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Inusitado número de mensagens

Não corro como corria
Nem salto como saltava
Mas vejo mais do que via
e sonho mais que sonhava
Agostinho da Silva

Os 18 anos de blogs ininterruptos, sempre publicados aos sábados, provocaram inúmeras mensagens, fato que me proporcionou alegria ímpar. Apraz-me recebê-las, máxime pelo motivo de que o blog se tornou uma segunda natureza. Luca Vitali (1940-2013), saudoso amigo e artista plástico invulgar, por vezes expontaneamente me brindava com um desenho com forte carga de humor. Os teclados do piano e do computador foram por ele lembrados em situações diferenciadas.

O editor Cláudio Giordano enviou-me significativas palavras: “Parabéns pela maioridade blogueira e meus melhores sentimentos pela expulsão da casa que lhe foi a guardiã e companheira durante boa parte da vida: mais uma prova do efêmero de todas as permanências e certezas humanas”.

De Bruno Andrade de Britto, músico e professor radicado na Bahia, recebo a mensagem: “Fico feliz com a completude da maioridade de suas crônicas de sábado. Me sinto feliz em acompanhar essa trajetória desde 2007. E desejo longa vida, e mais 18 anos de reflexões e temas de grande qualidade”.

Da professora e tradutora Aurora Bernardini, uma frase de síntese: “Continue respirando na nova morada”.

O compositor português Eurico Carrapatoso, tão presente em meu repertório pianístico, tece comentários: “Ai!, essa saída da tua casa! A escala não é colossal, mas sinto-te em trabalhos a veres com teus próprios olhos um Hiroshima de bolso que vos colheu. Também tenho nostalgia da casa mãe em Trás-os-Montes. Mas a vida é mudança. É uma condição, que o terá dito teu pai a sair de Braga que levou para S. Paulo no coração. O que seria da bela sala da biblioteca de Mafra sem o conteúdo de livros que lhe dá alma?  Sem dúvida que é o recheio que lá habita que mais vale.  Assim é nas nossas casas. Desejo-vos uma vida muito longa no novo lar, e uma indizível felicidade de quem na vida se cumpre em plenitude de sua obra e de sua prole”.

Eliane Mendes, viuva do ilustre compositor Gilberto Mendes, escreve: “Quanto à mudança nas abordagens durante estes 18 anos, ela retrata a consciência sempre se expandindo a cada novo nível que ela acessa através da passagem do tempo… Reexaminando a memória dos fatos e experiências vividas, constatamos que somos sempre nós mesmos, mas sempre diferentes, pois algo sempre muda na nossa maneira de ver e sentir a vida. Uma caminhada que perdura até o fim de nossa vida, sempre nos oferecendo mais e mais compreensão, mais e mais percepção, mais e mais clareza do que é a vida e de quem somos, nós mesmos…

Mencionaria Deyse Deliberato, Marisa Silva, Gaston Reyes e Carolina Ramos… representando tantos leitores que me privilegiam com e-mails estimulantes. Como não prosseguir com mensagens que calam fundo?

Flávio Amoreira, escritor, poeta e cronista, comenta: “De utilidade pública! Seus posts precisam ser editados em papel também! De um fã inveterado!”.

Dos posts entre 2007 a 2011 resultaram três livros, os dois últimos com ilustrações de Luca Vitali. Se continuasse as publicações em papel, hoje seriam mais 13 livros. Os leitores que me honram todas as semanas bem sabem que, sem promoção externa, há pouco a fazer, e realmente nessas últimas décadas, por motivos, entre outros, ligados ao desprestígio e ao descaso que a grande mídia proporciona àquilo outrora conhecido como Alta Cultura, dela simplesmente me afastei. Aliás, Flávio Amoreira tem corajosamente destacado em sua coluna no jornal “A Tribuna”, de Santos, o desinteresse atual pela leitura.  Não ocorreu o mesmo com a crítica musical? Na São Paulo dos anos 50 havia cerca de dez críticos, a maioria com conhecimentos sólidos sobre Música, que frequentavam as muitas apresentações de grandes intérpretes e de novéis executantes. São Paulo cresceu de maneira gigantesca e a crítica musical se estiolou.

