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Aspectos da Divulgação

Nunca vemos fenómenos puros;
todo o fenómeno que nós observamos e que descrevemos para os amigos,
excepto quando é matemática pura, nunca é um fenómeno.
É uma autobiografia nossa,
é uma confissão
daquilo que nós somos e que vemos tal coisa desta ou daquela maneira,
diferente de outros.
Agostinho da Silva

Tenho apresentado ao longo desses anos posições a respeito da obra  e da sua divulgação. Incluo a produção artística, literária e o intérprete, no caso da área da música. Incontáveis as mensagens recebidas comentando a ventilação maior ou menor da obra conclusa ou do intérprete que a divulga. A sociedade, voltada mais aceleradamente à massificação, tende a concentrar seus interesses em nomes precisos. A proliferação dos criadores da produção artística não impacta vivamente os mantenedores do status quo. Preferem o aumento do público àquele de quem cria. Resulta na concentração de nomes. Divulgar autores “seletivos”, tantas vezes impostos por interesses de toda ordem – empresários, mídia, editoras, gravadoras -, tem sido constante, mormente a partir da segunda metade do século XX, marcada por progressiva edificação de “ídolos”, muitos deles com pés de barro. Descoberta a mina, essa é explorada à exaustão.

O tema vem a propósito de pergunta que me foi colocada por uma das senhoras integrantes da Associação de Escritores de Bragança Paulista. Lera o prefácio de “Domador de Sonhos”, de Norberto de Moraes  Alves, publicado no último blog.  “Se Norberto é tão bom em tantas obras, como de fato é, não pareceria injusta a pouca divulgação em outros meios de comunicação?”. Só posso tristemente concordar. Razões são muitas, a partir da geografia.

O eixo São Paulo-Rio de Janeiro prioritariamente abriga considerável porção da atividade artística em suas programações, assim como das editoras mais afamadas. Decorreria a permanência junto à mídia daqueles “protegidos” por esse sistema centralizado. Espaço menos amplo tem sido destinado para a divulgação não apenas da produção artística como da editoração dos “não abrigados” pelo sistema. Recolhem-se estes às pequenas salas de espetáculo, diria espaços de “resistência” e às editoras pequenas, que lutam com dificuldades. Esforços hercúleos podem ser sentidos em numerosas cidades de nosso extenso mapa. Mantêm  orquestras, corais, “importando” intérpretes daquele eixo, assim como dão guarida às minúsculas editoras, tantas delas de grande mérito. E o que se assiste, em acréscimo, é a visita a essas editoras de escritores e poetas de grande mérito, que sabem não ter acesso às grandes empresas editoriais. É um círculo bem vicioso. Reúnem-se esses autores dessas cidades menores, à semelhança das capitais e cidades com maior adensamento populacional, em meritórias Academias de Letras. Melhores ou piores? Diria que, mesmo na Academia Brasileira de Letras, tantos por que lá passaram estão “imortalizados” apenas nas atas e nos números das cadeiras que ocuparam. As pequenas Academias, proporcionalmente, obedecem ao mesmo fluxo da meritocracia maior, menor ou até inexistente. Todavia, a exemplo de nosso personagem real Norberto de Moraes Alves, quantos não foram realmente bafejados pelas musas?

