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Lembrá-lo Eternamente

Desenho a lápis. Carlos Oswald (1882-1971). Clique para ampliar.

E não me chamem de Mestre
sou apenas aprendiz
daquilo que me é o mundo
e do que sendo me diz

Agostinho da Silva

Professor é alguém que ajuda os outros a aprender;
Mestre é, sobretudo, aquele que ajuda os outros a “desaprender”:
a desaprender conceitos errados de vida, de verdade, de sabedoria, de Amor…

José Flórido

Tenho o maior apreço pela etimologia da palavra mestre. Vem o termo do latim magister. A designação de mestre era uma referência extraordinária àqueles que mereciam ostentar o título, mesmo que simbólico. No coletivo, tem-se Mestres Espirituais, da Pintura, da Música, da Ourivesaria. Em França, o termo maître, seja ele aplicado, como exemplos, a um grande músico ou a um especialista em culinária, tem sua carga competente. Ainda hoje, particularizado em tantas funções, Mestre do desenho, do teclado, de obras, de carpintaria. Qual a razão? Pelo fato de que se tem alguém a ensinar ciência, arte ou qualquer outro ofício. Seria o mestre a figura fulcral em sua especialidade, aquele a dominar o seu métier no sentido amplo. Não por outro motivo, a chave-mestra designa aquela que abre todas as portas. Em qualquer atividade, as portas da mente serão abertas quando influências de mestres competentes tiverem sido assimiladas, filtradas e até dimensionadas.
As gerações atuais pouco a pouco esquecem-se de honrar os verdadeiros mestres. Ao perguntar sobre a relação com os mestres a muitos colegas e alunos, nem sempre há a recordação precisa dos ensinamentos recebidos, mormente se foram inúmeros a ensinar e, tantas vezes, em salas coletivas. Ficam vagas lembranças, mas quando alguns mencionam com respeito determinado mestre, tem-se a fixação. Mensagens foram assimiladas. Num aspecto outro, vive-se a era em que superficialidade e interesse têm mais peso do que ensinamentos que penetrem inteiramente no de profundis. Torna-se necessário, para aferições curriculares, a quantidade de cursos realizados. Questionários não solicitam o que foi efetivamente aprendido. Sob outra égide, acentuam-se cursos realizados via internet. Telões apresentam um professor transmitindo para uma câmera o que deve ser passado. Um dileto amigo, que frequentemente visita a China, disse-me que essa prática atinge, inclusive, as classes de ensino de piano, pois naquele país há cerca de 30 milhões de praticantes! O que esperar de geração formada sem elos para a amarra de uma cadeia? A realidade tem sido cruel frente ao verdadeiro significado de mestre. Se mestres existem no Ocidente em todas as áreas, não estão a ser devorados pelo Leviatã da globalização?
O mestre autêntico é aquele que aprende todos os dias e, assim sendo, permanece sempre um aprendiz, o maior deles. Se ele tem essa consciência, fruto de mundo interior singular, certamente não terá empáfia, e os holofotes, se houver, serão entendidos apenas como luzes que precisam de uma tomada de eletricidade para que se acendam e não como meta final. Seu objetivo maior, o culto à qualidade exemplar. O mestre responsável entende como dádiva o que assimilou de outros mestres, não se achando acima de seus ascendentes, mesmo que os supere. Há nele, sempre, a compreensão quanto aos passos do discípulo, em qual estágio estiver, e felicidade ao ver horizontes mais extensos que o seu, se este o ultrapassa na trajetória. Difere visceralmente do pseudo-mestre, cuja intenção é tornar o aluno um eterno dependente. Ponderaria que são poucos os mestres autênticos que permanecem perenemente no pensamento de um discípulo autêntico, pois o amálgama se dá de mente para mente, e nem sempre a transmissão encontra campos propícios. Na acepção, evita delegar seu dever àqueles ainda não preparados para o mister, mas está sempre disposto a guiá-los. Pode ter “candidatos” a mestre bem próximos, mas permanece inteiro no ensino, diante dos aprendizes. Sente-se merecedor. Verdadeira missão.
