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Após a finalização da atividade musical pública

Da necessidade nasce a força. É ao coral, precisamente,
que a obra de Bach deve sua grandiosidade.
O coral não apenas o coloca na posse
dos tesouros da poesia e da música protestante,
mas, igualmente, abre-lhe as riquezas da Idade Média
e da precedente música sacra latina.
Albert Schweitzer
(J.S.Bach le Musicien-Poète”, 1913)

Agora segue-se a pura síntese pianística, sem a presença do público.
É outro nível de licor artístico, ainda,
aquele que reservarás à família e aos amigos íntimos”.
Eurico Carrapatoso
(mensagem do notável compositor português após meu recital derradeiro)

Foram vários os posts sobre o término de minhas apresentações frente ao público. Gand, na Bélgica, Lisboa e, a findar, Santos, na bela Pinacoteca Benedito Calixto no fim de Agosto. Como o piano continuará a fazer parte da minha respiração até…, não deixo um dia de praticar meus estudos pianísticos, de visitar obras do passado à contemporaneidade e de ler partituras que antes não visitara.

Faremos, Regina e eu, Encontros em nossa morada, privilegiando um tema. Num primeiro Encontro, elegemos as transcrições para piano de corais ou criações para órgão de J.S.Bach (1685-1750) realizadas por grandes mestres. Em blog bem anterior já comentava a respeito dessas transcrições, que, obliteradas do convívio dos pianistas e estudantes de piano durante boas décadas no século XX, têm florescido acentuadamente nestes últimos tempos (vide blog “Transcrição e interpretação”, 27/08/2022). Estou a me lembrar de que, durante minha estadia em Paris para estudos de piano e musicologia (1958-1961), mestres não propunham transcrições aos alunos, tampouco elas faziam parte dos programas destinados aos inúmeros concursos de piano, realidade que basicamente persiste nesses certames!

Nesse primeiro Encontro, a preceder as interpretações pianísticas comento o porquê do tema escolhido, histórico, importância das transcrições de obras de J.S.Bach destinadas para coro e outras para órgão, realizadas por mestres absolutos. Tem interesse a diversidade dessas transcrições, que, a partir dos originais, respeitam o pensamento de Bach, mas imprimem características dos que transcrevem através de seus traços estilísticos personalizados. O advento da internet propiciou o aparecimento de inúmeras gravações de grandes pianistas interpretando transcrições de obras de J.S.Bach e de outros autores. É um deleite ouvir essas leituras.

Regina, com a qualidade que lhe é peculiar, apresentou três peças de J.S.Bach, não transcritas, mas que ilustram o que tenho a dizer sobre a transcrição. Foram duas sessões nas quais reunimos uns poucos convidados devido ao espaço, mas corroboraram a proposta que deve ocorrer periodicamente a partir de determinado tema voltado à literatura composicional destinada ao piano, seja pontuando um só compositor ou um período histórico brilhante no qual pontuaram vários insignes mestres.

Regina aos 12 anos participou do Festival Bach em Berkeley na Califórnia. Saudada pela crítica do Festival cultuou sempre o imenso compositor. No Encontro apresentou o “Prelúdio em Dó Maior” do primeiro volume do Cravo bem Temperado, que serviu para a conhecidíssima versão realizada por Gounod. O “Prelúdio nº 10 em mi menor”, do mesmo volume, foi o modelo para o “Prelúdio em si menor”, Bach-Siloti. Quanto à célebre “Fantasia Cromática e Fuga”, trata-se de obra original composta para cravo, mas frequentada com assiduidade pelos pianistas. Magistral criação de J.S.Bach.

Interpretei transcrições realizadas por quatro grandes mestres: Alexander Siloti (1863-1945), Ferrucio Busoni (1866-1924), Wilhelm Kempff (1895-1991) e Dame Myra Hess (1863-1945). De Bach-Siloti, o “Prelúdio em si menor”, leitura de Alexander Siloti do Prelúdio em mi menor” já mencionado, peça bem lírica, mas muitíssimo menos frequentada do que o “Prelúdio para órgão em sol menor”, transcrição esta quase obrigatória na geração pianística brasileira por volta de meados do século XX, muito dessa atitude após a gravação referencial da notável Guiomar Novaes.

