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Originalidade e revisita a procedimentos anteriores

Chamam-me revolucionário, mas não inventei nada.
No máximo, apresentei coisas antigas de uma nova maneira.
Não há nada de novo na arte.
Os meus encadeamentos musicais, entendidos tão diversamente, não são invenções.
Todos, eu já os ouvira. Não nas igrejas. Em mim mesmo.
A música está em toda parte.
Não está reclusa nos livros. Está nos bosques, nos rios e no ar.

Claude Debussy (1862-1918)
(“Monsieur Croche” et autres écrits. Gallimard, 1987))

O terceiro artigo publicado nos Cahiers Debussy (nº14, 1990) versou sobre Le langage pianistique des deux dernières Sonates. O ano de 1915 foi crucial para Debussy. Já a sofrer de um câncer que o levaria à morte em 1918, compõe algumas das suas mais importantes obras: En Blanc et Noir para dois pianos, a Sonata para violoncelo e piano e, creio eu, a sua mais importante composição para piano, os 12 Études. Não sem razões, Debussy escreve ao seu editor Jacques Durand após findar os Estudos: “escrevi como um louco ou como aquele que deve morrer no dia seguinte”, frase que inseri no post anterior. Essas três composições foram criadas entre junho e Outubro de 1915, sendo que a Sonata para violino e piano foi composta durante um período mais longo, Outubro de 1916 a Abril de 1917. No que concerne às duas Sonatas mencionadas, deveriam integrar o projeto de Six Sonates pour divers instruments, que só não chegaram a termo mercê do progressivo e irremediável mal que o acometeu. Intermediando essas duas, Debussy compõe a Sonata em trio para flauta, viola e harpa, no final de 1915.

É comum que autores em todas as artes relembrem criações anteriores quando de obras posteriores, máxime no caso de proximidade temporal menor. Sob outro aspecto, da juventude da idade madura à plena maturidade, no âmbito das artes o compositor pode, ao longo da existência, sentir diferenças no tratamento da sua escrita, o que o leva a se distanciar diametralmente de suas criações do passado. No blog sobre Debussy e Scriabine, menciono as transformações plenas na escrita do compositor russo durante toda a sua trajetória (18/10/2025).

A presença precisa em 1915 de títulos abstratos, retomando, sob outra égide, a praticada de 1880 a 1901, estaria a revelar prioritariamente, da parte de Debussy, sua preocupação formal. No longo período que se estende até 1915, a técnica pianística estaria mais voltada à resultante sonora, parte dela consequência da atração do compositor pela poesia, mormente nos andamentos mais moderados. São inúmeros os “achados” sonoros decorrentes da incessante busca da “beauté du son”. No que concerne aos andamentos rápidos, os esquemas são menos variados, testemunhando provavelmente, por parte de Debussy, a necessidade de aplicar procedimentos que lhe eram familiares e que se adaptavam bem às suas mãos de pianista. Debussy não tinha uma técnica pianística transcendental, evitando situações que pudessem ser embaraçosas quando das raras apresentações públicas ou privadas.

Nas duas obras capitais para piano solo e dois pianos, os 12 Études e En Blanc et Noir, respectivamente, Debussy busca em princípio utilizar modelos da técnica pianística nos seus limites possíveis. Não escreveria ao seu editor Jacques Durand, a respeito dos Études: “Esteja certo de que meus dedos param às vezes diante de certas passagens. Sinto necessidade de retomar a respiração como após uma ascensão… na verdade, esta música paira sobre os cimos da execução! Haverá belos recordes a alcançar” (28/08/1915).