Hodiernamente no Ocidente, mormente na vida acadêmica, mestre é títulação inicial, preferenciando a Academia os subsequentes, como doutor e outros mais. Há quase que o olhar benevolente daqueles que se encontram acima na carreira universitária para o que se tornou mestre. Isso é fato. Banalizou-se a palavra, extinguindo-se-lhe a força intrínseca, espiritual e a essência essencial, pois legiões obtêm o título de mestre anualmente. Paradoxalmente, muitos daqueles que concluem o mestrado, motivados pela necessidade acadêmica, já o são de fato pela experiência. Nesses casos, o papel apenas indicaria a “oficialização” da Academia para possível ascensão na carreira. Contudo, em muitas universidades públicas brasileiras o mestrado não serve sequer para que esse recém-titulado concorra a uma vaga acadêmica quando concurso é aberto. Menos mal que o título fique restrito intramuros, a permanecer, para a grande maioria, a palavra com seu real e abrangente significado fora da Academia. Destruiu a universidade a magia do termo. Não seria a minimização da palavra mestre, no caso, um desvirtuamento terminológico?
O tema surgiu a propósito de sub-capítulo de O Livro Tibetano do Viver e do Morrer de Sogyal Rinpoche (São Paulo, Talento-Palas Athena, 2008, 11º edição, 530 págs.). A reverência, amor mesmo, respeito, admiração que se depreende da leitura da bela apologia levou-me a considerar a posição que um autêntico mestre exerce sobre nós. Um mestre budista é muitas vezes um ser iluminado.
Escreve Sogyal Rinpoche: “No nível mais profundo e mais elevado, o mestre e o discípulo não são nem podem ser em caso algum separados, porque a tarefa do mestre é nos ensinar a receber, sem obscurecimento de qualquer tipo, a mensagem clara de nosso próprio mestre interior, e levar-nos a perceber a contínua presença desse mestre máximo dentro de nós”. Aplicado à categoria dos mestres do budismo, a analogia com aquilo que deveríamos entender por mestre no Ocidente pode ser aventada. Quem cultua o mestre permanente entende a sua importância fundamental, principalmente quando, ao ensinamento na área, soma-se a compreensão da cultura humanística como um todo. Num sentido amplo, o mestre permanecerá como um farol. A cada flash de luz, como em noites sombrias no mar, lições aprendidas permanecerão pela existência afora, consubstanciando mensagens que são passadas às nova gerações pelo agora discípulo mestre.
Ficaria implícito que reverência seria sinal de gratidão por parte do aluno que soube assimilar as palavras do mestre, mais intensamente gravadas na mente do discípulo se houver abrangência por parte do magister. Competência e sensibilidade do mestre, receptividade e gratidão por parte do aluno. O ser grato ao mestre é uma consequência? É-o, mesmo que com gradações, no cerne do relacionamento entre quem transmite e aquele que absorve; é-o, se considerarmos a metáfora, proposta por Sogyal Rinpoche, de que o discípulo é aquele que jamais viu seu próprio rosto, mas que só dele tomou conhecimento quando o mestre apresentou-lhe um espelho capaz de revelar traços apenas imaginados. Mestres cultuados e discípulos a entenderem a continuidade do pensar não seriam formas de se atenuar a crescente vaga de desinteresse, desrespeito e irresponsabilidade existente no triste panorama que vemos diariamente nos noticiários? Demole-se pouco a pouco a relação elevada que deveria existir. O homem a caminho do esquecimento das tradições. Contudo, não podemos deixar de acreditar, e os exemplos vivos da perfeita harmonia mestre-aluno representam a luz que ainda não se apagou.
Se, ao longo destes quase dois anos e meio, posts têm sido publicados ininterruptamente, em muitos deles meus saudosos mestres foram e serão lembrados. A trajetória se tornou mais harmoniosa, mercê da dádiva de com eles poder ter apreendido ensinamentos. No turbilhão do viver, a tentativa de compreensão do mistério da vida passa inexoravelmente pelo culto àqueles que nos guiaram. A partir deste, há a possibilidade de entendermos partícula mínima, infinitesimal da existência e colaborar, como um grão de areia, na edificação de um mundo melhor.

