Navegando Posts em Literatura

“O Jardim das Fadas”

São José tenta compreender. Catedral de Autun, França, Séc. XII. Clique para ampliar.

“Cristo nasceu para nós, vinde adorá-lo!
– Aproximai-vos fiéis, correi triunfantes a Belém
para adorar o Rei dos Anjos que acaba de nascer!
–O esplendor eterno habitou a carne.
Vimos o Deus Menino envolto em panos.”

A aproximação do Natal sempre nos leva a reflexões. Quão distantes estamos da comemoração interiorizada sentida pela grande maioria da cristandade através dos milênios. A mercantilização das últimas décadas, em crescente geométrico, anestesia desideratos voltados ao nascimento de Jesus. Ele é comemorado na essência por tantos cristãos espalhados pelo mundo, mas observado por outros mais como uma data do calendário em que a corrida às compras é prioritária. Ouço o rádio e, como um nefelibata, aguardo o impossível, pois as estações de maior audiência entrevistam comerciantes e compradores. Rarissimamente a imprensa focaliza a causa da comemoração do Natal, sendo mais importante para ela o fluxo da 25 de Março e seu mar de consumidores do que a essência essencial da Natividade, os instantes místicos em que uma manjedoura abrigou o menino Jesus.
Estou a me lembrar de duas situações separadas por tantos séculos de diferença. Não continuaria, hoje, São José atônito com a triste realidade? Escultores do século XII realizaram a obra-prima que é a Catedral de São Lázaro em Autun, na Borgonha Romana, em França, e um sobressaiu-se através da maestria e da identificação: Gislebertus, que assinaria o nome e mais Hoc Fecit no tímpano do Cristo Ressuscitado, sendo também autor de diversos capitéis. Um destes chamou-me a atenção em 1959, quando visitei o templo extraordinário durante um longo e inesquecível dia de visitação: St. Joseph médite et cherche à comprendre. A mão direita do Santo a sustentar a cabeça. Que intuição mística teve o escultor que entendeu a dimensão da Natividade! O mistério a levar São José a refletir. O que estaria a pensar? Extraordinária figura de José, o carpinteiro esposo de Maria, que, segundo o Evangelho de São Mateus, soube compreender o apelo do Anjo do Senhor. Em sonho, o Arcanjo revelou-lhe que ele nada teria a temer, pois o menino que estava por nascer fora concebido do Espírito Santo, atribuindo ao bom homem a tarefa de dar o nome de Jesus à criança que viria ao mundo.
Em 1973, passando por Cambuí, em Minas Gerais, parei para tomar um café. Qual não foi o meu espanto quando um escultor popular, que vendia suas criativas peças em barro cozido, apresentou-me um presépio despojado, entre outras mais esculturas espalhadas no meio da calçada. A Natividade lá estava representada em sua síntese: José, Maria, o Menino Jesus e a manjedoura. Antes de adquiri-lo, indaguei-lhe o porquê de São José estar com a mão fechada sob o queixo. Respondeu-me, em sua ingenuidade, que certamente o Santo estaria a pensar: “O mundo nunca mais será o mesmo.” Esse presépio sempre me despertou perplexidade. Tantos séculos a separarem Gislebertus de nosso escultor popular que deixou apenas suas iniciais, ZJ, e as do Estado, MG! Tanta identidade que o tempo apenas estaria a dimensionar! Que fluxo mágico a ligar o pensamento de dois artistas!

Presépio popular, barro cozido, autor ZJ, Minas Gerais, 1973. Clique para ampliar.

No Natal de 2007 inseri um bonito e simples conto de D. Henrique Golland Trindade (1897-1974), arcebispo de Botucatu (Vide Velho Natal – Um Conto Singelo, 22/12). Ao ler o texto sobre Dito Pituba (Vide Pesquisa de Campo – Entendimento Através das Entranhas, 27/09/08), a minha dileta amiga, professora e competente gregorianista portuguesa Idalete Giga, escreveu-me que estava a pensar em um conto que seria dedicado às minhas netas. Ao lê-lo, entendi associações generosas de uma alma sensível. O texto atravessou o oceano via internet, e é com o maior gosto que eu o publico em meu blog, não sem antes desejar um Natal vivido na intensidade a todos os leitores que me prestigiam semanalmente. Que os miúdos tenham acesso à delicadeza desse conto escrito para eles… e para nós também, cristãos ou não.

