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Em torno de uma Dissertação

Paulistinhas anônimas, terracota, séc. XIX. Clique para ampliar.

Os países da América Central e do Sul, de raízes castelhanas,
embora como nós latinos e católicos,
diferem radicalmente do Brasil na sua formação.
Todos tiveram suas realizações culturais
iniciadas dentro da arte sacra,
mas nenhum deles teve suas raízes culturais dentro da imaginária,
da escultura religiosa, como aconteceu com nosso país.

Eduardo Etzel

A temática a respeito da Pós-Graduação na área das Humanas tem sido objeto de reflexões transmitidas em posts anteriores, mormente em O Drama da Pós-Graduação – O Perigo do Circunstancial Endêmico (21/06/07). Entre as muitas mazelas existentes nesse domínio, apontava uma essencial. Referia-me ao mau orientador que abriga não importa qual projeto, um dano à nossa cultura, oposto absoluto do competente, que não apenas sabe escolher o candidato, como compreende as nuances preferenciais de um bom orientando. Havendo uma enorme demanda por bolsas junto aos Institutos de Fomento pelos “selecionados” para dissertações e teses, joio e trigo se misturam. Muitas vezes, conveniências oriundas sobremaneira da longa carreira acadêmica de um orientador “oficial”, não de um scholar autêntico, estarão a anunciar todo o mal, pois o veredicto final apenas contemplará duas palavras: aprovado ou reprovado. A fronteira entre ambas é tênue e dissertações ou teses são aprovadas no limite do regular, enquanto outras, extraordinárias, têm a mesma palavra de aceite. Quão fundamentais eram as notas beirando o dez, sendo esta uma referência! Alunos aprovados na faixa mínima permitida sabiam que não haviam sido exemplares. Hoje tudo se confunde, e o Sistema nada faz para alterar essa terrível simplificação a premiar chaga que se alastra sob o olhar benevolente dos detentores do poder educacional, pois o “conceito positivo” estaria a demonstrar eficiência.
A premissa fez-se necessária. Quando aceito participar de uma Comissão Examinadora, verifico em primeiro lugar o nome do orientador, garantia, em princípio, de um bom trabalho acadêmico a ser avaliado. Ao ler o nome de Percival Tirapeli, Professor Adjunto do Instituto de Artes da UNESP, e a temática estudada pelo candidato Ailton S. de Alcântara, atendi ao chamado. Após a leitura da dissertação, apreendi tratar-se de um competente contributo acadêmico: Paulistinhas – Imagens Sacras, Singelas e Singulares, a valorizar não apenas o trabalho artístico na confecção dessas peças de devoção, como igualmente a fazer justiça ao extraordinário pesquisador Eduardo Etzel, certamente o mais importante conhecedor de nossa imaginária (vide Eduardo Etzel – A Valorização do Humanismo – I, e Literatura Sobre Arte Sacra no Brasil – II , 17 e 25/08/07, respectivamente). Dissipa-se pouco a pouco a opinião distorcida que entendia o monumental legado de Etzel como não relevante, devido à sua não formação acadêmica na área de Artes! De maneira progressiva e contundente, a luz prevalece sobre a escuridão.
Percival Tirapeli, autor de vários livros sobre história da arte, entre os quais Arte Brasileira – Arte Colonial. Barroco e Rococó (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2006, 96 págs.) soube entender e orientar Ailton Alcântara numa temática pouco explorada academicamente, se bem que exemplarmente desvelada por Eduardo Etzel. Contudo, a partir das pesquisas do referido estudioso, Alcântara esboça propostas que deverão servir a debruçamentos maiores e indispensáveis quanto às Paulistinhas.
A dissertação, dividida em três capítulos, estuda inicialmente a introdução da imaginária pelos religiosos nas terras descobertas pelos portugueses. A origem, motivada pela necessidade da propagação do catolicismo, resultou na construção de igrejas e capelas na extensa faixa litorânea. A interiorização territorial empreendida pelos bandeirantes e outros intrépidos aventureiros fez com que, pouco a pouco, o futuro Brasil ficasse povoado de templos e de abundante imaginária. Alcântara debruça-se sobre o período em que jesuítas e, mais tarde, beneditinos e franciscanos, com forte tradição portuguesa, passaram àqueles já nascidos nos trópicos a técnica da confecção de imagens em madeira ou em barro, este cru ou cozido.