A reflection on the qualities that make a good teacher, a master in the true sense of the word. Unfortunately, universities in the West do not understand the real meaning of the word with its spiritual implications. The new generations often show little or no reverence for their masters. Only Oriental religions and the great artistic movements of the West are aware of the traditional values that dictate the master-disciple bond.

A Intensidade a Tornar-se Pulsação

Desenho de Luca Vitali, após a leitura do presente post. 2009. Clique para ampliar.

Quand la foi s’éteint c’est Dieu qui meurt
et qui se montre désormais inutile.

Antoine de Saint-Exupéry

Márcia é amiga muito querida. Escreveu-me que em uma palestra encontrou professora da USP por quem nutro profunda amizade, mas com quem não tenho contato há muito tempo. Nossa cidade descomunalmente difícil. Márcia comenta sobre a colega uspiana: “Ficou absolutamente surpresa, aliás, quando contei sobre sua chegada na corrida de São Silvestre. Depois de alguns minutos, contudo, refletiu e disse que você era capaz de fazer qualquer coisa a que se propusesse…”. Confesso ter achado graça no e-mail da amiga. Mas, como ocorre habitualmente, logo após fiquei a pensar sobre o assunto. O que nos leva a enfrentar desafios, vencê-los ou não, mas nunca desistir por desânimo ou receio de ver uma obra complexa não chegar a termo? Meu saudoso pai tinha algumas normas de conduta. Conceitos sobre disciplina, perseverança, entusiasmo, concentração foram, ao longo de nossas formações, insistentemente repetidos. Creio que parcela desses ensinamentos ficou gravada. O homem tendendo à síntese, devido às décadas acumuladas, encontra no amálgama das captações o seu norte, o traço que identifica o seu caminhar pela vida em direção harmoniosa ao seu término, ou recomeço, representado pela morte. As palavras da colega permaneceram gravadas à espera de um motivo para eclodirem em texto semanal. Meses após encontrei Laerte, que não via há umas boas duas décadas. Casualmente nos reconhecemos quando fui às compras na feira-livre do Campo Belo. Estava o ex-colega de escola de passagem, a visitar filhos e netos. Marcamos de imediato um café nas cercanias e, junto às recordações que se fazem necessárias nessas oportunidades, disse-me ele acessar meu blog com certa regularidade, graças a um companheiro de trabalho.
Tem acompanhado de longe a trajetória do amigo. A certa altura, perguntou-me: “há alguma norma ou explicação para o fervor?” Entenderia Laerte que o longo caminho tenha sido resultado do fervor. Não apenas considerei perspicaz a questão como, no que lhe disse naqueles breves momentos, ficaria plantada a semente da reflexão. Os amigos possibilitaram a germinação do tema para o presente post.

>Antoine de Saint-Exupéry. Clique para ampliar.