Da Sonata para violoncelo e piano, que precede em pouco mais de um mês o início da criação dos Études, Debussy “extrai” alguns modelos técnico-pianísticos para certos Études: Pour les huit doigts, Pour le agréments, Pour les notes répétées e Pour les sonoritées oppósées. Observa-se que a linguagem pianística idiomática de Debussy contém fórmulas e modelos que, conservando uma estrutura bem próxima, apresentam, contudo, ligeiras modificações em função da textura musical em permanente renovação, máxime nos andamentos mais lentos, quando são explorados modelos como organização dos acordes, planos sonoros contrastantes, justaposição de ritmos diferenciados. Não obstante, Debussy escreve sobre o manuscrito da Sonata para violoncelo e piano: “Que o pianista não se esqueça jamais que não deve jamais lutar contra o violoncelo, mas o acompanhar” (Léon Vallas, Claude Debussy et son temps, 1958).

Clique para ouvir, de Debussy, a Sonata para violoncelo e piano, na gravação histórica (1961) do violoncelista Mstislav Rostropovich (1927-2007), tendo ao piano o compositor e pianista Benjamin Britten (1913-1976):

https://www.youtube.com/watch?v=UC1H73551gE

No artigo publicado nos Cahiers Debussy (nº15) apresento 31 exemplos musicais, salientando a presença do passado tanto remoto como recente, assim como a revisita ao lúdico expresso em criações anteriores, máxime após o nascimento da filha Claude-Emma, a sua Chouchou.

Em La Boîte à Joujoux, parte do tema do post anterior, observa-se o nítido sentido lúdico instaurado em 1913 nesse verdadeiro catálogo do gênero. Detectam-se, nos dois movimentos médios das Sonatas, “lembranças” de La Boîte à Joujoux. Alguns elementos das Sonatas lembram esquemas do Ballet pour enfants, outros são, dir-se-ia, transplantados. Um dos interesses do artigo em pauta residiu na integração do timbre do piano aos do violoncelo e do violino, permitindo até uma avaliação nos aspectos voltados à interpretação e à análise, no desiderato de melhor apreender o timbre no conjunto das obras para piano de Debussy. Tem interesse um comentário de um dos intérpretes da Sonata para violoncelo e piano, Louis Rosoor, que fez inserir nos seus programas comentário de Debussy sobre o segundo andamento da Sonata, a Sérénade: “Pierrot acorda com um sobressalto, sacode o seu torpor. Ele corre para fazer uma serenata à sua amada, que, apesar das suas súplicas, permanece insensível. Ele consola-se do seu insucesso cantando uma canção de liberdade”. Saliente-se que Pierrot e a boneca são personagens essenciais de La Boîte à Joujoux. Em carta ao seu editor Jacques Durand, de 17/10/1916, Debussy protestou com veemência desse abuso de confiança.  Na Sérénade, há “vestígios” de La Danse de Puck (Préludes, 1º livro) e Hommage à S.Pickwick Esq. P.P.M.P.C. (Prèludes, 2º livro). Verifica-se que é nos movimentos intermediários das duas Sonatas que mais acentuadamente se realiza a impregnação do mundo infantil.

Clique para ouvir, de Debussy, a Sonata para violino e piano, na gravação histórica (1940) do violinista Joseph Szigeti (1892-1973) e do compositor e pianista Béla Bartok (1881-1945):

https://www.youtube.com/watch?v=6_wM5R6ZCBU

Numa época dolorosa da existência, física e moralmente, as reminiscências de Debussy testemunham de maneira significativa a sua vontade desse retorno ao universo lúdico através das ideias encontradas no seu código pianístico. Escreve: “Se devo desaparecer proximamente, quero ao menos tentar fazer o meu dever”. E logo após: “Confesso que perco dia após dia a minha paciência colocada um pouco à prova; é de se perguntar se esta doença não é incurável” (03 e 08/06/1916). Essas confissões não revelariam a consciência da morte próxima e a necessidade de regressar aos valores do passado? Os últimos anos de produção não teriam se caracterizado por uma releitura autocrítica de procedimentos nos quais foi pioneiro? O caráter lúdico, exposto em uma estrutura formal quase clássica, não estaria obedecendo à tradição observada em tantos compositores no sentido de uma re-visitação aos modelos tradicionais? Jean Chantavoine e Jean Gaudefroy-Demombynes observam que “a maioria dos grandes compositores românticos evoluíram, como Goethe, do romantismo ao classicismo ou a uma espécie de neoclassicismo do romantismo”. (“Le Romantisme dans la musique européenne”, 1955). Logicamente, sem ser um romântico, Debussy não teria realizado esse retorno aos modelos mais tradicionais? Esse regresso às formas que frequentou, o estabelecimento de um vasto catálogo de expressões musicais mais abstratas e mais frequentemente utilizadas, ou mesmo o recurso ao seu próprio catálogo idiomático da técnica pianística não testemunham em Debussy uma derradeira concentração? De acréscimo, o piano não foi sempre, antes de qualquer outro, o seu instrumento íntimo, como o foi, como exemplo, para Chopin, a quem ele dedica sua obra maior e testamentária para o instrumento, os 12 Études?