Clique para ouvir, de Bach-Siloti, o “Prelúdio para órgão em sol menor”, na interpretação de Guiomar Novaes:

https://www.youtube.com/watch?v=D1RdTLYja8Y&t=5s

O pianista, compositor e músico completo Ferrucio Busoni transcreveu para piano vários corais de Bach. O coral “Agora vem o Salvador dos gentios” é um dos mais expressivos, evoluindo numa escrita com várias vozes, a preponderar o impactante tema central várias vezes apresentado.

Clique para ouvir, de Bach-Busoni, o coral “Agora vem o Salvador dos gentios”, na interpretação de Vladimir Horowitz:

https://www.youtube.com/watch?v=2PzGf-_zKuM

O ilustre pianista Wilhelm Kempff transcreveu, assim como Busoni, vários corais de J.S.Bach.


Clique para ouvir, de Bach-Kempff, o coral “Despertai, a voz está a soar”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=0nQUzeqdu4s

A seguir interpretei duas das mais conhecidas transcrições de obras de Bach realizadas por Franz Liszt e Ferrucio Busoni. Dediquei um blog ao “Prelúdio e Fuga em lá menor”, na magnífica transcrição para piano de Franz Liszt (vide blog: “Em torno de uma transcrição”, 15/07/2022), composição que apresentei recentemente na Bélgica, Portugal e em nossas terras.

Clique para ouvir, de Bach-Liszt, o”Prelúdio e Fuga em lá menor”, na interpretação de Maria Yudina:

https://www.youtube.com/watch?v=puwboQ_zNNI

A “Toccata, Adagio e Fuga” de Bach, para órgão, recebeu, na transcrição de Ferrucio Busoni, uma extraordinária versão para piano. Apresentei apenas a “Toccata”.

Finalizei o Encontro com o célebre coral “Jesus, Alegria dos Homens”, na transcrição da insigne pianista Dame Myra Hess, que interpreta a consagrada peça.

Clique para ouvir, de Bach-Hess, o coral “Jesus, Alegria dos Homens”, na interpretação da Dame Myra Hess:

https://www.youtube.com/watch?v=SNDEbtllgMA

Gravações que realizei no Exterior de quatro das obras mencionadas podem ser acessadas no Youtube: os corais  “Awake, the voice is sounding” e “Jesu, Joy of Man’s Desiring”, o “Organ Prelude in G minor” e o “Prelude & Fugue in A Minor”, original para órgão.

Em Março, homenagearemos relevantes compositores franceses, que enriqueceram o repertório para cravo, máxime no século XVIII, consagrado como o Siècle des Lumières, período extraordinário para a Cultura, a abranger as Artes, a Literatura, a Filosofia, a Música e as aspirações sociais. Regina e eu apresentaremos criações marcantes desse período magnificente na História da Humanidade, ela a interpretar François Couperin (1668-1733) e eu, Louis-Claude Daquin (1694-1772), Jean-François Dandrieu (1682-1738), mormente Jean-Philippe Rameau (1683-1764).

As promised, we held our first meeting under the aegis of music. The theme: “transcriptions of works by J.S. Bach for choir and organ”. From now on, Regina and I will periodically choose a theme for a private recital, always with my comments on the works presented.

 

A reverência do ilustre ex-aluno ao notável mestre

[...] a única coisa que podemos fazer
é levar às últimas consequências
os instrumentos tradicionais: cravo elétrico,
piano preparado com parafusos nas cordas,
tapas na boca do trompete, guitarra elétrica.
Nada disso é revolucionário,
mesmo o vibrafone que usamos é tradicional.
O que se pode fazer com eles é procurar usá-los de novas formas.
Isso muitas vezes não é compreendido pelo público.
Por exemplo, quando bato nas teclas do piano com o antebraço,
isso não é uma agressão ao piano,
mas uma maneira de materializar em efeito sonoro desejado.
Jorge Peixinho

Após os posts sobre o livro referencial de Ana Cláudia de Assis, “A caminho de novos portos”, recebi do notável compositor Eurico Carrapatoso uma mensagem: “Partilho reflexões recentes numa entrevista para um mestrado na Universidade de Aveiro do meu ex-aluno, hoje guitarrista ilustre, o Pedro Lopes Baptista”. Selecionei algumas argutas perguntas e as respostas do Eurico, que conjugam testemunho importante do convívio entre os dois compositores, como, sob outra égide, carregam uma encantadora redação transmontana.