Paulistinhas de Dito Pituba (1848-1923). Terracota. Clique para ampliar.

Ao abordar as estruturas sociais, econômicas e religiosas na Província de São Paulo, o candidato a mestrado preparou o terreno a fim de que a temática central – Paulistinha – estivesse esclarecida. Evidenciando um conhecimento competente da matéria estudada, Alcântara mostrou, em bem realizado data show, a transição das imagens de barro cozido, criadas basicamente desde o século XVII, até a transformação final que seria a Paulistinha, do final do século XVIII e de todo o século XIX, a adentrar as primeiras décadas do século XX. Paulistinhas anônimas e aquelas realizadas por Benedito Amaro de Oliveira – o Dito Pituba (1848-1923) – foram apresentadas. Um debate profícuo foi mantido entre os membros da Comissão Examinadora, da qual faziam parte o orientador já mencionado, José Leonardo do Nascimento, Professor Adjunto do Departamento de Artes Plásticas da UNESP e o autor deste post. Alguns tópicos foram propostos e acredito que novas luzes recairão sobre essa extraordinária criação típica do Vale do Paraíba, no Estado de São Paulo.
Eduardo Etzel prefere denominar “os” Paulistinhas, atendo-se aos santos. Se considerada for como imagem sacra, tem-se a palavra no feminino. A respeito das Paulistinhas, tem-se a imaginária em seu sentido mais despojado. Confeccionadas por santeiros, homens simples do campo ou das cidades do Vale do Paraíba, essas pequenas peças de 10 a 18 cm de altura, aproximadamente, povoaram as casas dos caboclos e dos moradores das pequenas cidades da região. Utilizando-se do barro, o santeiro preenchia as fôrmas necessárias, colocava-as no forno em alta temperatura, e as imagens confeccionadas ganhavam consistência, daí centenas delas terem chegado intactas até os nossos dias. Pinturas singelas, precisas, sem muitas variações, davam a essa típica representação da imaginária paulista o dom da perfeição possível. Eduardo Etzel as compararia às tânagras, pequenas estatuetas em terracota da Grécia antiga. Sendo de pequena dimensão, as Paulistinhas preenchiam oratórios simples, decorados principalmente com pinturas florais e também feitos pelos santeiros. Todo um cenário a levar à religiosidade estava estabelecido. Se considerarmos os grandes casarões de algumas fazendas do Vale do Paraíba, com suas capelas fora das moradias, ou oratórios grandes no interior a abrigarem imagens maiores, poderemos verificar a importância extraordinária, ainda não totalmente valorizada na sua intencionalidade, que é a Paulistinha, imagem destinada aos menos favorecidos.

Paulistinha: data gravada na face interna da base - 1838.