Seria possível entender que foi entre 1915 e 1917, com En Blanc et Noir, a Sonata para violoncelo e piano, os Estudos e a Sonata para violino e piano, que Debussy melhor elaborou o seu código pianístico, mercê igualmente de uma percepção outra do timbre instrumental.

In 1915, Debussy, already suffering from the illness that would lead to his death in 1918, composed some of his essential works: En Blanc et Noir for two pianos, Sonata for Cello and Piano, 12 Études, and, between 1916 and 1917, Sonata for Violin and Piano. He drew on a piano idiom that he had used throughout his career, particularly models taken from some of his Préludes and La Boîte à Joujoux.

A proximidade de duas visões do universo infantil

A vida, onde quer que ela se manifeste;
a verdade, por mais amarga que seja; palavras sinceras e ousadas,
dirigidas aos homens sem rodeios: eis o meu ponto de partida,
eis a que aspiro e temo falhar.
É nessa direção que sou empurrado,
é assim que permanecerei.
Modest Moussorgsky (1839-1881)
Carta ao amigo Vladimir Stassov (1824-1906)
(7 de Agosto de 1875)

Defendamos que a beleza de uma obra de arte permanecerá sempre misteriosa,
ou seja, nunca poderemos verificar exatamente «como é feita».
Preservemos, a todo o custo, essa magia peculiar à música.

Por sua essência, ela é mais suscetível de contê-la do que qualquer outra arte.
Claude Debussy (1862-1918)
(“Monsieur Croche et autres récits”)
(15 de Fevereiro de 1913)

Os Cahiers Debussy (nº 9) publicaram, em 1985, artigo a versar sobre “La vision de l’univers enfantin chez Moussorgsky et Debussy”. Nele busquei uma outra importante relação de Debussy com uma criação maiúscula para piano de Moussorgsky. Anteriormente, estudos de ilustres musicólogos apontaram comparações claras entre as óperas Boris Godounov, do compositor russo, e Pélleas et Mélisande, de Debussy, assim como do ciclo de canções Chambre d’enfants, com texto e música de Moussorgsky, com Children’s Corner para piano, de Debussy. É Moussorgsky que tardiamente escreverá: “Minha relação familiar com a niania (babá) me iniciou precocemente a todos os contos russos. Era ainda menino e esses contos russos muitas vezes me impediam de dormir”.  E as babás cantavam para os miúdos, músicas do cancioneiro voltado à infância.

Quanto a Debussy, o universo infantil terá influência em algumas das suas criações. O fato de ter continuado a viver com os seus pais, enquanto dois irmãos foram educados por uma tia; a razão de ter sido filho primogênito e o preferido; a ausência da escola primária, sendo transparente a influência materna (mãe e professora) que o iniciou no aprendizado não musical; a prisão do seu pai durante a Commune em 1871, tudo contribuiu para torná-lo, em certa dimensão, o homem da casa.  Dois momentos seriam decisivos para a compreensão da sua infância, que, saliente-se, seria mantida em segredo. Episódios fulcrais fizeram-no se amalgamar ao universo infantil: o ciclo de canções Chambre d’enfants, de Moussorgsky, e o nascimento de sua filha Claude-Emma, a sua Chouchou (1905-1919). Debussy considerava Moussorgsky “um dos mais importantes compositores contemporâneos, talvez o maior.” (René Peter, Claude Debussy, Paris, 1944). Escreveria para a Revue blanche: “Ninguém falou mais àquilo que de melhor existe em nós e com um acento mais carinhoso e profundo; ele é único e continuará a sê-lo por sua arte sem artifícios, sem fórmulas enfadonhas” (15/04/1901).