“Como foi o seu contacto com Jorge Peixinho? Como e quando se conheceram? Privaram de que forma, em que contextos e ao longo de que janela temporal?

Conheci Jorge Peixinho (JP) em 1989 quando ingressei no Conservatório como professor de composição. Fui seu aluno no Curso Superior de Composição entre 1991 e 1993. Fui o último aluno a fazer o exame segundo o modelo antigo (exame final com clausura de 15 dias para escrever uma orquestração e uma forma-sonata). Concluí este exame em Setembro de 1993.

Existem influências assumidas da música de Jorge Peixinho na música do Professor Eurico Carrapatoso?

Não há influências quaisquer ao nível da linguagem. Há apenas um legado humano, cívico e intelectual que as suas aulas me proporcionaram. JP, de um certo modo, acabou por ter forte influência não na linguagem mas no modo de estar, de ser e de ensinar, na fruição da infinita liberdade do gesto da criação que sempre me significou como professor e amigo ao deixar intocado o meu caminho, tão diferente do dele para alívio de todas as partes.

Relativamente à sua obra Deploração sobre a morte de Jorge Peixinho (1998), de que forma é uma homenagem ao compositor e em que dimensões? Como foi pensado o tributo?

Essa obra é um filho diferente na minha produção, tendo feições que raramente se reconhecem na minha música vista como um todo. Amo-a, como um pai ama um filho diferente. Faz parte de um processo de auto-descoberta, então, no final dos anos noventa, ainda à procura da minha voz, na montanha-russa da especulação abstracta, com concepção formal do ritmo, da melodia, da harmonia, da dinâmica. Enfim, um campeonato de esgrima façanhuda, numa linguagem de raiz serial que rarissimamente revisitei na minha vida. A homenagem a JP deve-se ao facto de, na altura, ainda todos estarmos chocados com a sua partida no verão de 1995. Eram as saudades do professor e do compositor. Mas, acima de tudo, do amigo. Já pude ouvir a obra várias vezes, nomeadamente ao vivo em diversas versões. Tem algo de elegíaco. E isso é bom, justo e honesto, dado o programa a que tal obra se propõe.

O último andamento é salvífico, um oásis a que regressei. Sinto-me bem naquelas paragens paradisíacas. Aí sou eu, dono da minha voz “.

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, Deploração sobre a morte de Jorge Peixinho (1998),

https://www.youtube.com/watch?v=wjMmRh2mzWU&t=177s

“E quanto a Cinco canciones para ensemble y voz emocionada (2015), de que forma é uma homenagem a Jorge Peixinho?

Aqui, sim. Uma obra de maturidade. Sou eu de raiz. Aquela é a minha voz. Sóbrio, sem máscaras, ali canto a minha admiração por JP que, a propósito dos textos ali usados, tanto admirava o mesmo García Lorca que eu tanto admiro. ‘Relembrando Jorge Peixinho pelos versos de um dos seus poetas amados, Federico García Lorca’, pode ler-se no rosto da partitura. Aqui está o vórtice exponencial da admiração mútua. Cumplicidades, conversas nas classes de composição. Amor pelos poetas: Rimbaud, Verlaine, Rilke, Lorca e por aí fora. JP era um poço sem fundo de cultura, nomeadamente no elemento da cultura como expressão artística. Foi um privilégio privar com ele. Contaminação se chama. Uma gripe boa que me pegou”.

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, Pórtico, 5ª das Cinco canciones para ensemble y voz emocionada, na interpretação de Sónia Grané (soprano) e José Manuel Brandão (piano):

https://www.youtube.com/watch?v=GUBhWMwS2gA

“Que compositores poderão ter influenciado ou ter sido influenciados por Jorge Peixinho?

Ele admirava os pilares da vanguarda, a começar no Nono, o Boulez e o Stockhausen; mas, simultaneamente, admirava os poetas da libertação do jugo serial: o Ligeti, o Crumb, o Feldman, o Berio, etc. Valorizava a poética da cor e do timbre. E, mais para o fim, tinha cada vez menos paciência para contas e continhas.

Poderia apontar algumas características da música de Peixinho?