Já instalado no apartamento, após a colocação das estantes dei nova guarida aos livros que me acompanham. São eles a essência essencial das pesquisas, que continuam a ser um dos bálsamos da existência. Nesses últimos anos, sabedor da sanha das construtoras, doei mais de metade dos livros às entidades culturais, o que me proporcionou alegria interior, pois obras referenciais terão certamente outros olhares, o que me dá esperanças nessa continuidade. Ao organizá-los tematicamente, veio-me à mente o desejo da releitura de tantos deles, o que resultará em novas recensões. Estou a me lembrar de uma observação do meu amigo António Menéres (1930-), ilustre arquiteto português, que em seu livro “Crônicas contra o esquecimento” escreve: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” (vide blog: “Crônicas contra o esquecimento”, 29/07/2007). A cada livro realocado, vinha-me a essência do seu conteúdo. O mesmo se deu com as partituras e a todo instante a mente era invadida pelos sons que delas emanam. Minha mulher Regina sentiu o mesmo com a organização das suas partituras.

A cada ano escrevo sobre o natalício do blog e não posso deixar de citar aquele que me sugeriu a incursão nessa área, o ex-aluno e amigo Magnus Bardela, e a minha amiga-irmã, Regina Maria Pitta, esmerada revisora, verdadeira caçadora de gralhas…, a confirmar as palavras de Henrique Oswald (1852-1931), nosso maior compositor romântico, em carta a Furio Franceschini (1880-1976), ilustre organista e professor, que revisava a Sonata para órgão do compositor. Dizia Oswald que o pior revisor é o autor e, entre os da categoria, sentia-se o pior. Força de expressão, mas que explica pequenas falhas banais em um texto. Revisadas por especialista na matéria, são dirimidas.

Prosseguirei. É o que sei fazer.

I’ve received an unusual number of messages about the 18 years of uninterrupted posts published on the weekly blog, always on Saturdays. I would like to express my deepest thanks to everyone who has honored me with such attention.

 

A distração de um escrivão e os resultados advindos

A prosa histórica é poderosa por ser necessária ao seu tempo,
por estar ligada a ele e surgir como um reflexo dele.
Veniamin Kaviérin (1902-1990)

Iuri Tyniánov é um dos escritores que engrandece a consagrada literatura russa. Destacou-se não apenas como escritor, mas também como tradutor, crítico literário, roteirista e professor. Dedicou-se aos estudos de Teoria Literária e é presença essencial no que concerne ao Formalismo Russo.

Entre seus contos, destaca-se “O Tenente Kijé” (1928) – título mais conhecido no mundo ocidental -, que na publicação em pauta surgiria como “O Tenente Quetange”, na competente tradução acompanhada de notas de Aurora Fornoni Bernardini, editada recentemente (São Paulo, Editora 34, 2023). Salientem-se os ricos prefácio de Boris Schnaiderman (1917-2016) e o posfácio de Veniamin Kaviérin (1902-1990).

Necessário se faz explicar, para o melhor entendimento do leitor, o termo Quetange, utilizado por Aurora Bernardini. Acrescento parágrafo do prefácio de  Boris Schnaiderman, a esclarecer a origem da trama do conto: “Esse Kijé surge no texto em consequência de uma distração do escrivão sonolento que, em lugar de ‘podporútchi ki jé’, escreve na minuta de um decreto ‘podporútchik Kijé’, isto é, a expressão ‘No que tange aos segundos tenentes…’ fica substituída por ‘o segundo-tenente Kijé”. E esse texto, sacramentado com a assinatura imperial, acaba tornando obrigatória a existência do tenente e “no que tange” se transforma perigosamente em Quetange, personagem doravante presença inexistente.

O Tenente Quetange percorre o conto em seus 23 curtos “capítulos”, narrativa que transita pelo século XVIII, sob o reinado do czar Paulo I, com um “propósito crítico” ao sistema autocrático baseado na burocracia e nos equívocos dela decorrentes. Uma primeira leitura sem os prolegômenos necessários encaminha o leitor para a possível deriva, pois são vários os personagens efêmeros ou não e fatos que surgem sem uma sequência lógica, sequência esta substanciada pelo entendimento das premissas. O conhecimento dessas torna o texto não apenas assimilável, mas enriquecido por forte dose de humor sarcástico e o conto se metamorfoseia, a evidenciar o pensamento arguto de Tyniánov.