Clique para ouvir, de Moussorgsky, do ciclo Chambre d’enfants, Cavaleiro, na interpretação de Elly Ameling, tendo ao piano Rudolf Jansen:

https://www.youtube.com/watch?v=a8fRmlCmnG8&t=807s

Observa-se, em alguns títulos de obras para piano de Debussy, a visitação ao universo infantil, como em Nous n’irons plus au bois; Do,do, l’enfant dormira bientôt e Au clair de la lune, que fazem parte do repertório das canções destinadas à infância. Em 1915, Debussy comporia Noël des enfants qui n’ont plus de maisons.

Com o nascimento de Chouchou, alguns dos segredos mantidos no de profundis de Debussy relacionados à sua infância começam a aflorar. Children’s Corner et La Boîte à Joujoux (ballet pour enfants) são dedicadas à sua filha e, nessas criações, a aproximação com Moussorgsky se torna evidente.

Quanto aos Quadros de uma Exposição, obra essencial de Moussorgsky e um dos ícones da literatura pianística, foi composta em 12 dias de um só élan. Moussorgsky escreve ao seu amigo Vladimir Stassov (1824-1906) aos 12 de Junho de 1874 e menciona inicialmente a sua ópera Boris Godounov: “Hartmann ferve como ferveu Boris. Os sons e as ideias se me apresentam como pombos grelhados”. A exposição de aquarelas, de projetos e maquetes em homenagem ao seu saudoso amigo Victor Hartmann (1834-1873) suscitou um período de produção alucinante. Moussorgsky perpetua em sua obra a tradição narrativa, transmitida desde a infância pela sua niania e assimilada de maneira indelével. O compositor transforma os resultados pictóricos de Hartmann, após inúmeras visitas à mostra, em fio condutor claro, através da observação minuciosa do Promeneur, esse visitante presente em muitas variações do tema a anteceder ou integrar episódios dos Quadros de uma Exposição. “Minha fisionomia aparece nos intermédios”, escreve. Stassov relata “Ele se representa a caminhar pela exposição, lembrando-se por vezes com alegria, outras com tristeza, do grande artista que morrera”.

A visita às aquarelas de Hartmann resulta no retorno à infância do músico russo. É tão evidente essa amálgama aquarela-criação musical em quadros como Gnomus, Tuilleries (crianças a brigar enquanto brincam), Balé dos pintinhos em suas cascas, a Cabana sobre patas de galinha (Baba-Yaga), e outros mais até com certo humor, como Limoges (A praça do mercado – a grande nova ou Samuel Goldenberg e Schmuyle (o judeu rico e o judeu pobre). Quanto às Catacumbas (de Paris e Com mortuis in língua mortua, Stassov relata observação do compositor: “O espírito criador de Hartmann me conduz em direção aos crânios, endereçado a eles, e os crânios começam a brilhar docemente”.Moussorgsky, em sua plenitude russa, mas a admirar a cultura francesa (TuilleriesLimoges), não evidencia  no quadro final, A Grande porta de Kiev, lembrança, consciente ou não, da célebre canção popular francesa Frère Jacques? A semelhança dos temas, a lembrança dos sinos, nos dois casos, não têm uma clara conotação com a infância?

Insiro neste post, com um propósito definido, o tema de Frère Jacques e, após, compassos dessa canção e o início da Porta de Kiev, que ilustram o artigo em pauta.