Liberdade e poesia. Música sem grilhões de qualquer espécie. Coração aberto à experiência, à novidade, ao acontecimento imprevisto, até, mas tudo concatenado numa coisa maior, com a rédea curta própria do espírito superior que sabe, como ninguém, distinguir os efeitos e suas teatralidades da integração orgânica e coerente de tais efeitos em função de uma coisa maior, una e capaz. Não faltava a JP o juízo crítico que fazia maravilha com o forte acento onírico da sua expressão artística.

Diria que existem normas ou princípios de interpretação específicos para a música de Jorge Peixinho? Se sim, poderia dar exemplos?

O código de JP era claro. JP é claríssimo. Sabe perfeitamente o que quer e como pedi-lo. Basta estudá-lo, lendo, logo à partida, o glossário de termos e as explicações prévias. Não é uma leitura à primeira vista. Nem tem de sê-lo.

Que conselhos e alertas daria a um músico que queira abordar a obra de Peixinho? Que erros de interpretação devem ser evitados e que aspetos devem ser valorizados?

Valorizar a poesia do momento. A entrega. A bolha do concerto onde o intérprete se tem de ‘travestir’, numa dádiva total à inovação e, se necessário, à iconoclastia, derrubando o modelo de concerto estranhamente em uso nos tempos que correm – ainda! – com o mesmíssimo cerimonial oitocentista: intérpretes vestidos de preto cerimonial com a gravata ou o papillon para um público que leva para ali a sua melhor roupinha.

Recorda-se de aspetos que Peixinho valorizasse muito e nos quais insistisse particularmente? Quer na composição, quer na interpretação das suas obras.

Entre outras, a liberdade, a espontaneidade, a iconoclastia. Ele próprio assim foi toda a vida: livre, espontâneo e iconoclasta. O José Luís Borges Coelho testemunhou um episódio acontecido no Ateneu Comercial do Porto nos anos sessenta, por volta do tempo em que eu nasci: JP improvisava ao piano para um público convencional burguês que ali viera numa rivalidade tonta de chapéus e toilletes. A certa altura, fez um desenho dramático no piano, como motivos musicais descendentes. Atingido o extremo grave do piano, prosseguiu o gesto, tocando imaginariamente na perna esquerda do piano, e depois no chão e, depois ainda, subiu pela estátua alegórica do Comércio que orna o palco, uma escultura de uma senhora bem abonada, apalpando o seu peito e beijando demoradamente, finalmente calmo e langue, a boca da estátua. O público sussurrou em escândalo salazarento.

O evitar da oitava enquanto intervalo ‘demasiado’ consonante aplica-se a Jorge Peixinho? À partida, em contraponto, Peixinho preferirá o uníssono em vez da oitava?

JP não tinha esse trágico complexo de Édipo musical: o complexo da oitava. Isso é mais para puritanos, que usam a oitava como os anacoretas usam o cilício. JP era meridional e não resistia a qualquer intervalo, fosse qual fosse, para uma bela feijoada acústica.

Qual era a posição de Peixinho quanto à colaboração compositor/intérprete?

Todo ele era ouvidos. Escutava com atenção os aspectos da exequibilidade prática e negociava com os intérpretes até chegar a um compromisso a contento das partes, muitas vezes num ambiente de grande excitação amical, aparentando os ensaios do GMCL, não raro, um doce caos organizado, muito frutífero no balanço final.

Qual era a posição de Peixinho quanto à margem de liberdade interpretativa na sua música?

Desde que a ideia fosse entregue a bom porto, tudo corria de feição. Liberdade, uma vez mais, que nunca ultrapassou a responsabilização individual e de todos no grupo.

Qual era a posição de Peixinho quanto à procura de novos timbres e desenvolvimento de novas técnicas instrumentais e de novos símbolos na notação.

Mel para os seus ouvidos. Vital, mesmo. Um exemplo: inventou um excelente instrumento de percussão, à guisa de rela, nos aros da roda da bicicleta – o velofone – para a sua obra tão teatral quão cómica, ‘Ciclo Valsa’

No que diz respeito à relação entre música e texto, como é que Peixinho trabalhava a palavra? Por exemplo, havia a preocupação de traduzir através da música o sentido das palavras cantadas? De que forma?