A figura fantasma do Tenente Quetange, acompanhada pela observância do Czar, atravessa o conto, da deportação para a Sibéria a mando de Paulo I ao perdão e progressão sequencial na carreira militar, capitão, coronel e, após, o imaginado casamento com uma princesa, a promoção pelo Czar a general, acompanhado de bens que lhe são outorgados. Paulo I, ao solicitar a presença do Tenente Quetange, amedronta os que mantinham o fantasma, que respondem ao Czar que Quetange morrera. O féretro é realizado com pompas. Após a “morte” de Quetange, o Czar ordena a devolução dos bens do “finado” e é informado que esses foram gastos com luxo e desperdício, encobrindo a realidade, o roubo da fortuna pelos amedrontados súditos. O fantasma “morto” é tido como larápio e perde todas as promoções, regressando à categoria de soldado raso. É nesse acompanhamento do personagem Quetange, duplicado nesse existir–inexistindo, que a trama do conto adquire um sentido crítico aos equívocos que advêm de um regime autocrático. Veniamin Kaviérin bem observa no posfácio que “o tema do duplo existe na literatura há centenas de anos, sendo inúmeras as suas variantes”.

Em 1934, o Tenente Kijé foi às telas com o roteiro do autor, Iuri Tyniánov, e direção de Aleksander Feinzimmer (1906-1982), sendo que a música foi confiada ao notável compositor Serguei Prokófiev (1891-1953). Moscou, Londres e Nova York tiveram as suas respectivas estreias. Atendendo a um convite da Orquestra Sinfônica da Rádio de Moscou para reescrever a música criada para o filme, ora na formatação Suíte, Prokofiev revelou que teve um “trabalho diabólico” em duas frentes durante cerca quatro meses, transformando os fragmentos musicais do filme, destinados a uma orquestra de câmara, para uma grande orquestra, e reestruturando o conteúdo musical da película, como adequações à doravante forma Suíte, assim como o emprego temático preciso para fácil absorção por parte do público. Fê-lo magistralmente e, em artigo publicado no Izvestia no mesmo ano, admitiria que a Suíte “Acima de tudo, deve ser melodiosa; além disso, a melodia deve ser simples e compreensível sem ser repetitiva ou trivial… A simplicidade não deve ser uma simplicidade antiquada, mas uma nova simplicidade”. O fato de a publicação da partitura ter sido realizada em França faria perdurar para a obra o título Lieutenant Kijé, na realidade uma das criações orquestrais mais festejadas de Prokofiev. Mormente após a aceitação pública, durante décadas permaneceu como uma das suas mais executadas composições mundo afora.

Sergei Prokofiev, compositor com fortes raízes voltadas à tradição – lembremo-nos de algumas de suas marcantes criações orquestrais, “O amor das três laranjas”, “Cinderela” e “Sinfonia Clássica” – , ao compor “Lieutenant Kijé” não se desvia da temática de Iuri Tyniánov e segue o roteiro do conto nos cinco quadros da obra: Nascimento de Kijé, Romance, O casamento de Kijé, Troika, O enterro de Kijé. Na Suíte orquestral de Prokofiev não se descartem heranças que têm origem em seus ilustres conterrâneos, Alexander Borodin (1833-1887) e Modest Moussorgsky (1839-1881), nessa captação descritiva sob a ótica russa singular.

Clique para ouvir, de Sergei Prokofiev, “Lieutenant Kijé”, na interpretação da Boston Civic Symphony, sob a regência de Konstantin Dobroykov:

https://www.youtube.com/watch?v=YbaY7p5ahZo&t=1s

A leitura de “O Tenente Quetange”, precedida pela audição da composição de Prokofiev, “Lieutenant Kijé”, poderá levar o leitor a mentalmente seguir o enredo perpassado pelas melodias contagiantes.

Alvissareira, pois, a edição tão bem cuidada do conto “O Tenente Quetange”, de Iuri Tyniánov, obra que recomendo vivamente.

Desejo um Natal pleno de paz e serenidade aos leitores que prestigiam os meus blogs hebdomadários.

Russian writer Iuri Tyniánov’s short story “O Tenente Kijé”, which in the Portuguese edition would be titled “O Tenente Quetange”, is a unique work. Aurora Fornoni Bernardini was the translator. The Russian composer Sergei Prokofiev would compose the music for the film “Lieutenant Kijé” and later reshape the various fragments by composing the orchestral Suite “Lieutenat Kijé”.

 

Centenário do notável compositor

“O que é a música?” pergunta Gabriel Fauré,
à procura do ponto intraduzível
da real quimera que nos eleva acima daquilo que é…
Vladimir Jankélévitch (1903-1985)
(“Fauré et l’inexprimable”, 1974)

Gabriel Fauré não é somente um grande músico,
um dos maiores da França e do mundo inteiro,
é também um artista cuja produção foi abundante.
Charles Koechlin (1867-1950)
(“Gabriel Fauré”, 1948)

Aos 30 de Setembro de 1974 homenageei Gabriel Fauré no cinquentenário da morte. O recital foi realizado no MASP e, posteriormente, em várias cidades brasileiras. Faço-o presentemente de maneira íntima no “Quinto recital privé” a lembrar o centenário da morte. Regina participa interpretando obras sensíveis do Grande Mestre francês. Sugiro a leitura do blog “Gabriel Fauré” (21/02/2009).


