Aspectos da Divulgação

Nunca vemos fenómenos puros;
todo o fenómeno que nós observamos e que descrevemos para os amigos,
excepto quando é matemática pura, nunca é um fenómeno.
É uma autobiografia nossa,
é uma confissão
daquilo que nós somos e que vemos tal coisa desta ou daquela maneira,
diferente de outros.
Agostinho da Silva

Tenho apresentado ao longo desses anos posições a respeito da obra  e da sua divulgação. Incluo a produção artística, literária e o intérprete, no caso da área da música. Incontáveis as mensagens recebidas comentando a ventilação maior ou menor da obra conclusa ou do intérprete que a divulga. A sociedade, voltada mais aceleradamente à massificação, tende a concentrar seus interesses em nomes precisos. A proliferação dos criadores da produção artística não impacta vivamente os mantenedores do status quo. Preferem o aumento do público àquele de quem cria. Resulta na concentração de nomes. Divulgar autores “seletivos”, tantas vezes impostos por interesses de toda ordem – empresários, mídia, editoras, gravadoras -, tem sido constante, mormente a partir da segunda metade do século XX, marcada por progressiva edificação de “ídolos”, muitos deles com pés de barro. Descoberta a mina, essa é explorada à exaustão.

O tema vem a propósito de pergunta que me foi colocada por uma das senhoras integrantes da Associação de Escritores de Bragança Paulista. Lera o prefácio de “Domador de Sonhos”, de Norberto de Moraes  Alves, publicado no último blog.  “Se Norberto é tão bom em tantas obras, como de fato é, não pareceria injusta a pouca divulgação em outros meios de comunicação?”. Só posso tristemente concordar. Razões são muitas, a partir da geografia.

O eixo São Paulo-Rio de Janeiro prioritariamente abriga considerável porção da atividade artística em suas programações, assim como das editoras mais afamadas. Decorreria a permanência junto à mídia daqueles “protegidos” por esse sistema centralizado. Espaço menos amplo tem sido destinado para a divulgação não apenas da produção artística como da editoração dos “não abrigados” pelo sistema. Recolhem-se estes às pequenas salas de espetáculo, diria espaços de “resistência” e às editoras pequenas, que lutam com dificuldades. Esforços hercúleos podem ser sentidos em numerosas cidades de nosso extenso mapa. Mantêm  orquestras, corais, “importando” intérpretes daquele eixo, assim como dão guarida às minúsculas editoras, tantas delas de grande mérito. E o que se assiste, em acréscimo, é a visita a essas editoras de escritores e poetas de grande mérito, que sabem não ter acesso às grandes empresas editoriais. É um círculo bem vicioso. Reúnem-se esses autores dessas cidades menores, à semelhança das capitais e cidades com maior adensamento populacional, em meritórias Academias de Letras. Melhores ou piores? Diria que, mesmo na Academia Brasileira de Letras, tantos por que lá passaram estão “imortalizados” apenas nas atas e nos números das cadeiras que ocuparam. As pequenas Academias, proporcionalmente, obedecem ao mesmo fluxo da meritocracia maior, menor ou até inexistente. Todavia, a exemplo de nosso personagem real Norberto de Moraes Alves, quantos não foram realmente bafejados pelas musas?