Uma vez mais, com muita imaginação e liberdade. Mas sempre com a preocupação, em momentos estratégicos, de entregar o texto a bom destinatário, como forma de respeito pelo sentido original do discurso poético. O JP não costumava levar o texto ao ‘iron maiden’: apenas lho apresentava”.

Agradeço ao dileto amigo Eurico Carrapatoso o envio da reveladora entrevista. Como é essencial a descrição de alguns processos criativos de um grande compositor por parte de um não menos ilustre.

Ratifico a importância de “A caminho de novos portos”, de Ana Cláudia de Assis. Uma pesquisa modelo da pianista, que certamente despertará interesse dos leitores ligados à música contemporânea, mormente a de Jorge Peixinho.

The illustrious Portuguese composer Eurico Carrapatoso sent me an interview in which he talks about his relationship with his former teacher Jorge Peixinho, his teachings and the freedom that made him a non-dogmatic master. Despite taking different paths, Carrapatoso reveres Jorge Peixinho.

 

A obra para piano de Jorge Peixinho e a importância dos cinco Estudos

…o problema da escrita-notação é de capital importância,
porque ele deu origem, ao tentar suprir, num determinado momento histórico,
as lacunas da notação de tipo tradicional, deu origem, dizia eu,
à alteração qualitativa da própria música, isto é, produzindo, em grande parte,
uma transformação da própria mentalidade musical.

Jorge Peixinho
(Entrevista para “O Século ilustrado” de Lisboa, 1974)`

Neste segundo post mencionarei aspectos da relevante e complexa criação para piano de Jorge Peixinho, que apresenta enormes problemas para análise e execução, apesar de o compositor assinalar preliminarmente, em quase todas as peças, indicações em uma “planilha”, corroborando entendimentos para a interpretação. Tantos outros seus contemporâneos assim agiram na prática das várias correntes composicionais, mormente a partir da segunda metade do século XX. Com extrema competência, Ana Cláudia de Assis embrenhou-se nesse mister analítico e, através de seu precioso livro “A caminho de novos portos”, parte da criação para piano de Jorge Peixinho é desvelada, fato importante para os intérpretes que penetram na criação do mestre de Montijo.

Dentre as 18 peças para piano elencadas pela autora, entre as quais se destacam “Sucessões Simétricas” (1961), “Harmônicos I” (1967), “Villalbarosa” (1987), “Glosas 1” (1990) e “In Folio: Para Constança” (1992), verifica-se em Jorge Peixinho uma constante preocupação com a textura musical, sempre em busca da renovação escritural, com ideias novas possibilitadoras de investidas ousadas quanto ao resultado sonoro. Pianista de méritos, divulgaria não apenas as suas criações, mas as de outros seus conterrâneos, assim como as de compositores brasileiros e alguns da América Latina. A produção para piano de Peixinho não é numerosa e se estende de 1959 a 1994, multum in mínimo. Peixinho se debruçaria substancialmente sobre cada composição e seria preferencialmente nos cinco Estudos (1968-1992), obras até certa visão herméticas e monolíticas nos propostos, que os avanços composicionais do compositor mais se evidenciam. Ao todo, como assinala a autora, Jorge Peixinho apresentou em première, como executante, 16 peças para piano. Tive o privilégio de sê-lo em duas composições, “Villalbarosa” e o “Estudo V”.

Em 1994, a meu pedido, Peixinho define o gênero Estudo: “Como qualquer Estudo que se preze, e tomando como referência os exemplos magistrais de Chopin, Liszt ou Debussy, uma peça com este título deve conter dois vectores fundamentais, a saber: ser um ‘estudo’ simultaneamente de execução para o instrumento respectivo (neste e naqueles casos, o piano) e para o compositor igualmente, como laboratório de novas experiências e dilatação dos seus limites técnico-expressivos” (“Introdução a um Estudo sobre o ‘Estudo V – Die Reihe Courante’ – para piano” (São Paulo, Revista Música, vol. 5 – nº 1 – maio 1994, Universidade de São Paulo)”. Creio que essa posição de Peixinho, presente no livro, corrobora as análises que Ana Cláudia realiza dos Estudos. Indica a coerência de Jorge Peixinho.