Se considerarmos o romantismo desde os primórdios do século XIX e a sua plena acolhida pelos nomes mais representativos da música durante todo o transcorrer do tempo, apesar da pluralidade de tendências que surgiram nas primeiras décadas do século XX e se expandiram – algumas estiolaram-se na sequência -, determinados compositores se manteriam fiéis aos princípios românticos, entre eles Sergei Rachmaninov (1873-1943). É sempre bom lembrar que Jean-Philippe Rameau (1683-1764) já apregoava que “a música é a linguagem do coração”.

Gabriel Fauré, decano do trio maior da música francesa da segunda metade do século XIX às décadas iniciais do século XX, que tem a completá-lo Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937), foi certamente um cultor do espírito romântico sublimado. Não é difícil entender que, mercê da sua linguagem musical plena de sapiência escritural, que se traduz através da perpetuação das consagradas conquistas anteriores, Gabriel Fauré foi um inovador. Se, como notável professor de músicos que permaneceram na história, reverencia o passado, o contraponto, apreende do turbilhão romântico processos voltados à modulação constante, ao diatonismo e ao cromatismo, utilizados com maestria, meios esses a chegar, por vezes, a ápices da dinâmica e retornando ao quase inaudível. Se tantas das suas obras vão diretamente ao coração, há quase um século cultores das tendências modernas e contemporâneas veem-no como um démodé, um antiquado. Um pianista meritoso no repertório contemporâneo, ao saber que eu daria um recital por ocasião do cinquentenário da morte (1974), disse-me que a sua música era pura perfumaria (sic). Lamentável, pois termos depreciativos propagados pelos pares tornar-se-iam um dos entraves a obliterar a divulgação plena nas salas de concerto, fato real. A lendária pianista e professora Marguerite Long (1874-1966) observa: “Se a música de Fauré ainda não tem no estrangeiro o público que merece pela beleza da sua mensagem, é muito simplesmente porque não é tocada com a frequência suficiente. Enquanto os epítetos ‘música íntima’, ‘charme’ e ‘meia-luz’ limitaram essa obra, rica em tantas maravilhas, ela permaneceu reservada aos círculos refinados” (“Au piano avec Gabriel Fauré”,  Paris, Julliard 1963). Renomados concursos internacionais de piano ignoram entre as obras escolhidas aquelas de Gabriel Fauré. Não nos iludamos, pois a figura do empresário sempre teve ação fundamental na escolha dos repertórios, buscando sempre proteger compositores e as obras que repetidamente se instalaram nas mentes dos ouvintes. O ilustre compositor francês François Servenière (1961-), tantas vezes presente neste espaço, por sua vez ouviu em Paris vários comentários desabonadores a respeito da música de Fauré, insinuando ser ela destinada à terceira idade e às velhinhas (sic). Tardiamente, após a análise pormenorizada das linguagens musicais de Debussy, Ravel e de Fauré, Servenière se libertaria do negacionismo relativo a Fauré,  escrevendo: “Apercebi-me de que a simplicidade musical ao piano era a tarefa de composição mais difícil, na qual o compositor francês era um mestre absoluto. Aprendi que era necessária uma ciência, e uma mente purificada de todas as técnicas e de todos os sinais, para ousar compor dessa maneira, com tanta facilidade, com tanta felicidade, com tanta clareza de forma, com tanta perfeição na narrativa e no fluxo de ideias. Parece-me que a música de Fauré raramente tem desígnios sombrios ou pressentimentos”.

O insigne pianista Alfred Cortot (1877-1962) classifica três períodos distintos da criação de Fauré: o primeiro “é o prazer voluptuoso e fugidio dos dias, a imagem charmosa e calorosa dos sonhos, as emoções e os desejos juvenis”, sendo que o segundo “é a patética exaltação da maturidade, luta apaixonada e reflexiva dos sentimentos”. Finalmente, na terceira fase, “um caráter indizível de beleza grave e de ardorosa contenção, e o métier musical depurado e que se imaterializa, conferindo uma espécie de serenidade filosófica” (“La Musique Française de Piano”, Paris, Presses Universitaires de France, 1948).