Em post anterior (vide O Espírito de Síntese- Atingir a Decantação, 01/03/08) abordava essa qualidade inalienável que é o retorno às formas clássicas – ou ao despojamento e simplificação – empreendido por tantos compositores. Mutatis mutandis, entendo a Paulistinha como a síntese absoluta da imaginária barroca. Dos panejamentos esvoaçantes; das ornamentações e pinturas douradas sobre estofamentos precisos de gesso das peças em madeira; das expressões contemplativas, de êxtase ou de dor expressas nas imagens do período barroco; das coroas em ouro ou prata; das dimensões bem maiores; todo um longo caminho do erudito ao popular, da riqueza à singeleza, do ornamento à síntese, a resultar nas Paulistinhas. O abastado, capaz de encomendar a peça de ostentação, ou o humilde camponês, que pedia a imagem de devoção ao santeiro do entorno em troca da parca economia, foram responsáveis pela obra de arte. O erudito e o popular pertencendo à categoria de obra de arte. A Paulistinha, em sua dignidade despojada, hierática, em seus traços enigmáticos a não expressar sentimentos, em seu panejamento a tender para a verticalidade sem contornos e em sua peanha funcional, a permitir a queima adequada, mas igualmente a elevação espiritual, aí está a desafiar o tempo e a mostrar que em arte o excelso pode ser apreendido na frase contida em Citadelle, de Saint-Exupéry: “É bem possível que a perfeição seja alcançada não quando nada mais há a ser acrescentado, mas quando nada mais há a ser suprimido”.
No retorno à minha cidade-bairro, o Brooklin, fiquei a pensar na dissertação de Ailton Alcântara e senti certo constrangimento em ter sido obrigado a escolher entre duas palavras, sem a menor possibilidade de outorgar-lhe uma altíssima nota em reconhecimento pelo belíssimo trabalho apresentado. Realmente o pensamento limitado dos educadores governamentais de plantão é o de equalizar competências. Mentes estreitas só podem gerar fronteiras estreitas de avaliação. Perde-se a grandeza, indispensável ao crescimento em qualquer área. Tenhamos esperanças no sentido de que um dia voltemos às notas tão precisas e delimitadoras de dissertações e teses. O insofismável emergirá.

A brilliant thesis defense − a research on the “paulistinhas”, small sacred images in clay, typical of São Paulo state, a local version of erudite models − led me to reflect, as a member of the jury, on the importance of awarding grades to candidates for a higher degree in universities. In Brazil, theses are no longer graded and examiners have to choose between two words: accepted/unacceptable. Instead of rewarding an outstanding work with the highest grade, our education authorities prefer to equalize competences, making it impossible for examiners to define the different levels of achievement of each candidate.

“Um Sonho Chamado K2”

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La mort n’est donc indéterminée que comme moment à venir.
Plutôt qu’indéterminée, la mort est imprévisible.

Vladimir Jankélévitch

O K2 é a montanha mais terrível,
mais repulsiva e fascinante que qualquer outra.
Para os seres humanos,
é um símbolo do inatingível, uma eterna tentação
.
Karl Diemberger