Faço um parêntesis. Uma de nossas netas, Valentina, perguntou-me, após ficar surpresa ao saber dessa “descoberta”, se ela já era de domínio público. Acessou o meu computador e a pergunta formulada em francês teve a resposta na mesma língua, via IA:

“Não, José Eduardo Martins não demonstrou que a Porta de Kiev de Moussorgsky se inspirou em Frère Jacques no Cahiers Debussy nº 9. A afirmação é falsa. Na realidade a ligação entre essas duas obras musicais é uma ideia que circula na internet, mas ela não é sustentada por nenhuma publicação acadêmica ou musicológica séria, nem pela análise de José Eduardo Martins.

A semelhança sonora percebida entre as duas melodias, especialmente na versão orquestral de Ravel, é uma coincidência e não uma intenção do compositor. Moussorgsky utilizou sinos russos e um canto ortodoxo para a peça, e não uma canção infantil francesa.

Erro de fato: a afirmação é falsa
Nenhuma prova: Não existe nenhuma publicação acadêmica credível que sustenta essa hipótese.
Ideia errada: A ideia de uma inspiração é um rumor circulando na internet sem fundamento real.
Frère Jacques: esta canção é uma melodia francesa que não tem ligação com a obra de Moussorgsky.

Entendo como um absurdo. Quando demonstrei ao Diretor do Centre de Documentation Claude Debussy, em Paris, o notável musicólogo e bibliotecário François Lesure (1923-2001), autor de livros referenciais sobre Debussy, da catalogação de sua obra e da reunião da correspondência, comparando o tema grandioso da Grande Porta de Kiev com a canção popular francesa Frère Jacques, mormente após ter-me debruçado sobre vários livros confiáveis a respeito de Moussorgsky, máxime o fruto da sua vocação epistolar expressiva, e de ter apresentado em público a integral para piano do compositor russo e também a de Debussy; François Lesure, em sua sala no Centre de Documentation Claude Debussy, 2, rue Louvois, disse-me surpreso: “Voilà, c’est l’oeuf de Colomb”, convidando-me de imediato para escrever o artigo sintetizado neste post. A Inteligência Artificial, ao declarar que “…ela não é sustentada por nenhuma publicação acadêmica ou musicológica séria”, não apenas desconhece a importância dos “Cahiers Debussy”, a mais respeitável publicação mundial sobre Claude Debussy, como afirma ser falsa a minha constatação. Reitero a minha indignação pelas informações sem fundamentos dessa ferramenta que, bem ou mal, veio para ficar, a IA. Por acaso pesquisaram os escritos de Moussorgsky relacionados à sua infância e suas composições voltadas ao universo infantil? Independentemente de Chambre d’enfants e dos Quadros de uma Exposição, tem-se para piano:  Lembrança da infância, Brincadeira de crianças no recanto, Brincadeiras de crianças (2ª versão), A babá e eu, A primeira punição, evidenciando esse verdadeiro culto à infância potencializado no ciclo de canções Chambre d’enfants e nos Quadros de uma Exposição. Maior clareza do que a semelhança temática mencionada, parece-me impossível. Reitero as palavras do Mestre François Lesure, “Ovo de Colombo”. Após recital que dei em Gent, na Bélgica, quando do lançamento do CD Moussorgsky-Debussy pelo selo De Rode Pomp, conversei com músicos russos que estavam se apresentando na temporada da organização. Concordaram vivamente, mas ficaram atônitos pelo fato da passagem de bem mais de um século sem que alguém constatasse o fato.

Clique para ouvir, de Modest Moussorgsky, Quadros de uma Exposição, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=dDr75RcRNDw

No que se refere às lembranças dos Quadros de uma Exposição em La Boîte à Joujoux, debrucei-me em blogs anteriores sobre a temática e indico: “Centenário de La Boîte à Joujoux de Debussy (04/01/2014)”; “Concerto na Maison Natale de Claude Debussy, (12/01/2014)”; “La Boîte à Joujoux no Youtube (12/02/2022)”. Quanto à obra maiúscula para piano de Moussorgsky, há o blog “Quadros de uma Exposição” (01/06/2013).