Necessário se faz considerar que excelsos compositores como Chopin, Liszt, Debussy, Scriabine, Rachmaninov, escrevendo Estudos para piano, agrupavam-nos em coletâneas, o que evidencia a proximidade temporal criativa dos mesmos. Sob outro prisma, processos técnico-pianísticos particularizados e a virtuosidade prevalecem nessas composições, “obedecendo” aos limites do instrumento. A efervescência do pensar levou Peixinho à necessidade de sempre se renovar. As tendências escriturais, que nas fronteiras da segunda metade do século XX entendiam outras possibilidades para o piano, não foram ignoradas por ele, que soube engenhosamente criar seus Estudos sempre a ampliar o técnico-pianístico na busca de resultados sonoros inusitados. As viagens que empreende na escrita dos cinco Estudos são amplas e o piano não é apenas o instrumento tradicional, mas aquele que seria para o criador um laboratório sonoro, uma ampla caixa de ressonância. Cordas acessadas sem a utilização do teclado, objetos entre e sobre elas ou na estrutura metálica povoavam a mente de Peixinho. Sob outro aspecto, no “Estudo V”, Peixinho não se utiliza de materiais alheios ao piano. Todavia, nessa peça, para glissandos sobre teclas pretas e brancas tocadas simultaneamente, há a necessidade da utilização de luvas de lã ou acrílico para que o deslize sobre elas se dê convenientemente.

Na tabela apresentada por Assis tem-se: “Estudo I: Mémoire d’une présence absente” (1969); “Estudo II: Sobre as 4 estações” (1970); “Estudo III: Em si bemol maior” (1976); “Estudo IV: Para uma corda só″ (1984) e “Estudo V: Dei Reihe-Courante” (1992). O inusitado distanciamento entre eles faz supor que uma sequência de Estudos poderia, em tese, configurar para Peixinho a repetição de processos, fator que não fazia parte de seu pensar criativo. Portanto, cada Estudo é uma entidade. Ana Cláudia, através de suas análises, dá a conhecer a individualidade dos Estudos. A autora recolheu posição relevante de Peixinho sobre a melodia: “Hoje não se pode criar uma melodia. Todas as melodias que julgamos que são novas não passam de plágios, de adaptações conscientes ou subconscientes, de resultados estruturais dum passado mais ou menos próximo, mais ou menos longínquo e, portanto, do nosso repositório cultural, ou, tratando-se de um instrumento, do repositório técnico”. Um dos mais importantes compositores brasileiros do século XX, Francisco Mignone (1897-1986), já observava a respeito do plágio: “Todos os grandes artistas de todas as artes foram enormes plagiários. O plágio só é condenável quando feito com a intenção de roubar o sucesso alheio” (“A Parte do Anjo”, 1947).

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, Estudo I, “Mémoire d’une présence absente”, na interpretação de Ana Cláudia de Assis (vídeo de João Pedro Oliveira):
“Estudo I para piano” – Jorge Peixinho – YouTube

(449) Jorge Peixinho Estudo 1 – YouTube

Tecerei algumas posições sobre o “Estudo V Dei Reihe-Courante” – uma obra-prima – que não transmiti em meus textos sobre esta obra. Em blog bem anterior dediquei um post ao “Dei Reihe-Courante”, inserindo ao final um belo poema da notável gregorianista Idalete Giga, “Ars longa vita brevis” (“Um Estudo para Piano de Jorge Peixinho – Estudo V Die Reihe-Courante”, 13/06/2009), impactada pela força expressiva dessa criação. A composição de Peixinho integra o projeto que acalentei, visando à trajetória do técnico-pianístico na passagem dos séculos XX – XXI. Propunha trinta anos para tal. Iniciado em 1985, foi finalizado em 2015 e, ao todo, recebi 85 Estudos vindos de vários países e de nossas terras. De Portugal, Jorge Peixinho e Eurico Carrapatoso (“Missa sem Palavras” – cinco Estudos litúrgicos) colaboraram.

Segundo Ana Cláudia de Assis, “O ‘Estudo V…’, o último da série para piano, é sem dúvida o grande estudo de Peixinho. O mais completo sob o ponto de vista da interpretação, demanda do pianista grande domínio técnico e uma vasta paleta de sons para revelar a complexa arquitetura da obra”.