“O Jardim da Fadas”

“Era uma vez um menino chamado Edu, que vivia numa linda cidade com seus pais e irmãos. Edu gostava muito de sua cidade, onde havia parques cheios de árvores, lagos com cisnes e nenúfares, flores de todas as cores, relvinha verde, baloiços, cavalinhos de montar e escorregas. Edu brincava todos os dias no parque com seus amiguinhos e amiguinhas. Mas o que ele mais gostava era de visitar seu avô Pituba, que morava muito, muito longe, no grande Vale de Abipará, pertinho de um lugar encantado que ele chamava de Jardim das Fadas. Quando chegava a Primavera, o Jardim das Fadas ficava todo iluminado. Em todo o Jardim havia flores mágicas, que brilhavam durante o dia e brilhavam ainda mais durante a noite. Havia também libelinhas azuis, renas, corças, cavalos de crina branca, girafas de pescoço comprido e muitos outros animais, tão pequeninos que só as Fadas os podiam ver. O avô Pituba conhecia todos os segredos do vale de Abipará e toda a magia do Jardim das Fadas. Pituba era um sábio. Inventava e construía brinquedos mágicos. Quando Edu ia visitar seu avô, pedia-lhe sempre um brinquedo diferente. E também o acompanhava nos passeios ao Jardim das Fadas. Era só neste Jardim que os brinquedos tinham magia. Por isso, era nele que Edu gostava de brincar e experimentar todos os brinquedos inventados pelo avô. Tinha um cavalinho de madeira que podia voar, uma linda bailarina que rodopiava no ar, um palhacito que tocava saxofone, e uma bandinha de música com a Branca de Neve e os Sete Anões. Cada anãozinho tocava um instrumento muito engraçado. Bastava que Edu segredasse baixinho uma palavra mágica ao ouvido da Branca de Neve, para que os anõezinhos começassem todos a tocar seus instrumentos.
Um belo dia, Pituba construiu um brinquedo muito especial para oferecer a Edu no dia de seu aniversário. Inventou um pianinho que tocava sozinho. Mas para que pudesse tocar, Edu tinha de cantar uma canção. Quando Edu cantava , o pianinho começava a tocar sozinho a mesma canção. Admirado com esta maravilha, Edu perguntou ao avô: – Vôvô, porque é que o pianinho sabe a minha canção e está tocando sozinho?
O avô Pituba, pegando na mão de Edu, respondeu-lhe: – Meu querido netinho, se você fechar os olhos e disser três vezes: ‘quero ver quem está tocando no meu pianinho’, vai ter uma bela surpresa! Mas tome atenção! Para que o pianinho não perca a magia tem de lhe cantar nova canção.
E assim foi. Edu ficou tão feliz que logo inventou esta canção:

Corre, corre, cavalinho
Voa, voa, sem parar
Leva-me ao Jardim das Fadas
Pois é lá que quero brincar !