O infausto episódio acontecido nos primeiros dias de Agosto último, em que morreram 11 alpinistas depois da queda de um serac, bloco de gelo resultante da fratura de um glaciar, ratifica a extrema dificuldade em se alcançar o topo da segunda maior montanha do mundo, o K2 (8.611m), localizado na cordilheira Karakorum, próxima ao Himalaia, entre Paquistão e China. Ao vir abaixo, o serac matou cinco montanhistas, isolando mais de uma dezena que se encontravam acima, cerca de 8.300m de altitude. Especialistas têm o K2 como o grande desafio de suas carreiras. Li recentemente o livro de Waldemar Niclevicz (Um Sonho Chamado K2 – A Conquista Brasileira da Montanha da Morte. Rio de Janeiro-São Paulo, Record, 2007, 373 págs.). A presente tragédia, somada a outras tantas, leva-nos a refletir sobre a fronteira entre a vida e morte, desafio permanente de um alpinista.
O relato de Niklevicz tem a força do testemunho de quem por duas vezes, em 1998 e 1999, tentou sem sucesso a escalada do perigoso K2. Avalanches e dificuldades outras tornam a subida e, sobremaneira, a descida terrivelmente complexas. Inúmeros especialistas sucumbiram ao desafiar aquelas alturas.
Um Sonho Chamado K2 antolha-se-me como uma antevisão da terrível tragédia ocorrida recentemente. Menciona o autor uma frase de Reinhold Messner que “a descida das montanhas representa também um retorno à vida. Cada passo da subida, no entanto, equivale a dois passos que nos afastamos dela”. Niclevicz narra em sua dantesca descida do K2 que sentiu a morte bem próxima: eu me arrepiava ao escutar os pedaços de gelo despencarem, tilintando como pedaços de vidro dentro daquele abismo negro. E continua: sabia que a maioria das 54 vítimas do K2 até então havia perdido a vida durante a descida, e justamente nas proximidades daquele trecho traiçoeiro da escalada. Causa impacto ao leitor a insistência de tantos alpinistas que, ao enfrentarem o desafio da escalada do K2, têm a convicção absoluta, mais do que em outras subidas e descidas, do perigo maior sempre à espreita. É a certeza de que o “inevitável” pode ocorrer a cada momento. Escreve o autor, a revelar parcela do porquê do desafio situado bem além da aventura pela aventura: Nesse mundo particular formado pelas montanhas mais espetaculares da Terra, eu não teria nenhum outro interesse além da busca das alturas mais elevadas, da ânsia de superar meus próprios limites, para encontrar, dentro de mim mesmo, o sentido da minha existência. Sabia, portanto, que jamais eu chegaria ao alto do K2 se não superasse todos os meus medos e fraquezas. Sabia que, na verdade, estava novamente em busca da escalada do meu próprio ser e não de uma montanha de rocha e gelo.
Tão forte reação o K2 exerce sobre Waldemar Niclevicz que o alpinista dedica capítulos às tragédias ocorridas em 1986 e 1995, sem considerar as outras tantas mortes por ele mencionadas em anos diversos. A determinação e ousadia de Niclevicz foram responsáveis pela não desistência após insucessos anteriores devido aos riscos de avalanches e da metereologia, a apontar péssimos dias para a empreitada. A escalada vitoriosa em 2000, juntamente com os experientes alpinistas italianos Abele Blanc e Marco Camandona, é narrada por Niclevicz de maneira palpitante e possibilita ao leitor entender as atrozes dificuldades que o K2 apresenta. E pensar que, para o público em geral, o Everest, apenas 237 metros mais alto, recebe a atenção total, apesar de ser menos difícil sua escalada !
A tragédia de Agosto, somada a tantos outros infaustos acontecimentos desde a primeira escalada ao K2, em 1954, evidencia o permanente peristilo da morte. Números surpreendem. Se o Everest é largamente o mais visado, sobram estatísticas espantosas quanto à comparação com o K2. Para cada 12 pessoas que escalaram o Everest, uma morreu, enquanto que a proporção no K2 é de uma morte para cada três sucessos.
Tragédias e a leitura da narrativa de Niclevicz levaram-me à reflexão. Vladimir Jankélévitch, filósofo e musicólogo, em sua obra La Mort debruça-se sobre o “instante do acontecido” traduzido pelo momento do desenlace. A salvaguarda, segundo o grande pensador, é não sabermos o infinitesimal flash que separa a vida da morte. Se nos fosse dada a possibilidade de conhecer quando morrer, não haveria garantia alguma para a existência e esta estaria com a sua trajetória já traçada, sem o vislumbre da esperança. Para o condenado à morte é dado conhecer o momento de seu desaparecimento físico. Contudo, se tem sua pena modificada no instante derradeiro, poderá haver a visão absoluta da razão da existência, que passaria a ser valorizada como nunca anteriormente. É-nos facultado precisar a passagem de um cometa, mas o ser humano segue em direção à morte sem saber seu instante final. Jankélévitch afirma: É por motivos metafísicos que a predição é impossível. Não se trata de uma imprecisão acidental, mas de uma indeterminação essencial. Fiquei a meditar sobre o livro do pensador francês visitado na década de 80. Não haveria uma “situação intermediária” do axioma mors certa, hora incerta? Todos esses valorosos alpinistas, em narrativas pungentes, não “namoram” perenemente o momento derradeiro, continuando sempre a insistir nessa fronteira única, sem retorno, se a fatalidade de atalaia surgir em forma de uma avalanche, de um passo em falso, da corda que se rompe, do ar rarefeito, do mal da montanha, do congelamento, da fragilidade humana em face ao inesperado? Buscar o limite nessas situações não significaria ir ao encontro da morte, vislumbrando-a e tantas vezes sucumbindo à sua atração? Que desideratos, tantas vezes inconscientes, levam o homem a sentir-se demiurgo, mas a pedir socorro no momento em que a senhora morte é vislumbrada através da densa neblina ou de um abismo sem fim? A irresistível necessidade de sua presença não significaria a tentação de sentir a ruptura da salvaguarda mencionada por Jankélévitch? O alpinista, no instante em que decide afrontar o mau tempo rumo ao cume, não estaria indo ao encontro da mors certa, hora certa? Seria a prudência, em situação extrema de perigo, salvaguarda confiável, se considerado for o motivo a levar o homem ao temível cume?
Um Sonho Chamado K2 prende totalmente a atenção do leitor. Ficaria apenas uma ressalva referente ao desiderato de Waldemar Niclevicz em mencionar tantas vezes ajudas dos diversos patrocinadores e, no final, de todos os doadores. Vivemos na era globalizada, a busca de recursos se torna necessária, mas se existisse maior discrição, acredito que não haveria a quebra da seqüência da empolgante narrativa. Seria bom crer que os auxílios apenas premiam a intrepidez do montanhista, sem esperar o retorno financeiro.