Vieram-me ensinamentos contidos em Citadelle, de Saint-Exupéry, sobre o fervor, uma das palavras-chave na construção de seu pensar. Não obstante a existência de conceituações diversas para o termo, referimo-nos ao fervor da convicção nobre, conditio sine qua non para se alcançar algo que almejamos. Sem ele, toda a realização apresentará uma falha que seja, a determinar que faltou a chama a ratificar a identidade de um feito, por pequeno que possa parecer. É o fervor que faz emergir a condição para que objetivo seja alcançado, que o torna real, harmonioso. Através dele, o trajeto, mesmo difícil, torna-se meta amorosa.
Fervor inequívoco, a ser entendido como espiritual, artístico, profissional, tem pujança a não corromper a palavra. Para os que vivem a intensidade da fé, fervor é sinônimo inalienável, convicção profunda a não permitir subterfúgios. Fervor não pode ser confundido com ganância, existente em todos os segmentos da atividade humana. Nessa categoria, denominada por Sogyal Rinpoche como aquela de “fantasmas famintos”, encontra-se o desejo do poder, o amealhar fortuna pela fortuna e todos os vícios decorrentes da compulsão pelo dinheiro, aparência do crescimento interior. Fervor não é ambição, mas flama que impulsiona a criação, o espírito. Nos longos voos noturnos, Saint-Exupéry era movido pelo fervor, a estender princípios de fraternidade, solidariedade e justiça à humanidade toda. Voz nas alturas, mas pregação tantas vezes não ouvida em outro deserto – não aquele por tantas vezes sobrevoado pelo autor -, o da esterilidade do sentir, pois o homem continua a perpetrar as mesmas distorções de sempre. Felizmente, a mensagem de Saint-Exupéry é atemporal e remete-nos a conceitos que podem ser encontrados através da história, sob égide outra, nos denominados livros sagrados. Na acepção, entendidos por poucos.
Fervor independe do talento. Se este existe, evidenciará a vontade férrea que frutifica e permanece. Todavia, fervor não é sinônimo de talento e a ausência deste deve expor resultado menor, mas não desprovido de empenho. Saint-Exupéry considera que “o grande escultor nasce do húmus dos maus escultores. Servem-lhe de degrau e são eles que o elevam”. E na concepção de Império que domina Citadelle: “…se você salva somente os grandes escultores, ficará privado dos grandes escultores”. Mas, há salvaguarda: “ O fervor da dança exige que todos dancem, mesmo aqueles que dançam mal. A não ser assim, deixa de haver fervor e passa a haver apenas academia petrificada e espetáculo sem significação”. Continua Saint-Exupéry: “Não invente um império onde tudo seja perfeito. O bom gosto é virtude de guardião de museu. Se você despreza o mal gosto, não terá nem pintura, nem dança, nem palácio, nem jardins. O trabalho da terra, que não é propriamente assético, causar-lhe-á repugnância. Dele você ficará privado, mercê do seu vazio desejo de perfeição. Invente um império onde simplesmente tudo seja fervoroso”.
Saint-Exupéry explica-nos a impermanência do fervor. Impossível manter a chama fervorosa noite e dia: “Aqueles que desfalecem e tencionam fazer crer que estiveram a agir sem interrupção, mentem. Mente o sentinela das muralhas que dia e noite proclama o seu amor pela cidade. Contudo, ele prefere a sopa”. Esse fervor que persiste é cantado, mas pode ser trocado ou interrompido pelo cotidiano, sempre negado pelos que professam a presença dessa vontade férrea. Poetas, amantes, viajantes e até santos não seriam avessos a essas interrupções. “Mente o santo que confessa dia e noite contemplar Deus. Às vezes, Ele o abandona à semelhança do mar. E ei-lo mais seco do que uma praia de seixos”. As obras de artista em qualquer das áreas não estariam sujeitas, num outro contexto, à ineroxabilidade de as entendermos realizadas com maior ou menor fervor? Não necessariamente, mas todos os que permaneceram pela qualidade nem sempre atingiram em seus trabalhos o patamar da obra-prima. Falta de inspiração, de fervor? A impermanência na perfeição também atinge os grandes criadores.
Sob outro aspecto, o fervor que permanece, intermediado por tantas outras circunstâncias, lembra o que pensava o compositor russo Alexandre Scriabine. Sentado em um café frente a lago suíço, escreveria, ao ver uma carruagem passar que o grande Eu existia no ato de compor, enquanto o pequeno eu estava atuante a contemplar a carruagem e a tomar chá. Grande Eu do fervor, da criação, condição essencial para que quaisquer metas sejam atingidas amorosamente. Se o fervor, por tantas razões naturais, como adversidades, tragédias, desinteresses outros, fenece, o princípio gerador que leva à realização transfigura-se, a se tornar perceptível a ausência da flama. É ainda Saint-Exupéry que escreve: “Digo que minha obra acabou quando o meu fervor desaparece”. Eu acrescentaria, a independer da faixa etária, pois inúmeras obras que a história preservou foram realizadas no ocaso da existência de seus criadores. Quando a chama intrínseca se apaga, em circunstâncias tantas vezes misteriosas, o homem deixa tombar seu estandarte.
Citadelle contém sabedoria. É a síntese de um pensador que entenderia o fervor, a responsabilidade, o amor, a compreensão do homem com seus defeitos e qualidades, numa ampla acepção. Não há panfletarismo, tão em evidência nos dias de hoje. O fervor ou fé, em contexto próximo e amalgamado, seria a salvaguarda do ser humano sincero, espiritual, a buscar a verdadeira integração fraterna da humanidade. Ainda há tempo para esperanças.