O avô gostou muito da canção. Logo que chegaram ao Jardim das Fadas, Edu fez tudo direitinho como o avô lhe dissera. Então, fechou os olhos e viu seu pianinho subindo, subindo, subindo devagarinho até ficar suspenso no ar. De repente, viu aparecer uma linda Fada, que começou a tocar a canção do ‘Corre, corre cavalinho’ com a sua varinha mágica. Edu ficou tão contente que começou a falar com a Fada: – Olá, querida Fada! Como é seu nome?
A Fada parou de tocar, olhou carinhosamente para Edu, ficou um bocadinho em silêncio e respondeu: – Chamo-me Princesa da Luz.
- Ah! Já sei! É você que acende as estrelas do céu, à noitinha? – Perguntou Edu.
A Fada sorriu, deu-lhe um beijinho, escreveu no ar a palavra SIM com a sua varinha mágica e desapareceu.
Edu abriu os olhos e foi logo contar ao avô o que tinha acontecido.
-Vôvô, já sei quem toca no meu pianinho! É a Fada Princesa da Luz que também acende as estrelas do céu, à noitinha!
Pituba pegou Edu no seu colo e segredou-lhe baixinho: – Que bom ter falado com a Fada Princesa da Luz! Agora, tenho outra surpresa para você. Mas desta vez só pode abrir o presente quando chegar a casa, combinado? -Sim, vôvô!
Ao chegar a casa dos pais, Edu estava muito curioso e correu logo para seu quarto . Ao retirar o papel que embrulhava o presente, viu uma caixa com uma linda rena desenhada na tampa e pensou: – Ah, deve ser uma rena mágica que o vôvô construiu para eu brincar na noite de Natal. Então abriu a caixa e dentro dela estavam outras caixas mais pequeninas. Cada uma tinha um pedacinho de chifre da rena que mais parecia de um boneco articulado. Edu foi juntando e montando pacientemente, uma a uma, as várias peçinhas. Era um jogo muito engraçado!
Então, qual não foi o seu espanto quando viu que não era um boneco , mas Santo António com o Menino Jesus ao colo! Porém, faltava uma peça. Faltava a cabecinha do Santo. Edu pensou que a tinha perdido e começou a chorar.
Fechou os olhos e viu de novo a Fada Princesa da Luz que lhe disse: – Não chores querido Edu! Vôvô se esqueceu de colocar a caixinha que falta e me pediu para a dar a você.
E levantando sua capa azul transparente retirou a caixinha que estava junto de seu coração e a deu a Edu. Quando Edu a abriu com muito cuidado, lá estava a cabecinha de Santo António. Assim, pôde completar o lindo presente do avô Pituba.

Santo Antônio. Imagem atribuída a Dito Pituba (1848-1923). Chifre, 8cm. Clique para ampliar.

Passaram muitos, muitos anos. Hoje, Edu é um famoso pianista, conhecido em todo o mundo. Santo António com o Menino ao colo ficou, para sempre, o Santo protector de sua família. Quando olha para ele recorda com muita saudade o avô Pituba, o Vale de Abipará, os longos passeios ao Jardim das Fadas, todos os brinquedos mágicos de sua Infância e nunca, nunca mais esqueceu a linda Fada Princesa da Luz.” Paço d´Arcos, 30/Out./2008.

O leitor terá a plena compreensão da dimensão de Idalete Giga, autora do conto tão sutil, ao ouvi-la dirigir o Coro da Capela Gregoriana Laus Deo, em um belíssimo canto gregoriano a louvar a Natividade: Christus natus est nobis, venite adoremus.– Adeste fideles, laeti triumphantes: venite, venite in Bethlehem. Natum videte Regem Angelorum.– Aeterni Parentis splendorem aeternum: velatum sub carne videbimus: Deum infantem pannis involutum.

Clique para ouvir “Christus Natus Est”, com o Coro Capela Gregoriana Laus Deo, sob a direção de Idalete Giga.

It’s Christmas season once more and random thoughts wander through my mind: commercial interests transforming the date into a secular holiday with its celebration of materialistic consumerism; two intriguing images of St. Joseph – distant 800 years in time – depicting the saint engrossed in thoughts, with a hand under his chin; Christmas stories. I want to include as the last post of 2008 a story written for my grandchildren by Idalete Giga, a very dear friend, teacher and Gregorianist living in Portugal. Though not exactly a Christmas story, it is suitable for the season. It’s entitled “O Jardim das Fadas” (The Fairy Garden). And to remind us all of the Nativity, readers of this blog can listen to a chant sang by the Laus Deo Gregorian Chapel Choir conducted by Idalete Giga.

O Olhar Poético e a Inexorabilidade

Clique para ampliar.