K2 tragedy in August 2008, in which eleven mountaineers died following an avalanche and a sudden and savage storm, reminded me of the book Um Sonho Chamado K2 (A Dream Called K2) ,written by the Brazilian climber Waldemar Niclevicz, an account of his successful and dramatic attempt to summit K-2, the 2nd highest mountain on earth and said to be more difficult to ascent than Everest. The climbing accident led me to reflections on life and death inspired by the thoughts of the French philosopher Vladimir Jankélévitch.

Jacques Durand (1865-1928)

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Quand l’esprit ne se tourne plus naturellement vers l’avenir,
on est devenu un vieux.

Gustave Flaubert

A leitura de memórias pode apresentar problemas de confiabilidade. Se o autor tergiversa, não é difícil, em determinados segmentos, entender desvios comprometedores. Se, sob outro ângulo, o memorialista espera décadas para iniciar suas lembranças, alterações podem encaminhar o texto para fantasias, até perigosas, a não resistir às comprovações que um dia vêm à superfície. Tantas não foram as memórias escritas que perderam validade na confrontação direta com a veracidade. O equilíbrio estaria reservado àqueles que rememoram, mas acolhem os novos dias.
Há tempos procurava Quelques Souvenirs d’un Éditeur de Musique de Jacques Durand. As memórias publicadas em dois volumes, nos anos de 1924 e 1925, foram editadas em Paris pela A. Durand et Fils. Adquiri a obra em um alfarrabista em São Paulo.
Jacques Durand e seu pai, Auguste Durand (1830-1909), foram ilustres empresários e tiveram sólida formação musical. O conhecimento pleno da área amalgamou-se à vocação de editores e ambos pontificaram durante décadas no cenário das publicações musicais em França. Antes do fim do século XIX, Jacques Durand já se integrara às edições e em 1921 passou à direção da Durand & Cie juntamente com Gaston Choisnel e Roger Dommage.
A casa Durand tornar-se-ia referencial, pois seria a editora de autores como Edouard Lalo (1823-1892), Jules Massenet (1842-1912), Camille Saint-Saëns (1835-1921), Claude Debussy (1862-1918), Maurice Ravel (1875-1937), Paul Dukas (1865-1935) e tantos outros. Deve-se a ela as edições francesas de óperas de Richard Wagner, assim como a edição crítica da obra completa de Jean-Philippe Rameau que teve como diretor preliminar Saint-Saëns. Igualmente à Casa Durand creditam-se três revisões da maior importância para o piano do século XIX: Chopin por Debussy, Mendelssohn por Ravel e Schumann por Gabriel Fauré (1845-1924). Mais tarde, Francis Poulenc (1899-1963), Olivier Messiaen (1908-1992), André Jolivet (1905-1974) et Darius Milhaud (1892-1974) tiveram suas obras editadas pela prestigiosa Durand & Fils.
O interesse maior por Quelques souvenirs… veio da leitura, há muitas décadas, de Lettres de Claude Debussy à Son Éditeur, publicadas em 1927 pela mesma organização. São íntimas essas missivas de Debussy, que se estendem de 1894 a Novembro de 1917, poucos meses antes da morte do compositor, abordando a criação, o cotidiano, o acompanhamento das revisões, as crises afetivas, o engajamento ideológico, demonstração inequívoca da qualidade do destinatário. Durand participou de muitas apresentações pianísticas, compondo igualmente, tendo sido responsável pela transcrição para piano solo – com o consentimento de Debussy – das célebres Danses Sacrées et Profanes, escritas originalmente para harpa cromática com acompanhamento de orquestra de cordas, fato a testemunhar a competência do memorialista.
Encontra-se nas memórias de Durand uma panorâmica do ambiente sócio-musical do período. O autor perpassa toda a sua vida envolvida com a música e com as edições musicais. Quelques Souvenirs… indica precisamente que a ligação amorosa de Durand com a profissão escolhida resultou não apenas da feitura de publicações esmeradas, como da escolha dos compositores que permaneceriam na história. Se nomes desapareceram no pó das produções menores, contudo personalidades musicais representativas francesas e européias figuraram no amplo catálogo de Durand & Fils.