No que concerne a literatura, o que se assiste nos países de língua portuguesa, de maneira bonita, despojada, saudosista e, paradoxalmente, esperançosa, é a presença de inúmeros autores de raro valor que permanecem com obras editadas em pequenas tiragens, que testemunham o pulsar poético-literário que jamais fenece. Tive a oportunidade de ler livros de poemas de minúscula tiragem editados em Portugal – incluindo o fertilíssimo veio poético dos Açores -, assim como em Cabo Verde, Moçambique e Angola e impressiona-me a natural inclinação ao verso. Infelizmente, muitos autores desaparecem levados pelas torrenciais chuvas da vida cotidiana. Por vezes, um é pinçado, mercê do acaso ou de tantos outros fatores claros ou estranhos. Em recente post abordei “O Canto da Palavra”, de Idalete Giga, alentejana como Florbela Espanca, esta que tem sido, felizmente, estudada e divulgada mais acentuadamente. Idalete Giga, em versos despojados, conta-nos o pulsar alentejano. Entre outros poetas e contistas de tendências várias já resenhei livros de José Paulo Paes (extraordinário poeta e tradutor, tão pouco mencionado atualmente), do catalão Joan Reventós i Carner (o magnífico “Os Anjos não Sabem Velar os Mortos”), do português António Menerez (“Crônicas contra o Esquecimento”), dos irreverentes Betho Iesus  (“A Casa de Vidro”) e Luca Vitali (“Amo-Te-Me”). Claramente, na categoria da ampla divulgação, autores são “ungidos” pela mídia graças a um sem número de fatores influentes, não se descartando as possibilidades financeiras. Expostos ao público, são ventilados e recebem atenção. Melhores dos que os tantos meritórios das pequenas tiragens? Tenho lá minhas dúvidas. Esses permanecerão ocultos e, raramente, a história, em seu fluxo “arqueológico”, redescobre e revela com trombetas obras de valor. Cora Coralina (1889-1985), poetisa da gema, não poderia estar esquecida não tivesse a segunda edição de “Poemas de becos de Goiás e estórias mais”, de 1978, saudada pelo extraordinário Carlos Drummond de Andrade em 1980? “Se há livros comovedores, este é um deles”, escreveria o poeta. Quantas sensíveis Coras não existem nos rincões que abrigam a língua portuguesa? A notoriedade, nem sempre merecida, leva à acolhida de escritores, pintores e músicos. Seriam necessárias as apreciações de outros Drumonds, assim como razões várias para que haja recepção por parte dos produtores.

Se Norberto de Moraes Alves é admirado pela comunidade dessa Bragança Paulista, pela qual particularmente tenho um afeto especial, urgiria divulgar seus livros. Como e quando? Pergunta que ficaria sem resposta, hélas.

Talentos existem espalhados pelo imenso país. Escritores e poetas têm a possibilidade de realizar prazerosas tertúlias em incontáveis cidades menos adensadas e não raramente desponta um mais privilegiado pelas musas. Essas reuniões os motivam ao constante ato de escrever. Na música e na pintura a proximidade dos centros maiores torna-se imperativa para a divulgação. O intérprete tem de estar em constante contacto com centros maiores, sob o risco de estiolar-se, mormente na juventude. Poder-se-ia dizer o mesmo em relação à pintura e à escultura. Contudo, os mecanismos que levam ao conhecimento público são basicamente idênticos, a envolver empresários, mídia, profissionais de divulgação, marchands, patrocínio, recursos… Se o mérito intrínseco independe tantas vezes dessas convergentes, intérpretes musicais meritosos podem passar a existência numa nostálgica penumbra, se não estiverem em contato permanente até a juventude da idade madura com centros avançados, quase que obrigatoriamente do Exterior. Seria claro entender também que a índole do músico intérprete pode estar voltada unicamente à qualidade, distanciando-se voluntariamente da cultura de massas. Na Europa, como exemplo, quantos não são os intérpretes excepcionais que preferem o aprimoramento apenas e não a busca dos holofotes, restringindo-se suas apresentações a territórios por eles escolhidos. Mestres impecáveis vivendo em cidades pequenas, vilas ou aldeias. Frise-se que essa atitude individual, intransferível e voluntária só é possível após a assimilação plena da linguagem musical, ou seja, na maturidade do ser.  Não obstante o fato do dirigismo acentuado proposto pelo sistema, temos que reconhecer que os intérpretes mais ventilados que circulam pelo planeta têm qualidades fundamentais que os recomendam.