Tive o privilégio de estudar algumas criações de Fauré com Marguerite Long, uma das notáveis intérpretes do Mestre francês, dedicatária do Impromptu nº 4.  Um dos seus conselhos referia-se aos graves da pianística de Fauré. Repetia as palavras do compositor, ”à nous les basses”, na essência, herança da proposta de Jean-Philippe Rameau a dar ênfase plena às fundamentais. Outro grande Mestre do piano com quem estudei em França foi o ilustre Jean Doyen (1907-1982), excelso intérprete de Fauré, que gravaria a integral para piano do compositor.

No programa, algumas obras essenciais para piano de Gabriel Fauré. As três Romances sans paroles op.17 pertencem a uma primeira fase escritural. De comunicação direta, já revelam o comprometimento do compositor com a sequência das prerrogativas românticas. Diferentemente das Pièces breves op. 84, mais austeras, mas a seguir o longo curso romântico. Vladimir Jankélévitch observa que Fauré, a partir do segundo lustro da década de 1910 até a morte em 1924, “renuncia às complacências e seduções de uma linguagem naturalmente adornada com todas as graças da ternura. Ele escolheu deliberadamente a porta estreita… Que segredos aprendeu ele para desdenhar assim as facilidades do prazer e do superficial?” (“Fauré et L’inexprimable”, France, Plon, 1974). Nas oito Pièces breves, Fauré está na soleira da “porta estreita” e as duas escolhidas por Regina bem apreendem o momento criativo.

Barcarolle nº 12 op. 106 bis é a penúltima da série das Barcarolles e, mercê da destinação, apreende o ondulante que induz essa forma em compasso 6/8, a lembrar o movimento tranquilo das ondas. Marguerite Long comenta: “Abrimos as páginas das Barcarolles e descobrimos o mundo encantado. No mistério do seu silêncio interior, Gabriel Fauré descobriu as correspondências sonoras que traduzem as suas impressões fugidias ou possantes”.

Os cinco Impromptus formam um conjunto monolítico. Fauré explora a técnicas dos cinco dedos, tão glorificada em França, mas que não impede a presença de uma linguagem elegante, poética, a dar vasão à plena vivacidade. O 4º Impromptu foi dedicado à Marguerite Long, que o apresentou em primeira audição. Quanto ao 5º Impromptu, um verdadeiro “moto perpetuo”, Marguerite Long relembra: “Ao ouvir-me tocar esse derradeiro Impromptu pela primeira vez em 1909, Camille Saint-Saëns (1835-1921) disse-me, atônito após grande silêncio, mormente pela rapidez das passagens e das famosas descidas por tons inteiros, que ‘desnorteiam’ perigosamente os dedos: ‘Meu Deus, como é difícil’, justamente ele que foi um dos grandes pianistas do seu tempo e um grande amigo de Fauré”.

Clique para ouvir, de Gabriel Fauré, o Impromptu nº 5, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=zzGn3VgfhrA

Entre os Nocturnes, certamente os nºs 4 e 6 têm sido os mais ventilados. A minha gravação dos dois Nocturnes está no Youtube. Em blog bem anterior comentei que estava a tocar o Nocturne 4 na sala de aula da USP quando meu ilustre colega, o saudoso compositor Gilberto Mendes (1922-2016), entrou silenciosamente e sentou-se na banqueta do piano ao lado. Ao terminar a execução, Gilberto, com a tranquilidade de sempre, disse-me: “Daria toda a minha obra para ser o autor desse Noturno”. Creio que Fauré ainda superaria a obra-prima que é o 4º Nocturne ao compor o de nº 6. Vladimir Jankélévitch comenta: “Inefável mistério de ambiguidade e de presença ausente. Existe apenas um sexto Nocturne. O sexto Nocturne é único e não envelhecerá jamais. Esse divino Nocturne inunda nossos corações”.

Duas das obras mais significativas do vasto repertório para piano de todos os tempos são, a meu ver, o Nocturne op. 63 em Ré bemol Maior e a Ballade op.19 para piano solo.

Clique para ouvir, de Gabriel Fauré, a Ballade op.19, recém inserida no Youtube, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=5aWE9J_WBZQ

É motivo de alegria homenagear Gabriel Fauré no centenário de sua morte com obras que permanecem como criações inefáveis.

Five hundred years ago, I paid tribute to Gabriel Fauré on the fiftieth anniversary of his death with recitals at MASP in São Paulo and in various Brazilian cities. The “Quinto Encontro privé” honors the centenary of the French Grand Master’s death. Regina participates in the recital with expressive works.