Presentiment is that long shadow on the lawn
Indicative that suns go down;
The notice to the startled grass
That darkness is about to pass.

Emily Dickinson

Refletir sobre a morte é preocupação atávica. Civilizações antigas buscavam na hipotética imortalidade da alma compensação para o momento que todos os seres vivos têm de enfrentar. A esperança de uma continuidade em outra dimensão, crível através das religiões e seitas, inexistente para os céticos, é fonte inesgotável de sentimentos antagônicos.
A morte, a derradeira respiração, pode ser interpretada, para aqueles que acreditam em um Poder Maior, de maneiras diversas: alívio, tristeza, conformismo, categoria de felicidade ou de tragédia, a partir inclusive das geografias. As tantas religiões aí estão a perdurar e a proporcionar o alento, a incerteza ou o desespero. Faz parte da condição humana acatar conceitos. Entre os budistas, a morte é uma etapa a abolir o sofrimento, ou a conduzir o ser humano às reencarnações, para o aperfeiçoamento motivado pelo karma. As artes entenderam mais agudamente a inexorabilidade da finitude, e a história denota inúmeras associações de duas ou mais em debruçar reflexivo sobre o tema. À guisa de exemplos, mencionemos o compositor Modeste Mussorgsky (1839-1881) compondo Cantos e Danças da Morte, sobre poemas do Conde Koutouzov, e Catacombae e Con Mortuis in Lingua Mortua de Os Quadros de uma Exposição para piano, obra inspirada nas aquarelas de seu amigo Victor Hartmann. Ainda Jeanne Esmein apreendendo na gravura o sentido do poema de Louis Guillaume (1907-1971) L’arbre des Morts, em que, segundo lenda nórdica, é destinada ao nascido uma árvore que lhe será futuro esquife a levar corpo rio abaixo e “…L’arbre funèbre atteint la pleine mer…”

Gravura de Jeanne Esmein, para o poema de Louis Guillaume: L'arbre des morts.1960. Clique para ampliar.

Sob o pseudônimo de Pere Oliva, Joan Reventós i Carner (1927-2004) escreve poemas. O livro Os Anjos Não Sabem Velar os Mortos (São Paulo, Paralaxe, 2008, 152 págs.) reúne coletânea do autor sobre a morte, poesias de sua própria criação por ele selecionadas, com a avaliação de três fiéis amigos. A obra catalã teve tradução cuidadosa do eclético Leopold Rodés i Garriga, amigo do poeta. O autor, no Prólogo, já adverte que “a morte é e sempre será um mistério. Por isso é território de poetas”. Acrescentaríamos, de artistas, entre tantos que se debruçam sobre o tema. Poderia ser mais um livro a abordar a finitude, não fosse Joan Reventós i Carner um pesquisador da morte, apresentando-a filtrada e em tantas vertentes, de maneira fluida, levando o leitor a reflexões. A divisão da obra em oito capítulos distintos – De onde venho? Para onde vou?, Medo de morrer, Como se fossem cantos, A morte concreta, Silêncios e solidão, O lugar dos mortos, Melodias da morte, Evocações vitais - demonstra preocupações transcendentes. Reventós i Carner atingiu estágio de sublimação poética, sem quaisquer concessões ao sentimentalismo banal e sem autocomplacência diante do inevitável.
Deixa-se atrair integralmente pela temática, que se torna obsessiva. Teve prévio conhecimento de poemas de outros autores focalizando o fim da existência. No Epílogo, faz sentir que tem consciência da decrepitude, o “ter de enfrentar o próprio envelhecimento. A vida tem uma fase em que o envelhecer fica mais evidente. É o processo mecânico, permanente e constante do organismo. O orgulho físico acaba com a chegada da feiúra no próprio corpo, a perda da memória, a insensibilidade ou a incapacidade.” O poeta já escrevera seus versos, e o texto do epílogo revela a certeza da morte à espreita.
Os Anjos não Sabem Velar os Mortos, verso de um dos poemas, apresenta a vontade de se entender a morte em sua acepção fulcral, flash único, fronteira absoluta a separar vida e finitude. O instante preciso do desenlace esbarra na impossibilidade de conhecê-lo previamente:

Quando chegará,
quando acontecerá,
não sei como será;
nisso não penso
nisso não confio,
nem falo.