Que Debussy, admirador confesso de Moussorgsky, apreende eflúvios de algumas de suas composições, como Boris GoudunovChambre d’enfants e os Quadros de uma Exposição, é evidente, e a vasta correspondência que deixou testemunha o apreço. Desta última obra, escreve seu amigo Robert Godet (1866-1950): “Já condenado à morte pelo mal que o atingiu, uma de suas últimas joias musicais veio-lhe dos Quadros de uma Exposição”. Um de seus biógrafos, Léon Vallas (1879-1956), observa em Chimène apreensões vindas dos Quadros… (Rodrigue et Chimène, ópera não concluída por Debussy) Outro estudioso, André Schaeffner (1895-1980), menciona parentesco de Tuilleries com o estilo de Debussy. Observa igualmente que “Yniold é o personagem mais moussorgskiano de Pélleas et Mélisande; Constantin Brailoiu (1893-1958) compara Promenade, dos Quadros…, com o Prelúdio Canope de Debussy. Seriam essas sábias afirmações negadas pela IA?

Tendo executado em público as integrais para piano dos dois compositores, o tempo foi responsável pela captação das duas linguagens distintas. Intrigaram-me determinadas intenções de Debussy, conscientes ou não, quando da criação de  La Boîte à Joujoux, que se materializaram, potencializando ainda mais a sua admiração por Moussorgsky.

A presença, em La Boîte à Joujoux, de lembranças dos Quadros de uma Exposição se dá não apenas sob o aspecto musical, mas também de apreensão outra. Debussy, tendo em mente sempre a filha Chouchou, compôs para piano La Boîte à Joujoux, proposta para um balé infantil a partir das aquarelas e roteiro de André Hellé (1871-1845). Orquestrada por André Caplet (1878-1925), só foi apresentada em 1919, um ano após a morte do compositor. Nos Quadros de uma Exposição, tem-se cenas isoladas ligadas por um leitmotiv que atravessa a criação, o tema da Promenade ― visitante da exposição ― em sua apresentação original ou modificado. Quando lembranças dos Quadros se apresentam em La Boîte à Joujoux, pelo fato de haver o texto que indica a ação (música programática), a fluidez não permite a longa duração da lembrança. Não obstante, os temas dos personagens principais do enredo, boneca, polichinelo, soldado e flor, esta representada por uma pausa de semínima em pp decrescente, povoam La Boîte

São várias as aproximações a sugerir a admiração de Debussy pelos Quadros de uma Exposição. No artigo em pauta saliento algumas relacionadas à temática, às harmonizações de segmentos, que lembram algumas realizadas por Moussorgsky, procedimentos de frases musicais quando cenas têm certas afinidades. Nesse artigo, apresento inúmeros exemplos musicais dos dois compositores, sugerindo que, na elaboração de La Boîte à Joujoux, os Quadros de uma Exposição estiveram, conscientemente ou não, gravitando no pensar de Debussy.

Na comemoração do centenário de La Boîte à Joujoux, recebi convite da  diretora da Maison Natale Claude Debussy, em Saint-Germain-en-Laye, para um recital a comemorar o centenário de La Boîte à Joujoux. Comoveu-me a escolha. Propus La Boîte à Joujoux e os Quadros de uma Exposição, apresentação precedida de comentários, nos quais evoquei meu posicionamento sobre essas duas obras.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, La Boîte à Joujoux, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=0nGug1ZFxKU

 

No próximo blog farei a síntese do meu artigo publicado em 1990 nos Cahiers Debussy (nº 14), em que apresento ideias de La Boîte à Joujoux que seriam lembradas nas Sonatas para violoncelo e piano e para  violino e piano de 1915, dois anos após La Boîte

Mussorgsky’s Pictures at an Exhibition and Debussy’s La Boîte à Joujoux have a certain identity in their evocations from childhood. Debussy would recall Pictures at an Exhibition when composing his own work belonging to the childhood universe, a creation dedicated to his daughter Chouchou.