Os dois volumes encerram preciosidades. Jacques Durand, na introdução já clareia as intenções: “esforçei-me somente em consignar os fatos da melhor maneira que consegui”. Longe de serem memórias supérfluas, comuns no período dos salões freqüentados por artistas, intelectuais, políticos e empresários afamados, as evocações do autor se estendem da infância a alguns anos antes da morte, com acuidade e forte presença do observador atento.
Tem orgulho de uma linhagem que remonta aos tempos de Henrique IV e indica, através da história, ascendentes relevantes. Lembra-se da infância, quando ouvia seu pai organista. Jacques teria aprendido a solfejar antes mesmo de ler o alfabeto. Parte desse período passou em Gent, pois sua mãe era belga. Em Paris, recordar-se-ia do apoio de seu pai editor aos jovens compositores franceses logo após a guerra de 1870. Realizaria sérios estudos no Conservatório de Paris, a aprofundar-se naqueles de piano e de composição. Nas memórias, refere-se às recepções no salon de seus pais, freqüentado por compositores eminentes: Georges Bizet (1838-1875), Edouard Lalo, Saint Saëns, Massenet, Charles Gounod (1818-1893), pormenorizando fatos que ficaram gravados. Jovem, mercê do prestígio de seu pai músico e editor, conheceu pianistas como Anton Rubinsntein (1829-1894) e Hans von Bülow (1830-1894), violinistas como Pablo de Sarasate (1844-1908) e Eugène Ysaÿe (1858-1931), tecendo sempre comentários competentes sobre as extraordinárias interpretações desses ilustres músicos.
São interessantes os relatos de Jacques Durand sobre as récitas nas salas de concerto ou, mais informais, nos salões onde se fazia música. O do grande pianista e professor Louis Diémer (1843-1919) é mencionado com ênfase, pois o mestre quase nunca deixava o banco do piano, acompanhando à perfeição cantores e violinistas ilustres. Preferenciava, quando solista, o repertório escrito originariamente para cravo. Personalidades parisienses importantes da vida cultural, política e social freqüentavam o salon de Diémer.
A recepção das óperas de Richard Wagner é acompanhada com acuidade por Durand. Particulariza os embates comerciais devido aos direitos autorais das composições do músico alemão. Pormenoriza a edição de obras de tantos autores e, através de suas memórias, entende-se o processo de escolha e a negociação dessas edições. A competência musical de Jacques Durand teria sido a responsável pela permanência de muitos compositores de relevo que tiveram suas criações divulgadas.
Abrigou autores das mais diferentes tendências, e sua memória capta com clareza determinados flashes, como a entrada de Maurice Ravel na Casa Durand levando a célebre Sonatina para piano. O encorajamento àqueles merecedores de publicações e os Concerts Durand, por ele criado a fim da promover obras de compositores ilustres ou jovens, dão às Memórias de Jacques Durand o sentido pleno do humanismo e do respeito aos músicos.
Camille Saint-Saëns merece um destaque especial. O pequeno Jacques conheceu-o como freqüentador da casa de seus pais, quando o compositor já era um músico respeitado. Durante toda a vida, Durand teria uma quase “veneração” pela extrema versatilidade de Saint-Saëns como pianista, compositor e músico possuidor de uma memória absolutamente extraordinária, pois, como narra o editor, sabia as óperas conhecidas inteiras de memória, partituras e libretos. A excepcionalidade de Saint-Saëns em tantas áreas, musicais ou não, será objeto de posts futuros, pois trata-se igualmente do primeiro pianista a apresentar-se em vários continentes: Europa, Ásia, África e América.