Vladimir Jankélévich (1903-1985), em La Mort, considerava salvaguarda o fato de o homem não saber o seu momento final, apenas o condenado à morte. Essa mors certa, hora certa sed ignota, seria a única condição a conduzir à esperança. Hora precisa, desconhecida, podendo o ser humano estar ou não preparado. Imanência pragmatizando o mistério absoluto. Instante do acontecido, experiência única, intransferível, inflexível, passível de uma só passagem, para a interpretação racional da morte só existe cognição prévia, au délà tem-se a escuridão total.
Pere Oliva não vive na solidão. Preocupa-se com o desaparecimento do próximo, e o poema Nostalgias leva às recordações constantes: “A vida de ir de mortes a mortes é uma chuva constante de lembranças”. E esse desfilar natural, que todos presenciam no curso da existência, fá-lo pensar:

A morte dos outros me afeta:
E seu morrer, a sua morte,
São parte da minha vida,
são marcos ao limite último.

O conhecimento do instante do apagar só é sentido por quem parte, inenarrável, preciso, absoluto e pessoal:

Somente para quem morre, morrer é experiência,
Subtraída do mundo da consciência.
Não a procureis em alguma vivência:
Desumanizar a morte, não traz clemência.

Reventós i Carner está permanentemente a flertar com aquilo que ele também denomina Muda, morte paciente à espera do fatal encontro, impalpável, impossível de sofrer desvio. Daí o temor expresso no poema Quisera superar o medo, nessa insistência hesitante “Quisera não temer nem desejar cousa nenhuma, para o meu último dia”, ou “Quisera focalizar o meu morrer sem opacidade nem amargura”. Dir-se-ia resignado com o destino, mas oferecendo uma “alternativa” à opção da não crença em Deus: “Dar o grande passo do sou ao não ser, para a escura ribanceira do meu esquecimento, diluindo-me no universo, absorvido”.
Nos versos de Ao modo de provérbios, deixa transparecer preocupações que o inquietam “Desde seu nascimento, o homem tem idade sobrando para morrer”. Penitencia-se diante da morte de outrem:

Não me perdôo a mim mesmo
não tê-lo visto outra vez.
É você quem some,
é nossa vez, hoje, de te perder.
És tu, irmão, quem finda.

E não entende o irrevogável:

Compreendo a fuga,
e o não mais estar aí.
Não sei compreender como o que fostes
não mais serás.

A senhora morte, companheira inesperada e não desejada, à espera do ser vivo desde o nascer, aparentemente oculta-se, mas posiciona-se em sua soberana presença ao sentir do moribundo os prováveis sintomas da dor, as posturas corporais as mais variadas, o arfar final e a convicção da inequívoca não adaptação a ela – Muda – por parte do ser que agoniza. A sua figura, que tanto assustou por séculos, foice às mãos, representaria a brutal fatalidade. Longe da irmã morte franciscana, de degrau para reencarnações, dos atos vividos à espera de um juízo final, Reventós i Carner convive com a realidade da despedida. O poema Viver é dizer adeus reflete enraizamentos bem anteriores à concretização do livro e, como se fosse uma recitação de prece:

É a ausência sem retorno,
É dizer adeus a todo instante.
É viver para dizer adeus.
É o câmbio de espaço e postura.
É a razão desde o parto.
É correr pela vida,
Carregando sempre a morte.

Mais do que poesias sobre a morte, o livro Os Anjos não Sabem Velar os Mortos traduz nossa absoluta imprecisão frente ao evento, mas num multidirecionamento de situações. Um livro singular que merece ser visitado.

Victor Hartmann, Catacumbae, aquarela. Clique para ampliar.