Aspectos comparativos nas linguagens pianísticas

Pessoalmente, estou ansioso por encontrar tudo o que me falta
e angustiado por terminar qualquer coisa, a qualquer custo!
É uma doença curiosa que Leonardo da Vinci tinha.
Só que, ao mesmo tempo, ele era um génio. Isso facilita muitas coisas.
Eu me contento em ter uma paciência incansável,
o que, como dizem, às vezes pode substituir o gênio.
Claude Debussy (1862-1918)

Desejo ação, quero saciar-me dessa ação.
A ação é criação – criação de algo novo – diferenciação – individualização.
Afasto-me de algo, como oposição a isso, como diferenciação,
como nova individualidade, – sacio-me dessa atividade,
sinto felicidade e, novamente, caio na indiferença.
Alexandre Scriabine (1872-1915)

Dos seis artigos que escrevi para os Cahiers Debussy, publicação do “Centre de Documentation Claude Debussy”, Paris, “Quelques aspects comparatifs dans le langage pianistique de Debussy et Scriabine” foi o primeiro e data de 1983 (nº7). Apresento neste espaço uma síntese do artigo.

Despertou-me vivo interesse o fato de três respeitáveis musicólogos, V. Fédorov, J. Kremlev e Edward Lockspeiser, terem sugerido, no colóquio “Debussy et l’évolution de la musique au XXème siècle”, organizado em Paris pelo Centre Nationale de Recherche Scientifique (C.N.R.S.) em 1962, pesquisas relacionadas às relações entre os dois compositores. Foi naquela década que paulatinamente incorporei obras dos dois notáveis músicos no meu repertório: de Debussy, a edificação da opera omnia para piano (1982) e, progressivamente, parte considerável da criação de Scriabine, como a integral dos Estudos e dos Poemas, duas das dez Sonatas e obras avulsas. À medida que penetrava nessas composições para piano do maior quilate, mais encontrava determinados traços que, sob égides específicas, poderiam estabelecer comparações entre as linguagens dos dois compositores.


Primeiramente, os caminhos composicionais de Debussy e de Scriabine. Das primeiras composições até o início do século XX, Debussy é bem tradicional. Mas, a partir de D’un cahier d’esquisses e das Estampes (1903), e dos dois cadernos de Images (1904-1907), notam-se preocupações voltadas à busca de sonoridades diferenciadas, o interesse maior pelas baixas intensidades – aproximadamente 80% da obra para piano entre p e pp -, a captação de aspectos da natureza como Reflets dans l’eau, a passagem do vento nos Préludes (1909-1912), Le vent dans la plaine ou a sua história Ce qu’a vu le vent d’ouest, movimentos que podem ser sintetizados em Mouvement (1904), do 1º caderno de Images, ou no Estudo Pour les huit doigts (1915). A poética está sempre presente na obra de Debussy. Não escreveria em Outubro de 1915 ao regente Bernardo Molinari: “Que beleza há na música ‘por si só’, aquela que não é um preconceito, uma busca para surpreender os chamados ‘diletantes’… A emoção total que ela contém é impossível de se encontrar em qualquer outra arte, não é verdade? Estamos ainda na ‘marcha da harmonia’, e raros são aqueles a quem basta a beleza do som”, referindo-se às “amarras” da harmonia, sistema que trata da formação e encadeamento dos acordes obedientes à tonalidade. A célebre Clair de lune (1990) e Les terrasses des audiences du clair de lune (1912), logicamente diferentes no tratamento, têm poética bem próxima. A atitude frente à poesia esteve presente desde o início da juventude madura e a ligação de Debussy com os poetas do passado e aqueles com os quais conviveu propiciou a inserção de precioso material nas suas criações destinadas ao canto e piano. Em 1915, ao compor En Blanc et Noir para dois pianos e os extraordinários 12 Études, Debussy se apresenta mais hermético e abstrato e observa a respeito dos Estudos: “escrevi como um louco, ou como aquele que deve morrer no dia seguinte”, em carta ao seu editor Durand. Não obstante, é possível reconhecer, em criações tardias para piano, traços da sua linguagem musical bem anterior, a salientar sempre essa busca da “beleza do som”.