Apresentei-o em primeira audição absoluta na Universidade Federal da Bahia, em 20 de Setembro de 1993. Logo após, aos 11 de Outubro, em Lisboa. Estou a me lembrar de que pela manhã, antes do recital no Instituto Franco-Português, toquei para Peixinho o “Estudo V”. Nele, há em determinado compasso uma “permutação ad libitum”, mas as precisões quanto aos tempi são constantes. Se precedentemente os autores marcavam a indicação metronômica no desiderato de norteamento para a peça inteira ou segmentos dela, assim como flexibilizações, rubatos, ritenutos e acelerandos, Peixinho não prescinde da orientação fixada pelo metrônomo, mas  indica os segundos para determinados trechos.

Após um bom diálogo, disse-lhe que entendia seu desejo, mas, tendo percorrido o repertório barroco, clássico, romântico, simbolista, moderno e das décadas a seguir, sentia-me no “Estudo V” preso à cronometragem. Disse-lhe igualmente que, apesar das aparências, havia muita emoção em um sem número de segmentos e que eu, sentindo-a, gostaria de expressá-la. Jorge Peixinho aquiesceu. Houve o recital, estivemos juntos em um jantar no Toni dos Bifes, no Saldanha, um de seus lugares eleitos, hoje descaracterizado. Qual não foi a minha grande surpresa ao ler no livro de Ana Cláudia um trecho sensível de Peixinho em carta a Gilberto Mendes, que eu desconhecia: “Como sabe, o José Eduardo Martins esteve por cá e realizou dois recitais estupendos no Instituto Franco-Português de Lisboa. Num deles, ele tocou, entre outros, o seu ‘Estudo Magno’ e o meu ‘Estudo V / Die Reihe-Courante’. Gostei bastante da sua peça, cheia de intimismo e subtilezas. Quanto à minha, ela é uma peça muito complexa, com dificuldades novas e específicas. Neste momento, estou preparando um artigo sobre esta minha obra, destinada à ‘Revista Música’ da Universidade de São Paulo, a convite do José Eduardo” (29 de Dezembro de 1993). Era eu o editor responsável da Revista e o artigo foi publicado no vol. 5, em Maio de 1994.

Ana Cláudia insere um comentário meu publicado na Revista Música da USP (nº11 – 2006). Relatava impressões retidas de turnê que Jorge Peixinho e eu realizamos em cinco apresentações no Brasil em Agosto de 1994: Belo Horizonte, Ribeirão Preto, Santos e São Paulo (dois recitais). Abria o recital a interpretar os seguintes autores: Herbert Brun, Gilberto Mendes, Paulo Costa Lima, Domênico Barbieri, Fernando Lopes-Graça (“Sonata nº 5″) e Jorge Peixinho (“Villalbarosa” e “Estudo V Die Reihe-Courante”). Na segunda parte, Jorge Peixinho apresentava criações de Filipe Pires e Clotilde Rosa, assim como algumas de suas composições referenciais: “Sucessões Simétricas”, “Estudos I e III”, “Aquela Tarde”, “Glosas I” e “In Folio/Para Constança”.

“Essa pequena tournée serviu para um conhecimento maior do pensamento criativo de Jorge Peixinho, assim como a maneira sui generis como se apresentava como pianista, com um senso de dinâmica realmente especial e uma utilização dos pedais a evidenciar um raro senso das ressonâncias. A técnica de pedal traduzia-se, entre outros processos, numa flexibilização constante, e Peixinho os acionava com uma espécie de ‘virtuosidade’ dos pés. Os vários clusters e o consequente prolongamento dos sons ganhavam, através desse recurso empregado pelo pianista-compositor, dimensões outras”.

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, “Étude V – Die Reihe-Courante”, (Julho-Agosto, 1992), na interpretação de J.E.M. (gravação realizada em Maio de 2019, na Capela Saint-Hilarius, Mullem, Bélgica, 2019):

https://www.youtube.com/watch?v=Uc1PTtYbnoA

Após o primeiro post sobre o livrro de Ana Cláudia de Assis, recebi de Eurico Carrapatoso um instigante questionário a respeito de seu relacionamento com Peixinho. Mercê do espaço a que me proponho para os blogs, separei segmentos da relevante entrevista, que serão divulgados no blog do próximo sábado.

In this post I’ll be discussing Jorge Peixinho’s five piano studies, especially the Study V Die Reihe Courante, a masterpiece.