Seria utópico pensar numa abertura a visar à meritocracia. Essa implicaria a introdução no mercado de quantidade de escritores, poetas, pintores e músicos rivalizando com aqueles, que o público conhece. E isso, nulamente, não interessa ao sistema. Lamentável, mas é fato.

The release of the book “Domador de Sonhos”, written by Norberto de Moraes Alves, in the city of Bragança Paulista last week was the starting point of this post: a reflection on the existence of talented artists whose work, by lack of distribution channels to reach wider audiences, remain hidden within the limits of their own cities.

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No link abaixo o leitor terá acesso à “Suonata Terza” das “Sonatas Bíblicas” de Johann Kuhnau, sempre sob os cuidados de meu amigo maratonista Elson Otake. Belíssima obra que ilustramos com imagens referenciais.

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Conflito Israel-Palestina e Outras Reflexões sobre Música

O Conflito Israel-Palestina e Outros Textos sobre Música

Esse conflito não é político, mas humano,
o choque radical de dois povos
que reivindicam seus direitos sobre a mesma faixa territorial,
que ambos consideram como sua pátria.
É necessário compreender a especificação histórica desses povos,
que deverão acabar por aceitar que seus destinos
são irremediavelmente misturados.
Daniel Barenboim

O conflito Israel-Palestina, que teve há poucas semanas atrás recrudescimento indescritível, tem sido um dos temas preferenciais do grande músico Daniel Barenboim, que exaustivamente tenta o utópico, o entendimento entre os dois povos conflitantes. Tanto nas conversas com Edward Said (“Parallèles et Paradoxes –  Explorations Musicales et Politiques. Entretiens”, Paris, Le Serpent à Plumes, 2003), como em “La Musique Éveille le Temps” (Paris, Fayard, 2008), o músico insiste nessa aproximação que poderia levar à Paz. No livro atual, “La Musique Est un Tout”, capítulos são dedicados ao grave problema. Judeu, obteve o passaporte palestino, mercê, em parte, da orquestra West-Eastern Divan Orchestra, a reunir músicos de várias procedências.

No discurso de Barenboim inexiste sofisma. Acredita firmemente, assim como parcela considerável de não envolvidos com os povos da região conflitante, que apenas o entendimento poderá salvar uma situação que se acentua, recrudesce e, quando luz parece dar significado à compreensão, propositadamente o conflito se expande. Se o músico não sabe quem provocou o conflito, pergunta contudo quem dará os passos que levarão ao fim desse longo derramamento de sangue. O que parece relevante é a atitude consciente de Daniel Barenboim, que entende as duas partes: “Todos os Palestinos devem reconhecer que a violência não é remédio contra os sofrimentos sob regimes de ocupação ou de exílio. Se bem que os Palestinos tenham o direito de reagir com rancor à reivindicação dos Israelenses naquilo que eles consideram como sua pátria, devem contudo admitir a existência de Israel”. Propõe o desmantelamento das colônias, mas defende fronteiras seguras anteriores a 1967, com pequenas alterações. Posiciona-se firmemente ao escrever que Israel “deve aceitar que a parte oriental de Jerusalém seja a capital da Palestina, e reconhecer que ninguém tem moralmente o direito de negar a um outro povo o direito de regressar à sua terra. Esse direito tem de ser negociado entre as partes”.

Estava a ler o capítulo “La leçon humaine de Gaza” durante os dias fatídicos que marcaram o envio de foguetes de curto alcance pelo grupo Hamas na faixa de Gaza e a represália israelense. Vários são os fatores que resultam na supremacia do Hamas sobre o El Fatah na Autoridade Palestina. Tem o primeiro um objetivo primordial, que seria o aniquilamento de Israel. Isso é fato. Seus recursos logísticos e armamentísticos correspondem à ínfima parte do poderio militar de Israel. Entretanto, Gaza não é apenas a belicosidade do Hamas.