This post is a reflection on the meaning of the word “fervour” as Saint-Exupéry understood it in his book Citadelle (The Wisdom of the Sands): an inner flame essential in the process of man’s full growth.

“Em Defesa da Música Portuguesa”

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On ne passe ni du chant instinctif à la musique,
ni du dessin d’enfant à la peinture,
ni de la justesse ou de l’émotion de la parole au roman;
depuis des siècles, entre l’expression instinctive et l’art,
il y a toujours un autre art.

On ne devient pas poète par un matin de printemps,
mais par l’exaltation d’un poème.

André Malraux

Dificilmente, quando estou em Portugal, o nome de Louis Saguer deixa de ser aventado. Alexandre Branco Weffort, que já nos brindou com excelente livro sobre Lopes-Graça (vide Movimento Editorial – Livros Portugueses sobre Música, 19/04/08), a cada visita minha a Lisboa presenteia-me com algo relacionado ao compositor nascido em Tomar: Cosmorame, Músicas Festivas. Apresentei a primeira coletânea na recente tournée. Ofereceu-me nessa viagem obra que eu estava a procurar há muito tempo. Trata-se do livro de Louis Saguer Em Defesa da Música Portuguesa (Lisboa, Gazeta Musical e de Todas as Artes, 1969). Presenteado na véspera de meu regresso, foi a leitura durante o longo voo até São Paulo. Somava-se a outra obra que ganhara dias antes: Um saudoso adeus distante para Louis Saguer, última das composições da série Músicas Fúnebres para piano, de Lopes-Graça.
Louis Saguer. Tudo aconteceu em 1959. Em Lisboa, solicitei ao grande compositor Fernando Lopes-Graça que me indicasse um mestre na acepção para complementar meu estudo pianístico, que estava a realizar em Paris sob a tutela de Marguerite Long e Jean Doyen. Sentia a necessidade de um professor para as áreas teóricas, apesar dos três anos a estudar em São Paulo com H.J. Koellreuter. Sem titubear, Lopes-Graça deu-me o nome: Louis Saguer.
Necessário se torna traçar um brevíssimo perfil de Louis Saguer (1907-1991). Nascido na Alemanha, naturalizou-se francês em 1947. Estudou com Tagliapietra, Louis Aubert, Arthur Honegger, Darius Milhaud, Paul Hindemith e Kurt Sachs. Na Alemanha, foi assistente de H. Eisler. Como compositor, muitas de suas obras tiveram prêmios relevantes e, após sua morte, pouco a pouco estão a ser divulgadas. Citemos a ópera Marianna Pineda, que lhe valeu o Grande Prêmio de Mônaco em 1964, Une flûte fuyant le sol à perdre haleine (Concerto para flauta e orquestra), Quase una fantasia (Concerto para piano e orquestra), Scheggue e Stralci para piano, vasta obra de câmara, criações para coros a capella ou com orquestra e tantas outras composições. Convidado, dirigiu em 1949 um curso sobre música francesa contemporânea em Darmstadt, apresentando obras de Boulez, Dutilleux, Jolivet, Messiaen. Regente, teve atuações marcantes, revelando em primeira audição composições significativas na condução da Orquestra da Rádio Francesa. Foi assistente do grande regente Hermann Scherchen. Luis Saguer falava oito línguas. Várias vezes esteve em Portugal, sendo que em 1962 dirigiu um curso de música contemporânea na Academia de Amadores de Música em Lisboa, juntamente com Jorge Peixinho.

A partir da esquerda: Lopes-Graça, Louis Saguer, Jorge Peixinho. Academia de Amadores de Música em Lisboa. Anos 60. Clique para ampliar.

