Um compositor a ser sempre lembrado
Escuta, escuta: tenho ainda uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai salvar o mundo,
não mudará a vida de ninguém,
mas quem é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido da vida de alguém?
Eugénio de Andrade (1923-2005)
(ilustre poeta português)
Primeiramente, apresento uma mensagem da sensível Eliane Ghigonetto Mendes, viúva do notável compositor Gilberto Mendes, que me privilegiou ao longo dos anos dedicando-me 30 peças para piano, que tive o prazer de apresentar em público em nossas terras e no Exterior, gravando algumas dessas preciosas criações. Eliane ratifica exemplarmente o conteúdo do blog anterior, após assistir a um vídeo no qual uma conhecida composição de J.S. Bach é interpretada de maneira acrobática, logo após uma execução num andamento tradicional. “Num dia desses assisti no Film & Arts um concerto em Nova York, mesclando jazz com música erudita. O ‘Solfeggietto’ foi uma das músicas escolhidas, primeiro sendo tocada no andamento moderado em uníssono, pela orquestra e pela pianista, em seguida com apenas ela tocando em altíssima velocidade que mal se podia distinguir a música, soando apenas como um ‘turbilhão’ de notas. Era uma pianista jovem, oriental, mostrando sua virtuosidade e, com o público aplaudindo, concentrado apenas em sua virtuosidade, não importando a música que estava sendo tocada. O foco, cada vez mais, é o intérprete, tanto por parte do público como do executante, com os concertos funcionando mais como uma ‘olimpíada’, onde os ‘atletas’ competem entre si pela maior velocidade, deixando a emoção e o sentimento da interpretação cada vez menos presentes. Poucos ousam fazer a íntegra da Arte da Fuga de Bach, como fez recentemente um jovem pianista russo num concerto em Berlim, fazendo-nos imergir no mais profundo espiritual do nosso divino Ser. Enfim, o ‘vazio’ presente em todas as áreas, até mesmo na música…”.
Um dos leitores, José Afonso, fez uma provocação: “Professor, o senhor tem priorizado compositores estrangeiros. E os nossos?” Veio-me à mente nosso maior compositor romântico, Henrique Oswald, algumas vezes presente nos blogs hebdomadários ao longo dos anos, mas ainda a ser difundido de maneira mais ampla.
Estava em meus planos lembrar novamente de Henrique Oswald, um grande mestre da música. A mensagem do leitor e a consequente presença de várias gravações minhas inseridas no Youtube pelo prestigiado Instituto Piano Brasileiro fizeram com que antecipasse um primeiro approach oswaldiano, contextualizado nessa temática sobre obras maiúsculas pouco frequentadas pela grande maioria dos pianistas, independentemente da dificuldade técnico-pianística maior ou menor. Estou a me lembrar de afirmação do nosso saudoso pianista, o notável Nelson Freire (1944-2021), que rezava ser mais difícil gravar uma obra lenta do que uma de movimento rápido. Confesso que, ao longo das gravações dos meus 25 CDs no Exterior, vinha-me sempre a lembrança da assertiva de Nelson Freire, mesmo tendo eu gravado CDs com as integrais dos Estudos de Claude Debussy (1862-1918) e de Alexander Scriabine (1872-1915), assim como três outros só de Estudos de autores contemporâneos pátrios e de diversos países, alguns de alta transcendentalidade.
Numa oposição visceral ao conteúdo do blog anterior, tipificado através das composições de Charles-Valentin Alkan e a virtuosidade plena em tantas de suas criações, provocadoras de recordes a serem batidos, o presente blog homenageia Henrique Oswald nessa visão onírica em tantas de suas obras para piano, nas quais a expressividade em seu limite é detectável desde os primeiros compassos, exemplificada nos “Six morceaux op. 4”, compostos em Florença na juventude da idade madura, criações em que Oswald evidencia um talento singular no campo melódico e na configuração escritural.
Clique para ouvir, de Henrique Oswald, “Six Morceaux op. 4”, na interpretação de J.E.M.:
Valse
https://www.youtube.com/watch?v=efR9ENaw50I
Rêverie
https://www.youtube.com/watch?v=kQVASBH6oRM
Menuet
https://www.youtube.com/watch?v=mJw238kXbZk&list=PLKya-u1rrLoojQjyqYoU1nqYtlSLT0nNn&index=9
Berceuse
https://www.youtube.com/watch?v=0yU3gEcXvVU&t=6s
https://www.youtube.com/watch?v=AVZCFB_v_ro&t=8s
https://www.youtube.com/watch?v=HW5wC-wlFbw
O extraordinário da composição destinada ao piano é a diversificação, da criação mais simples, mas substanciosa, ao ilimitado proposto por Charles-Valentin Alkan. Toda obra desses grandes mestres esconde um mistério. O filósofo-musicólogo Vladimir Jankélévitch bem considerou a diferença entre segredo e mistério: aquele pode ser desvelado, o mistério é indecifrável e o instante do acontecido da criação é insondável. Mesmo para aqueles pianistas preservadores do que foi composto e que tiveram longa existência, fácil é notar que a execução se transforma com o avanço da idade e que nesse longo percurso o mistério da criação permanece. Estou a me lembrar do pensamento sobre esse “Mistério” formulado pela nossa mais expressiva pianista, Guiomar Novaes (1895-1979), quando ao tocar para ela o Carnaval de Viena op. 26, de Schumann, em sua residência. Afirmou a excelsa pianista ao jovem de 17 anos que a minha interpretação tinha arroubo e entusiasmo, mas que ela iria se transformar com o passar dos anos, finalizando que, ainda adolescente, interpretara o Carnaval op. 9 do compositor alemão, tendo executado inúmeras vezes mundo afora, mas que ainda tinha dúvidas quanto à interpretação de determinados segmentos. Ficou-me como verdadeira lição de vida.
Corroboro o pensamento de Nelson Freire, pois uma das composições mais complexas que gravei, mercê da infinidade de matizes sonoros, foi a magnífica “Résonances”, de Daniel Gistelinck (1948-), compositor belga.
Clique para ouvir, de Daniel Gistelinck, “Résonances”, na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=4XflfeoeAl8
Uma brilhante tese de doutorado, a versar sobre Henrique Oswald, foi defendida na Universidade de Firenze pelo excelente pianista e pesquisador italiano Marco Rapetti. Oswald viveu cerca de 30 anos na bela cidade da Toscana. Debruçou-se Rapetti sobre o compositor, justamente na cidade em que é professor, tendo acesso a inúmeros documentos inéditos. O próximo blog será destinado à essência dessa magnífica tese.
In contrast with virtuosity taken to its highest level, the more intimate piano creations written by excellent composers throughout history reveal treasures that deserve greater attention by pianists in their public performances. Henrique Oswald, our greatest romantic composer (1852-1931), is still awaiting greater public recognition.