Daniel Barenboim tem postura clara a respeito do conflito. O ensaio em apreço, publicado inicialmente na edição italiana de 2012 (“La musica è un tutto”, Milano, Giangiacomo Feltrinelli), apresenta a posição do músico, meses antes do acirramento das hostilidades em meados deste ano. Importa verificar o que pensa Barenboim a respeito do povo de Gaza, da vida cotidiana, de suas difíceis conquistas nas áreas da saúde, educação e cultura. A radiografia estende-se ao lado humano do povo de Gaza. Barenboim atinge o cerne da questão e não vê outra saída a não ser o diálogo que poderia levar à paz. Observa: “Independentemente de suas implicações políticas, de sua injustiça e da miopia que o caracteriza, a mais terrível consequência do bloqueio de Gaza empreendido por Israel, atribuindo uma culpabilidade coletiva a todo o povo, é o prejuízo que essa atitude provoca na qualidade de vida da população que lá habita. Minha experiência recente me leva a afirmar que, malgrado as condições tantas vezes insuportáveis às quais são submetidos, numerosos cidadãos de Gaza continuam cheios de esperança e de iniciativas e estão prontos para construir  um futuro melhor na paz. Não diferem de muitos israelenses. A questão, entretanto, é como encontrar meios de colocar em contato pessoas que, em fins de conta, têm aspirações análogas”. Acredita Barenboim que as aspirações palestinas “só podem ser satisfeitas pela criação de um Estado palestino autônomo e soberano”. Com a coragem que lhe é peculiar, o músico levaria sua orquestra a Gaza para concerto histórico, pois “o aspecto mais problemático de toda visita a Gaza tem sido o de passar a fronteira, mas uma das primeiras diretrizes do governo egípcio pós-revolucionário foi a de abrir a passagem de Rafah (fechada desde 2007), o que nos permitiu entrar em Gaza a partir do Egito”. Barenboim narra as dificuldades que teve. Após reunir outros corajosos músicos, integrantes da Staatskapelle de Berlin, das Filarmônicas de Berlin e de Viena, da Orquestra de Paris e do Teatro Scala de Milão, conseguiu atravessar as fronteiras, não sem restrições atemorizantes do Hamas. Lembre-se que Osama Bin-Laden morrera no dia 2 de Maio de 2011 e o concerto realizou-se no dia 3, sob os auspícios das Nações Unidas, da UNRWA e da Unesco, com a cooperação do governo egípcio. Frise-se que Barenboim elenca instituições que faziam Gaza respirar. Menciona a população de 1.200.000 habitantes e a existência de 12 universidades. Considera que “essa jovem geração de Palestinos seguiu estudos superiores, é bem informada, cheia de ambições e será chamada um dia a desempenhar papel relevante no desenvolvimento futuro da região”. Barenboim conclui que “a violência apenas obstaculiza toda legitimidade da causa palestina”.

Durante a recente crise provocada pela insanidade de membros do Hamas, lançando foguetes de curto alcance que provocaram umas poucas mortes, houve a retaliação desproporcional de Israel, ceifando centenas de vidas, entre estas as de idosos e crianças, destruindo instituições que funcionavam como hospitais, escolas, prédios e tudo que estivesse ao alcance de uma das mais poderosas máquinas de guerra do planeta. Sim, lhes é dado o direito de se defender e caríssimo sistema de interceptação dos foguetes lançados pelo Hamas evitou maiores baixas em Israel.  A represália, a cada saraivada de foguetes, é que foi rigorosamente desproporcional. E a paz? Quando virá? Não deveriam dirigentes do Hamas ou a cúpula que governa Israel serem submetidos às Cortes Internacionais? São crimes de Guerra, que teriam de ser julgados e seus mentores responsabilizados. O pensamento visionário de Daniel Barenboim jamais, creio, assistirá nem julgamento nem paz naquela região.