Discreto, afirmaria: “Minha situação é somente a consequência de minha incapacidade de me promover com sucesso e de meu insólito caráter”. E continua: “não dever nada a ninguém, recusar qualquer publicidade, qualquer tratativa, qualquer combinação; contando apenas com a qualidade de meu trabalho e esperando que ele se imponha por si só. O pior obstáculo: os amigos que não querem aceitar minha atitude”. Hervé Désarbre escreveria: “Compositor, ele ignorava as concessões, levando a discrição ao extremo, o que não o ajudou a se fazer conhecido do grande público, mas permitiu situar sua trajetória acima de modismos e tendências”.
Morava o grande músico e pensador em um pequeno apartamento no Boulevard Raspail. Louis Saguer acolheu-me com simpatia e, após minha primeira exposição, disse-me que durante nossas aulas particulares trabalharia todas as fugas dos dois livros de O Cravo Bem Temperado, de J.S. Bach, e alguns Tempos de Sonata de vários autores. Frise-se que como cravista apresentou importantes obras dos séculos XVII e XVIII, compondo igualmente para o instrumento. Durante três anos segui à risca o cronograma do mestre e semanalmente levava uma peça analisada para sua apreciação. Basicamente nada cobrava pelas aulas, pois o preço era apenas simbólico. Poucas vezes toquei para Saguer uma obra inteira, mas a partitura estava sempre profusamente anotada pelo discípulo, a fim do julgamento seguro do ilustre músico. Interessava a ele o aperfeiçoamento mental do jovem, a maneira como as informações transmitidas com competência pudessem ser apreendidas. Quanto à interpretação, buscava, após a análise de uma obra, inserir a integração analítica à naturalidade do executar como amálgama que levaria às resoluções sonoras.
Camargo Guarnieri, quando em Paris em 1960 (vide Camargo Guarnieri – Em Torno de um Centenário I e II, 3 e 11/07/09, respectivamente), escreveria a Lopes-Graça a respeito de um encontro que tivemos – Guarnieri, Louis Saguer, Jean Reculard e eu – no 17bis, Rue Légendre, onde eu morava, pois o compositor brasileiro tinha também profunda admiração por Saguer. A sua discrição era tanta que apenas muitos anos após compreendi a imensa contribuição de sua obra como compositor. Mas ficaram indeléveis princípios voltados ao conhecimento repertorial – não apenas aquele que estava forçosamente a perpetrar nas classes de piano -; a análise apriorística de uma obra a preceder imperiosamente a visita dos dedos ao teclado; a visão literária. Foi através de Louis Saguer que, entre tantos autores, conheci a obra de Jean-Louis Bory, amigo do compositor e autor do extraordinário Mon village à l’heure allemande (Prêmio Goncourt, 1945). Em torno do romance, foram muitas as conversas a respeito de aferições do mesmo tempo ou de sua simultaneidade.

Cartão Postal enviado de Lisboa por Louis Saguer e Lopes-Graça a J.E.M. 1960. Clique para ampliar.