Clique para ouvir “Catacombae e Cum Mortuis in Lingua Mortua”, extraídos de “Quadros de uma Exposição”, de Modeste Mussorgsky, com J.E.M. ao piano. Gravação realizada em Mullem, na Bélgica em 2001.

The book “Os Anjos Não Sabem Velar os Mortos” (Angels Don’t Watch over the Dead) is an anthology of Joan Raventós’ poems selected by the Catalan poet himself. It deals with death and its many faces: getting old, the fear of death, the concrete process of dying, death and remembrance, the place of the dead. A poetic reflection on the inevitable and imponderable experience shared by all human beings.

Acúmulos da Escuta e do Olhar

Clique para ampliar.

Alguns, para se acalmar em momentos de agitação,
brincam com instrumentos que fazem música.
Outros, simplesmente se limitam a ouvi-la.
Alguém trabalha a terra,
outro corre quilômetros na estrada ou nas ruas.
Alguns, para melhor se acalmar, acionam um jogo eletrônico.
Pere Oliva escreve poemas.

Pseudônimo de Juan Reventós i Carner

Entre os gêneros literários, a Crônica tem um lugar especial. Multidirecionada, caracteriza-se pela singularidade da exposição do autor frente ao leitor, a revelar uma faceta real de seu pensar. Longe das amarras de gêneros considerados maiores como romance, dramaturgia, biografia, história ou até determinadas formatações acadêmicas; distante da poesia ou do conto, mas a fazer fronteiras com essas categorias especiais a depender da sensibilidade de quem escreve, a crônica também tem suas particularidades e divisões.
Quando Colette (1873-1954), como exemplo, escreve crônicas que comporiam En Concert, ou Yasmina Reza (1959- ) detalha determinados fatos sócio-mundanos em Hammerklavier, diferem de outras a narrar o cotidiano, a reminiscência que aflora, impactos causados por leituras ou tantos outros estímulos. Crônicas também seriam determinadas críticas musicais ou literárias que focalizam o óbvio, quando o personagem fulcral é impecável. Nesse caso, desliza para o supérfluo, a fim do agrado fácil. Coelho Neto (1864-1934), Humberto de Campos (1886-1934) – injustamente esquecido -, Sérgio Milliet (1898-1966), Luís Martins (1907-1981), Inácio Loyola Brandão (1936- ), entre tantos, souberam e sabem ser pontuais num gênero tão rico, pois dimensionaram conteúdos. Ao abordar dois livros excelentes de crônicas em posts anteriores, revelava ao leitor a beleza da visitação ao passado por dois autores de talento: Frederico Branco e o arquiteto e cronista português Antônio Menéres (Vide Frederico Branco – A revisitação das imagens perdidas, 09/03/07 e “Crónicas contra o Esquecimento” – A Profissão e o Olhar Diferenciado, 29/07/07).
Quando comecei a escrever textos para o atual blog, já me posicionava no sentido de ter constância: “Manter a periodicidade será fruto prazeroso. Após a sedimentação do blog, o hábito e o conseqüente afeto ao mister” (Vide Praeambulum, 02/03/07). Com o presente post atingimos 102 introduzidos no blog, semanal e ininterruptamente.
Diversos fatores levaram-me à prática. A vontade bem antiga de registrar aquilo que observei e continuo a sentir; a ante-câmara da aposentadoria junto à USP em 2007, a propiciar novas descobertas após anos vividos em sala de aula e comissões que acarretaram, no primeiro caso, o desdobramento da vocação; no segundo, tantos momentos bons e também outros mais perdidos, quando de reuniões infrutíferas. A liberdade do pensar, longe das amarras de textos acadêmicos, está sendo fundamental para a expansão do espírito. Estes continuam sempre, mas apreendendo a essência en plein air e, longe de inócuos relatórios, a pesquisa interior acumulada resulta num debruçar sem pressões. Que extraordinária sensação é continuar a relação amorosa com o piano e com o texto, mas podendo escolher opções: do escrito sobre música para publicação acima do equador com objetivo preciso, a requerer semanas ou meses para a configuração final, à crônica solta que surge como idéia enquanto corro – troto – pelas ruas de minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, a pensar a seguir na organização do texto. Os posts convertem-se em escrita de madrugada, numa pincelada, diria. Conversava com Tsuna Iwami, amigo há longo tempo, engenheiro, compositor e ceramista. Disse-me ele que o artista japonês, em gravura ou cerâmica, realiza um só gesto para a feitura do traço. Mutatis mutandis, assim entendo as crônicas que nascem quando o silêncio recai sobre a cidade.