Em “La Musique Est un Tout” há uma série de entrevistas concedidas a Enrico Girardi. Creio que a primeira sobre a West-Eastern Divan Orquestra, é a mais interessante. Apesar de retomar temas referentes ao conflito, reitera Barenboim que os dois povos estão convencidos “de ter direito histórico, filosófico, antropológico e religioso. Em uma palavra, humano, de viver sobre o mesmo território. Nenhuma estratégia militar trará solução. Só há três possibilidades objetivas: viver num único país cuja população teria duas nacionalidades e que contaria sete (Israel) mais sete (o todo da Palestina) milhões de habitantes, solução inaceitável por Israel e pelos judeus, desde o Shoah (holocausto); ou a criação de dois países independentes que, após certo tempo, se unissem eventualmente em uma federação, solução difícil de ser aceita pelos palestinos, que sempre acreditaram que a região lhes pertence; ou o massacre de ambos os lados. Quartum non datur: não há outra possibilidade. Eu não trabalho pela paz, mas contra a ignorância e contra soluções falsas e ilusórias”. Nesse capítulo perguntas foram formuladas sobre o desenvolvimento de Barenboim e sobre interpretação.

Se a primeira entrevista é rica em pormenores a abranger parte das preocupações do músico, as seguintes envolvendo três óperas emblemáticas, Carmen de Bizet, As Walkírias de Wagner ou Don Giovanni de Mozart, antolham-se-me como as de menor interesse. Creio que o músico, com agenda plena de concertos como pianista e regente, além de acumular cargos diretivos relevantes, tenha caído em “armadilha”. Que subsídios de grande interesse não poderia ter legado se fosse perguntado sobre o gênero ópera dos primórdios à atualidade, a evidenciar estilos, evolução histórica… Enrico Guirardi levanta alguns questionamentos, diga-se, respondidos com competência pelo maestro Barenboim, de larga experiência no gênero operístico. Algumas perguntas chegam a ser pueris, ligadas à agenda a ser apresentada em público, e justamente baseadas em apenas três modelos com fartíssima bibliografia.

Finalmente, em “Épilogue”,  Barenboim presta homenagem ao extraordinário barítono Dietrich Fischer-Dieskau (1925-2012), ratificando convívio mantido e as qualidades do grande cantor. Em “Épilogue verdien”, tece elogios à imensa contribuição de Giuseppe Verdi à ópera universal. Justamente nesse curto epílogo Barenboim expõe algumas de suas preocupações quanto à interpretação: a flexibilização dos andamentos indicados pelo compositor, para mais ou para menos rápido, conservando-se contudo, in conditio sine qua non, a proporcionalidade dos  tempi e, na mesma orientação, a observância da dinâmica, fatores essenciais à responsabilidade interpretativa frente à obra.

Um grande livro, apesar das 172 páginas.

This post resumes the appreciation of Daniel Barenboim’s book “La musique est un tout”, now addressing topics of his interview with journalist Enrico Girardi and in special the author’s views on the Israeli-Palestinian conflict and his conviction that both sides can take a step toward each other and live in peace side by side.

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No link abaixo o leitor terá acesso à “Suonata Seconda” das “Sonatas Bíblicas” de Johann Kuhnau, sempre sob os cuidados de meu amigo maratonista Elson Otake. Belíssima obra que ilustramos com imagens referenciais.

Clique para ouvir a “Seconda Suonata” bíblica de Johann Kuhnau. Piano J.E.M.

 


 

 

 

 

 

Quando a Música Tem o Valor Totalizante

A música é parte essencial da dimensão física do espírito humano.
Daniel Baremboin

Há algum tempo resenhei “A Música a Despertar o Tempo”, do pianista, regente e pensador Daniel Barenboim, um dos mais notáveis músicos das últimas décadas (vide blog 17/09/2011). Em “La Musique est un Tout” (France, Fayard, 2014) Barenboim expõe conceitos que o tornaram o músico que é. Reúne o livro, publicado anteriormente na Itália em 2012, textos em forma de ensaios sobre música, a dar importância relevante a entrevistas concedidas ao musicólogo e crítico musical Enrico Girardi. Recorre igualmente, como o fez nas últimas publicações, à problemática Israel-Palestina. Portanto, dividi em dois posts o conteúdo do livro, o primeiro a abordar  o substancial ensaio inicial, “Éthique et Esthétique”.