Duas composições feéricas, L’Isle Joyeuse (1904), de Debussy, e Poème Tragique (1903), de Scriabine, duas origens distintas. Contudo, apesar das diferenças escriturais, fazendo parte do contexto de um período.

Clique para ouvir de Claude Debussy, L’Isle Joyeuse na interpretação de J.E.M., em gravação ao vivo na Concertzaal Parnassus em Gent, Bélgica (Fevereiro de 2009):

https://www.youtube.com/watch?v=58P13OaRfxM&t=17s

Clique para ouvir de Alexandre Scriabine, Poema Trágico, op. 34, na interpretação de J.EM.,

https://www.youtube.com/watch?v=K0k7wUwHAn8&t=1s

Os caminhos de Scriabine foram bem compartimentados e não tiveram o fluxo detectável durante basicamente todo o percurso composicional de Debussy. De uma fase plena de um romantismo intenso, tributo sensível ao legado de Chopin inicialmente e, numa fase intermediária, ao de Liszt, Scriabine compõe, a partir do início do século XX, essencialmente movido por uma amálgama do pensamento místico-filosófico, obras que se encaminham sempre mais acentuadamente para os seus aprofundamentos extramusicais, o que faz com que basicamente não se possa entender as criações tardias como sendo do mesmo compositor. Hugh Mac Donald afirma que “a distância entre Prometheus (1910) e a Primeira Sinfonia (1899-1900) é incomensurável e mal se pode reconhecer como obras de um mesmo compositor” (“Skrjabin”, London, 1978). Marina Scriabine, filha do compositor, escreve: “É preciso compreender que nós não estamos diante, em se tratando de Scriabine, de duas atividades distintas e paralelas, de uma parte a criação musical, de outra a especulação filosófica. Existia uma experiência única, o nascimento, no seio de uma tensão espiritual contínua, de um pujante desbordamento criador que se manifestava nas formas musicais, poéticas ou filosóficas, sendo que nenhuma era a tradução ou a adaptação da outra, mas que se apresentavam como signos polimorfos de uma realidade interior.” Scriabine costumava dizer: “Eu não vivo que no futuro”.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, Vers la Flamme op. 62 (1912), na interpretação de J.E.M. Vers la Flamme é exemplo transparente do estágio composicional de Scriabine imbuído dessa apreensão místico-filosófica. Gravação realizada ao vivo no Convento Nª Senhora dos Remédios, em Évora, Portugal, 2017:

https://www.youtube.com/watch?v=wdgfEnv51MI

Nos 12 Études, Debussy é hermético e abstrato. Escreve ao seu editor Jacques Durand, pouco antes de finalizá-los: “Esteja certo de que meus dedos param às vezes diante de certas passagens. Sinto necessidade de retomar a respiração como após uma ascensão… na verdade, esta música paira sobre os cimos da execução! Haverá belos recordes a alcançar… Não duvide, Jacques, eles contêm ardente rigor”.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude Pour les huit doigts” (1915), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=D85tz0ibqRk&t=2s

Em relação à terminologia destinada à compreensão do conteúdo musical, Debussy e Scriabine, sem se conhecerem, empregam termos ou frases praticamente com o mesmo sentido. No Cahier Debussy mencionado, inseri uma tabela que bem exemplifica essa proximidade terminológica:

À medida que as linguagens de Debussy e Scriabine se revelam em nível pianístico e também orquestral, percebe-se que, por coincidência, a dinâmica, as mudanças de movimento, a articulação e o timbre, resultando na «beleza do som», explicados por uma certa terminologia, conferem à textura musical (quase sempre observada, nas análises tradicionais, como melodia, modalidade, tonalidade, harmonia e ritmo), uma dimensão que ainda demandará pesquisas aprofundadas.

The article “Some Comparative Aspects of Debussy and Scriabin’s Piano Languages” was published in Cahiers Debussy (No. 7) in 1983, a publication of the Centre de Documentation Claude Debussy, Paris.