Clique para ampliar.

Crônicas de um Observador – Acúmulos da Escuta e do Olhar (São Paulo, Pax & Spes, 2008, 223 págs.) é o resultado de 72 posts hebdomadários. Cláudio Giordano, partícipe de tantas reflexões conjuntas ao longo dos anos, cuidou com esmero da sóbria edição. Juracy, dileto amigo e meu vizinho, perguntou-me certa vez: “Alguma semana você deixou de escrever para o blog?” Respondi-lhe que não, assim como não poderia deixar de respirar. Tornou-se um hábito tão natural que, por vezes, temas ficam perfilados em minha mente, aguardando a descida para o teclado do computador.
Não estaria a escrever somente sobre música. Sentir-me-ia cerceado. Tampouco são minhas leituras apenas musicais. Se a música é o meu pulsar, nem por isso meu olhar deixa de ver o mundo em que vivemos. Daí a configuração de vários compartimentos que me interessam: leitura, cotidiano, impressões de viagem, personalidades, interlúdios.
Os comentários de livros antigos, ou a resenha de publicações atuais, obedecem, nessa liberdade de expressão, a um fundamento: a obra ter-me interessado, o que enseja a oportunidade de transmitir a impressão que ela me deixou. Quando resenhei para o Suplemento Cultural de “O Estado de São Paulo” (1980-1991), a preocupação atinha-se à qualidade do livro e o relato da obra, que nem sempre me agradava, ficava um pouco à margem, a buscar eu meandros que pudessem levar interesse ao leitor. Presentemente, o descompromisso dá-me a liberdade de externar simplesmente a minha visão pessoal do compêndio que leio pelo fato de escolha preferencial.
Impressões de Viagem é categoria sensorial, e os impactos, sob todos os aspectos, que os deslocamentos geográficos provocam tornam-se temas que me aprazem.
Quando focalizo Personalidades, são sobretudo aquelas a quem longas décadas me ensinaram a render tributo. Ter conhecido e conhecer figuras ilustres é um privilégio que tento transmitir ao leitor.
O Cotidiano encanta-me sempre. Figuras humanas expressivas, felizes ou dolorosas, a escuta do som das ruas, a passarada e outros bichos, os contatos do dia a dia, tudo fica registrado para texto ou simples citação. Se brevíssimos, catalogo-os como Interlúdios.
Por fim, a memória. Não está rotulada como categoria, pois lembranças as mais remotas estão sempre a eclodir quando algum fato ou acontecimento, som ou ruído, alegria ou dor trazem-me reminiscências. A memória interpenetra tantos textos… e esse manancial acumulado está sempre à espera, a fim de ser revisitado.
A rigorosa seqüência cronológica dos posts reunidos em Crônicas de um Observador serve para o leitor acompanhar a trilha do pensar durante mais de um ano. Na formatação do livro não considerei a colocação das categorias, tampouco as onipresentes ilustrações. Alguns significativos desenhos, feitos por artistas e amigos do Brasil e do Exterior, substituíram as inúmeras e belas imagens. Como já afirmara no primeiro texto no distante Março de 2007: “Doravante, você leitor está convidado a realizar essa viagem. Que sejamos cúmplices.
Bem haja !”

Seventy-two posts stored in my blog, written without interruption since March 2007, have now been gathered in a book entitled Crônicas de um Observador (Chronicles of an Observer). Embracing various categories of thoughts or events (books, travels, personalities, everyday life and reminiscences), the book is scheduled to be released next Thursday, 27 November.