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Claude Debussy ocupa parte considerável em Quelques Souvenirs… Durand conhece-o em 1884 na classe de composição de Ernest Guiraud (1837-1892) e ratifica a posição de outros biógrafos a respeito da extrema amizade do mestre para com o aluno preferido: “muitas vezes, à noite, eles se encontravam em um pequeno café da rua de La Bruyère; jogavam bilhar e era necessário o fechamento do café para arrancá-los de lá. Depois, uma vez fora, as conversações estéticas continuavam sob a fumaça de seus cigarros, enquanto reconduziam-se mutuamente e de maneira sucessiva a suas moradas respectivas”. Acompanha com felicidade a obtenção do Prix de Rome em 1884, premiação maior do Conservatório de Paris, obtida pelo amigo com a cantata L’Enfant Prodigue, que seria editada pela casa Durand. Relata, à medida em que as memórias fluem, as primeiras apresentações das principais obras de Debussy, verdadeiro testemunho receptivo dessas composições. Aliás, tal procedimento dar-se-ia em relação às produções dos principais autores franceses e do Exterior, em apreciações breves, mas competentes, de Jacques Durand.
Dois outros aspectos concernentes a Debussy mereceriam menções. Comenta os 12 Études para piano, de 1915, e a Sonata para violino e piano, de 1917. Após uma apresentação na Casa Durand, Debussy mostrou-se insatisfeito com o final desta obra. Levou-o de volta e oito dias após entregou uma nova versão, o que motivou Durand a comentar: “Vê-se o quão difícil Debussy se mostrava frente à suas composições, exemplo a ser citado para aqueles, muitos numerosos, que se contentam bem facilmente”. Jacques Durand visitaria Debussy no peristilo de sua morte. Em estado terminal devido a um câncer prolongado e ouvindo o bombardeio a que Paris estava sujeita naquele dia, “disse- me que tudo acabara, e bem sabia que era questão de horas, curtas na verdade. Hélas! Era fato. Diante de minha denegação, fez sinal para que me aproximasse para um abraço; após, pediu-me um cigarro, sua última consolação. Eu sai de sua casa muito perturbado, sem esperanças. Dois dias após, era o fim !…”
Como conclusão de Quelques Souvenirs d’un Éditeur de Musique, o autor escreve: “nossos mestres atuais produzem sempre belas obras e eu conheço jovens nos quais devemos depositar as maiores esperanças” a evidenciar um espírito superior afeito à tradição e aberto a novas perspectivas. O ter seguido com acuidade o movimento musical em França e a sua vida pessoal de raro interesse dá às Memórias de Jacques Durand uma importância referencial para a compreensão de período tão extraordinário.

Jacques Durand (1865-1928), the author of “Some Memories of and Editor of Music”, and his father, Auguste Durand, had a solid music education and owned a publishing firm that by the end of the XIXth century was already a landmark in France. The Durand house was responsible for the publication of authors such as Edouard Lalo, Jules Massenet, Camille Saint-Saëns, Claude Debussy, Maurice Ravel, Paul Dukas. It published also the French edition of some of Wagner’s operas, the critical edition of Rameau’s complete works (under the initial direction of Saint-Saëns) and three very important works for piano in the XIXth century: Chopin revised by Debussy; that of Mendelssohn by Maurice Ravel and that of Schumann by Gabriel Fauré. Later on, the works of Francis Poulenc, Olivier Messiaen, André Jolivet and Darius Milhaud were also edited by the prestigious Durand & Fils. The book is interesting because the author was well acquainted with outstanding musicians of his time- – with special emphasis on Camille Saint-Saëns and Debussy – and manages to capture the complexity of the musical, social and political world of fin-de-siècle Paris.