No que concerne a literatura, o que se assiste nos países de língua portuguesa, de maneira bonita, despojada, saudosista e, paradoxalmente, esperançosa, é a presença de inúmeros autores de raro valor que permanecem com obras editadas em pequenas tiragens, que testemunham o pulsar poético-literário que jamais fenece. Tive a oportunidade de ler livros de poemas de minúscula tiragem editados em Portugal – incluindo o fertilíssimo veio poético dos Açores -, assim como em Cabo Verde, Moçambique e Angola e impressiona-me a natural inclinação ao verso. Infelizmente, muitos autores desaparecem levados pelas torrenciais chuvas da vida cotidiana. Por vezes, um é pinçado, mercê do acaso ou de tantos outros fatores claros ou estranhos. Em recente post abordei “O Canto da Palavra”, de Idalete Giga, alentejana como Florbela Espanca, esta que tem sido, felizmente, estudada e divulgada mais acentuadamente. Idalete Giga, em versos despojados, conta-nos o pulsar alentejano. Entre outros poetas e contistas de tendências várias já resenhei livros de José Paulo Paes (extraordinário poeta e tradutor, tão pouco mencionado atualmente), do catalão Joan Reventós i Carner (o magnífico “Os Anjos não Sabem Velar os Mortos”), do português António Menerez (“Crônicas contra o Esquecimento”), dos irreverentes Betho Iesus  (“A Casa de Vidro”) e Luca Vitali (“Amo-Te-Me”). Claramente, na categoria da ampla divulgação, autores são “ungidos” pela mídia graças a um sem número de fatores influentes, não se descartando as possibilidades financeiras. Expostos ao público, são ventilados e recebem atenção. Melhores dos que os tantos meritórios das pequenas tiragens? Tenho lá minhas dúvidas. Esses permanecerão ocultos e, raramente, a história, em seu fluxo “arqueológico”, redescobre e revela com trombetas obras de valor. Cora Coralina (1889-1985), poetisa da gema, não poderia estar esquecida não tivesse a segunda edição de “Poemas de becos de Goiás e estórias mais”, de 1978, saudada pelo extraordinário Carlos Drummond de Andrade em 1980? “Se há livros comovedores, este é um deles”, escreveria o poeta. Quantas sensíveis Coras não existem nos rincões que abrigam a língua portuguesa? A notoriedade, nem sempre merecida, leva à acolhida de escritores, pintores e músicos. Seriam necessárias as apreciações de outros Drumonds, assim como razões várias para que haja recepção por parte dos produtores.

Se Norberto de Moraes Alves é admirado pela comunidade dessa Bragança Paulista, pela qual particularmente tenho um afeto especial, urgiria divulgar seus livros. Como e quando? Pergunta que ficaria sem resposta, hélas.

Talentos existem espalhados pelo imenso país. Escritores e poetas têm a possibilidade de realizar prazerosas tertúlias em incontáveis cidades menos adensadas e não raramente desponta um mais privilegiado pelas musas. Essas reuniões os motivam ao constante ato de escrever. Na música e na pintura a proximidade dos centros maiores torna-se imperativa para a divulgação. O intérprete tem de estar em constante contacto com centros maiores, sob o risco de estiolar-se, mormente na juventude. Poder-se-ia dizer o mesmo em relação à pintura e à escultura. Contudo, os mecanismos que levam ao conhecimento público são basicamente idênticos, a envolver empresários, mídia, profissionais de divulgação, marchands, patrocínio, recursos… Se o mérito intrínseco independe tantas vezes dessas convergentes, intérpretes musicais meritosos podem passar a existência numa nostálgica penumbra, se não estiverem em contato permanente até a juventude da idade madura com centros avançados, quase que obrigatoriamente do Exterior. Seria claro entender também que a índole do músico intérprete pode estar voltada unicamente à qualidade, distanciando-se voluntariamente da cultura de massas. Na Europa, como exemplo, quantos não são os intérpretes excepcionais que preferem o aprimoramento apenas e não a busca dos holofotes, restringindo-se suas apresentações a territórios por eles escolhidos. Mestres impecáveis vivendo em cidades pequenas, vilas ou aldeias. Frise-se que essa atitude individual, intransferível e voluntária só é possível após a assimilação plena da linguagem musical, ou seja, na maturidade do ser.  Não obstante o fato do dirigismo acentuado proposto pelo sistema, temos que reconhecer que os intérpretes mais ventilados que circulam pelo planeta têm qualidades fundamentais que os recomendam.

Seria utópico pensar numa abertura a visar à meritocracia. Essa implicaria a introdução no mercado de quantidade de escritores, poetas, pintores e músicos rivalizando com aqueles, que o público conhece. E isso, nulamente, não interessa ao sistema. Lamentável, mas é fato.

The release of the book “Domador de Sonhos”, written by Norberto de Moraes Alves, in the city of Bragança Paulista last week was the starting point of this post: a reflection on the existence of talented artists whose work, by lack of distribution channels to reach wider audiences, remain hidden within the limits of their own cities.

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No link abaixo o leitor terá acesso à “Suonata Terza” das “Sonatas Bíblicas” de Johann Kuhnau, sempre sob os cuidados de meu amigo maratonista Elson Otake. Belíssima obra que ilustramos com imagens referenciais.

Clique para ouvir a “Suonata Terza” das “Sonatas Bíblicas” de Johann Kuhnau. Piano: J.E.M.