para ela, o instrumentista que soubesse utilizar toda a extensa gama, que vai dos sons basicamente inaudíveis ao volume mais acentuado, estaria a dominar parte dos segredos da interpretação, pois a grande maioria permanece, ao lidar com a dinâmica, entre uma intermediação, não chegando aos limites que se fariam necessários. Dias depois, recebi encorajadora carta de Nadia Boulanger, doada recentemente à Fundação que leva seu nome, em Paris.
Os limites extremos do som sempre despertaram interesse. Na música erudita tradicional há essas fronteiras que são precisas e que atendem, inclusive, à percepção auditiva do homem. Baixa, média e alta intensidades obedecem a critérios interpretativos que deveriam ser sempre seletivos. Ao longo dos anos ficou-me o axioma da ilustre personalidade musical francesa, especialmente quando iniciei estudos para a apresentação da integral para piano de Claude Debussy, que se deu pela primeira vez em 1980. O compositor francês é a representação maior dos sons infinitesimais, pois 80% de suas composições encontram-se nas baixas e baixíssimas intensidades (p e pp, piano e pianíssimo no léxico musical). Se for considerada a terminologia utilizada por Debussy no desiderato de exprimir a constante presença das baixas intensidades em sua obra, ter-se-á a poética a fazer fronteira com o silêncio. Essa divisão entre o nada e sonoridades quase inaudíveis, assim como a situação contrária a levar ao silêncio, é insistentemente assinalada pelo autor, que dá as senhas precisas para a interpretação. Dir-se-ia que há nesses casos verdadeira volatilização sonora, analogia com as fragrâncias, Les sons et les parfums tournent dans l’air du soir, como escreve Baudelaire em verso apreendido por Debussy. Ingredientes simbolistas estariam a penetrar nesses termos expressivos sempre que o limite extremo sonoro voltado aos pianíssimos estimulasse a sensibilidade do compositor. Dir-se-ia que expressões como en se perdant, en retenant et en s’effaçant, encore plus lent et plus lointain, morendo jusqu’à la fin, très éffacé contêm essência desse encantamento pelo quase inaudível. No subcapítulo Le Presque-Rien: L’Air et le Vent, do terceiro volume da trilogia sobre o músico francês Debussy et le mystère le l’instant (Paris, Plon,1976), Vladimir Jankélévich observa, ao abordar essa penetração abissal: “É no instante em que a eternidade e a inexistência, a aparição e o desaparecimento, o positivo e o negativo coincidem, pois a música de Debussy é a arte do infinitesimal”. O autor apreende, a partir de metáforas, a problemática das intensidades em Debussy, assim como o universo das longas quedas buscando sons em baixas intensidades, ou, desde logo, o caminho em direção à luz, quando ascensões sonoras se fazem presentes. O leitor terá mais informações das obras sobre música do grande filófofo francês ao acessar meu texto incluído no site (vide Vladimir Jankélévitch e os Opostos Sonoros em Harmonia, no item Essays).

Gaby Dupont, amiga de Debussy durante anos. Foto Pierre Louÿs, circa 1895. Clique para ampliar.

Neblina, buée irisée ; a noite e seus mistérios; a lua em percepção única, Et la Lune descent sur le Temple qui fut (E a Lua desce sobre um Templo que Existiu); a água a permear a criação, desde as grandes ondas até aquela imóvel e estagnada; a neve e a chuva; o vento tenebroso ou rotineiro; reflexos; e tantas outras representações da natureza seriam parte essencial da respiração em Debussy. Toda essa mutabilidade perceptível aos sentidos no corpo de uma mulher seria traduzida pelos cabelos em permanente transformação. Longos, a seduzirem e a provocar encantamento. Têm eles essa fraterna ligação com a instabilidade da natureza. Imprecisos, rebelam-se contra a fixação. Em Pélleas et Mélisande, é ela que inebria Pélleas no terceiro ato, com seus longos cabelos; quando de La fille aux cheveux de lin, Debussy sugere; em La Chevelure, a partir de poema de Pierre Loüys: Cette nuit, j’ai révé. J’avais ta chevelure autour de mon cou. J’avais tes cheveux comme un collier noir autour de ma nuque et sur ma poitrine. / Je les caressais, et c’étaint les miens; et nous étions liés pour toujours ainsi, par la même chevelure… E o inefável dos cabelos integra o universo das imagens do compositor. Sons e quadros intangíveis, mas a serem buscados na essência pelo intérprete e pelo ouvinte. Jankélévich escreve: “entre o nada e ele há justamente a diferença desse quase, que é uma diferença infinita: a presença quase-ausente é fugaz, mas presente”. Nesse sonoro em que reinam as baixas intensidades, os cabelos e toda a sensualidade e pureza, paradoxo amalgamado, traduziriam essência essencial do pensar de Debussy. Camille Soulla acrescenta o objeto indispensável: “…o pente a modificar, ao ser manuseado, o mutante edifício chamado penteado”.
Essas observações vêm a propósito do não-dito, do não-composto, do não-pensado. O universo simbolista, do qual Debussy é o representante excelso, não teria apreendido o infinitesimal do infinitesimal, captado por uma miúda em sala de aula. Sim, há o “quase” silêncio, irmão gêmeo do “quase” inaudível, pois pertencentes à mesma intenção. Ao fazer parte de banca examinadora de um dos mais originais trabalhos acadêmicos que analisei em minha vida intramuros (Pedro Paulo Salles. Gênese da Notação Musical na Criança. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FEUSP, 1996, pág. 149), deparei-me com algo rigorosamente inédito e extraordinário, pois vindo de uma menina em tenra idade. Escreve Pedro Paulo Salles, competente e criativo professor, binômio cada vez mais raro a ser atribuído a um docente: “Certa ocasião, uma menina de sete anos entrou na sala de aula e disse: ‘Pedro, eu tenho um som! Mas preciso do máximo de silêncio.’ As outras dezesseis crianças e eu fizemos, então, um silêncio sepulcral, não se ouvia um nada de coisa alguma. Construído esse microcosmo de silêncios, cúpula para ressonâncias, a menina de longos cabelos castanhos retirou, lenta e cuidadosamente de sua mochila, uma escova de cabelos: a situação era para pasmos e suspensões. Então, de ouvidos (e olhos) arregalados e de respiração suspensa, pudemos perceber a lenta, leve e repetida ‘respiração’ do escovar. Mímica: mínima música. Diante de nós: intensidade (presque-rien), duração (cabelos longos; som longo), timbre (fricção), densidade (os fios da chevelure) e mistério. Cabelos tangidos em movimentos precisos, gestos sem gravidade regendo intensidades, desembaraçando significações. Formado em grande parte por silêncios, o escovar é quase um som conceitual e evoca as levíssimas brumas de Debussy e as filigranas de Webern”. Qual não teria sido a reação do autor de Sirènes se tivesse conhecimento desse ineditismo? Ao ler o texto à minha filha Maria Fernanda, dias após apresentou-me a materialização do fato singular. O pente como símbolo da evaporação sonora, sem mácula, a não deixar vestígios.

Clique aqui para ouvir excerto do 3o Quadro da Boîte à Joujoux, de Claude Debussy, com J.E.M. ao piano. “Un pâtre qui n’est pas d’ici joue du chalumeau dans le lointain. Lent et mélancolique.”

A few comments on sound and silence in the works of Claude Debussy, and a seven-year old girl’s original approach to the subject.