Desde 2007 tenho colocado posição a respeito da necessidade do intérprete ter uma visão ampla do mundo que o cerca. Cultura abrangente é fundamental. Muitos artistas, consagrados nos palcos, prescindiram dessa prerrogativa essencial e talentos extraordinários, munidos de intuição clara, conseguiram ficar à margem de uma visão essencialmente cultural. Importava mais a recepção pública do que o aprofundamento humanístico. Se não indispensável para legião de profissionais que cultua a música popular, creio contudo significativa a edificação do músico sob o manto homogêneo da cultura. Enriquece o diálogo, tornando-se o intérprete arauto de procedimentos que poderão advir.

Seria em “Ética e Estética”, o capítulo mais importante do livro, a meu ver, que o pianista-regente apresenta sua concepção dessas palavras tão controvertidas. Preocupa-se em evidenciar aquilo que considera “o fosso crescente que separa o pensamento artístico do pensamento prático”. Apresenta como fulcral o respeito irrestrito à partitura, “obrigação moral”, como afirma. Barenboim assinala que “o primeiro dever de todo intérprete é o de recriar a obra com sinceridade e devoção, e não exprimir a sua própria personalidade”. Sim, respeita-a, mas dentro de limites que não interfiram na condução musical, pois tanto a negação de si mesmo como a arrogância não são louváveis.

Ao se referir ao repertório, entende maior a dificuldade em se familiarizar com obras contemporâneas do que com as de compositores do passado. Saliento que, se obras de períodos anteriores estiverem na penumbra quase absoluta, o trabalho para a edificação de uma interpretação também adquire o ineditismo e, portanto, grau maior de dificuldade, a se equiparar com as da contemporaneidade. Nos dois casos, a escuta não está familiarizada. Ao se referir às obras do passado, mas conhecidas e mantidas “na ponta dos dedos”, haveria, contudo, a necessidade de se conservar o frescor da primeira aproximação.

Considera Barenboim a problemática da manipulação e condena a busca de efeitos particulares, que levam à ausência da ética interpretativa e da autenticidade. O posicionamento que faz a respeito de obra de seu repertório interpretada no decurso de 60 anos seria exemplo de coerência e autenticidade. O YouTube nos apresenta, saliente-se, inúmeros intérpretes respeitados em execuções diferenciadas ao longo das décadas. Alterações existiriam? Quando há respeito à partitura, o que se ouve é mais uma interpretação autêntica. Em posts anteriores observei que o “tempo” para o compositor é finito pois, obra finda, é ela “atirada à roda”, na pena de Guerra Junqueiro. O tempo do intérprete dura enquanto perdurar sua atuação ao longo da carreira, e as mudanças interpretativas, sem desqualificar a partitura, evidenciam esse “tempo” infindável na busca da inatingível perfeição. E esse tempo da existência para o intérprete consciente “é o resultado do debruçar intenso sobre a obra, repetições e experimentações e do conhecimento de si mesmo como músico”, afirma Baremboin. Seria essa incontável parcela da vida dedicada à repetição atenta que levaria o intérprete alerta a poder executar diante do público a obra assimilada, incorporada, sem interrupção, mas referencial em seus intentos de divulgação. O zelo do pianista-regente-pensador mostra-se, portanto, integral. Justificar determinada mudança interpretativa é outra maneira dessa consciência cuidadosa, pois “a falta de ética é evidente quando um intérprete decide solução por puro capricho, simplesmente por lhe agradar e sem nenhum respeito pelo tempo objetivo, a hierarquia harmônica ou a frase musical”.