Em Defesa da Música Portuguesa reúne ensaios publicados não só pela editora, mas também uma palestra de Louis Saguer sobre “A Música e a Evolução Social”. Duas cartas incisivas de Lopes-Graça às autoridades portuguesas de plantão em defesa do amigo, a quem foi-lhe negado produzir-se junto à Emissora Nacional, estabelecem o clima necessário no peristilo do opúsculo.
A obra dá bem a medida dos vastos conhecimentos musicográficos do autor. Intransigente defensor da Música Portuguesa de todos os períodos, Saguer, ao receber os dois importante tomos Flores de Música, do Padre Manuel Rodrigues Coelho (1583- ?), revisados por Santiago Kastner, publicação de grande importância da Fundação Gulbenkian, analisa-os pormenorizadamente em textos datados de 1960 e 1961, respectivamente. Nessa primeira edição de Flores de Música, Saguer ressalta o grande mérito do compositor e da edição, mas o olhar arguto de musicógrafo observa com acuidade a feitura das composições, a penetrar no âmago da criação. Frise-se o conceito idealizado de solidão aferido por Saguer ao não encontrar possíveis raízes populares na obra instrumental do mestre de Elvas, Rodrigues Coelho: “Solidão do artista trabalhando num meio pouco compreensivo, num posto perdido, que o constrange a manter um solilóquio por vezes desesperado. A impressão de que Coelho viveu afastado do mundo é ainda reforçada pela ausência total de temas de origem popular (se exceptuarmos o emprego sistemático da cadência andalusa). Nisso se distingue dos Frescobaldi, Cabezón, Sweelinck e dos virginalistas, que da veia popular tiraram a mais bela substância da sua obra”.
Em outros ensaios de 1961 a 1968 publicados no livro, Saguer, sempre a sustentar a música portuguesa, é um crítico agudo das programações massificadas, sem interesse musical e social; da repetição repertorial ou da sua execução: “…obras ouvidas à saciedade (Carnaval Romano, Pastoral, Sinfonia Italiana, Quadros de uma Exposição) ou do virtuosismo dos executantes que, em vez de servirem à música, se serviram dela para ‘tirar efeitos’ “. Meio século após suas palavras, não é basicamente esse repertório que ad nauseam continua a ser repetido para um público não afeito à renovação por motivos os mais díspares? Não escreveria igualmente sobre os encores: “Muitas vezes me tenho perguntado a mim próprio porque é que as ‘sumidades’ da batuta se julgam obrigadas a descer, nos extras e após um programa em si nada ambicioso, às danças húngaras ou boêmias”, a entender que, em Portugal, essas concessões depois de um concerto mereceriam privilegiar a música contemporânea. Tem consciência da importância da Fundação Gulbenkian na vida artística do país, apesar de alertá-la no sentido de uma maior divulgação da música portuguesa. Não obstante, não poupa outras entidades.
Amigo absoluto de Fernando Lopes-Graça, com quem mantém sempre o diálogo competente, Saguer escreve em artigo de 1968 inserido no opúsculo: “Que multiplicidade de técnicas e estilos na sua obra imensa… Da tonalidade mais clássica ao atonalismo mais acentuado, da simples harmonização de cantos populares ao serialismo mais elaborado, Fernando Lopes-Graça está a vontade em todas as linguagens e a cada uma sabe imprimir a sua marca, que é só dele, reconhecível e indelével. Imbuído da tradição da sua terra natal e alimentado, como nenhum outro no seu país, do vasto tesouro de obras primas de todo o mundo, tanto no espaço como no tempo, pode permitir-se o lançamento de suas pesquisas em todas as direções, na certeza de encontrar sempre a síntese necessária. Vivendo à margem da rotina musical oficial, as suas obras, logo que germinadas, atraem o grande público e eclipsam, de longe, as dos seus contemporâneos.” E sobre o homem Lopes-Graça, comenta: “…bate-se heroicamente, músico obscuro e frágil, com uma intransigência sem paralelo, pelo respeito, os direitos, a independência e as liberdades dos homens, seus irmãos.” A propósito, Cosmorame de Lopes-Graça, que apresentei na tournée que acaba de findar, não é cópia fiel dessas sensíveis palavras de Louis Saguer?
Inserida no livro, a palestra A Música e a Evolução Social, proferida em 1962 e destinada a estudantes universitários. Uma autêntica aula, síntese da trajetória musical através da história. Finaliza: “Todas as ciências, e entre elas as ciências musicais, se encontram plenamente desenvolvidas – mas de nada servirão se uma bomba nos cair em cima; o único sobrevivente do cataclismo terá de fabricar uma flauta de cana para poder tocar uma canção de três notas! Só nos resta desenvolver e fazer evoluir as consciências”.
A leitura de Em Defesa da Música Portuguesa trouxe-me gratas lembranças e a certeza de que a influência de Louis Saguer sobre aquele jovem que com ele estudou foi duradoura. Os princípios do mestre permaneceram como farol e muitos dos conceitos depositados em seus textos fazem parte daquilo que foi assimilado pelo discípulo. Minha gratidão eterna a Lopes-Graça pela indicação de Louis Saguer, tão fundamental em meu transcurso.

This post is about the great French composer, conductor and teacher Louis Saguer (1907-1991), who gave me private lessons of music theory in Paris. Born in Germany, he became a French citizen in 1947. Fluent in 8 languages, Saguer composed operas, chamber music and pieces for piano, orchestra, a capella choir. He was a close friend of the composer Lopes-Graça and an admirer of the Portuguese classical music. Due to his quiet and unpretentious demeanor, during his lifetime he has not received from the media the recognition a musician with his accomplishments would deserve, but today his legacy is being rediscovered. I will be forever grateful to Lopes-Graça for recommending me to Louis Saguer, an outstanding musician and man, so essential to my full development as a pianist.