A respeito do repertório da denominada música antiga, Baremboin tem pensamento bem próximo àquele reiteradamente colocado por mim em textos desde o início dos anos 2000 (Gent, De Rode Pomp, 2001; Coimbra, IUC, 2004; Paris, Témoignage nº4 – Sorbonne, 2012) e ratificado pelo ilustre François Lesure, que considerava ultrapassado o debate cravo-piano, interessando-lhe sim a qualidade do intérprete. Menciono esses fatos que corroboram a guarida que meus cinco CDs lançados na Bélgica, privilegiando Jean-Philippe Rameau, Johann Kuhnau e Carlos Seixas, tiveram na Europa. Contudo, Barenboim vai mais ao fundo e, no texto em apreço, “Éthique et Esthétique”, considera que há entre os adeptos da música antiga aqueles mais dotados, frise-se, que fazem vir à luz seus estudos aprofundados, mas que “inversamente, há aqueles menos dotados de talento, que se submetem aos dogmas do movimento, como se esses pudessem substituir o pensamento individual, transformando sua prática musical em entreguismo que pretende muitas vezes oferecer respostas a perguntas que ninguém jamais colocou”. Curiosamente, François Lesure também utilizou-se em 2001 dos termos dogma e entreguismo. Barenboim ironiza o movimento, considerado progressista e moderno, “sistema de pensamento cujo objetivo é o de recriar circunstâncias que existiram há duzentos anos”. Menciona ainda o progresso técnico de tantos instrumentos e a recepção auditiva, pois as salas de concerto atuais são bem mais amplas. Em meus textos citados acima observei que o primordial entrave possa ter sido o silêncio de um século do cravo durante o transcorrer do século XIX. A tradição da escuta perdeu-se para sempre e os apegados aos “dogmas” citados por Baremboim e Lesure tiveram de buscar, na fonte impressa ou nos instrumentos “empoeirados” durante longo período, respostas a perguntas por vezes insondáveis.

Ao observar a condução das vozes em uma partitura, o autor evidencia todo o respeito à importância de cada uma, comparando-as ao “diálogo falado, quando interlocutores mais importantes têm durante mais tempo a palavra”.

Sobre gravações, pondera que “a qualidade da escuta é função do indivíduo”. Com certa dose de ceticismo, considera a escuta sem discernimento, ouvida em qualquer lugar, como barulho de fundo, apenas. A escuta atenta revestir-se-ia do sagrado: “a verdadeira escuta exige concentração, curiosidade e devotamento total àquilo que se está a ouvir”.

Barenboim considera a emoção, palavra tão anatematizada por estruturalistas. “A emoção não é inerente a uma peça musical. Será a percepção humana da repetição e das mudanças, entre outras, que confere emoção à música”. Ficaria confiado ao público “modificar seu estado de espírito e acolher o senso da música no momento de sua realização física”.

As últimas páginas de “Éthique et Esthétique” privilegiam a ascensão tecnológica. Contudo, mostra-se o autor pronto ao desafio: “O século XX distinguiu-se pela tendência à desconstrução, à fragmentação e à especialização e meus votos para o século XXI fixam como objetivo o papel não fácil da reconstrução, da reunificação e da expansão do saber”. Utópico? Talvez. Contudo, vê valores no progresso tecnológico e nas comunicações. Considera que a música (certamente a de concerto) viva ainda em torre de marfim, a abrigar intérpretes e público.

No próximo post comentarei os capítulos seguintes. Os dedicados ao conflito Israel-Palestina são pungentes. As entrevistas a Enrico Girardi, afeitas, infelizmente, a um quadro repertorial repetitivo, não permitem tantas expansões por parte do respeitado intérprete e pensador. Em dois outros instigantes artigos a abordar a área musical o músico comenta aspectos fulcrais da interpretação.

This post addresses the book “La Musique Est un Tout”, a series of essays in which the musician, intellectual and writer Daniel Baremboin explains in a very lucid way his ideas on music and on the Israeli-Palestinian conflict. For now I’ll confine myself to the section of the book devoted to music. The next post will deal with the Israeli-Palestinian issue and other music-related topics.