Navegando Posts em Música

848 posts distribuídos através das semanas

Um mundo arrumado é apenas o palco para o grande espetáculo,
de que até hoje tivemos apenas um ou outro raro exemplo,
da plena criação em todos os domínios,
arte, ciência, filosofia, porventura vida também.
Agostinho da Silva
(“Só ajustamentos”)

À medida que o tempo se afunila, aos 84 anos continuo a publicar os blogs de maneira hebdomadária, divulgados que são aos sábados, sempre aos 0:05 minutos. Não poucas vezes ao longo da escrita afirmei que o ato sem interregno se deve ao fato de que a respiração não pede férias, tampouco minha prática pianística. A permanência traduz o ato amoroso. Sem essa presença, inexiste a possibilidade de prosseguir pelos caminhos escolhidos.

As temáticas são as mais variadas, preponderando textos sobre música e tantas de suas variantes. Literatura, mormente resenha de livros (vide Livros – Resenhas e Comentários no menu), faz parte de minhas atenções. Predominantemente obras sobre música em seus aspectos essenciais. Ideia, criação e interpretação não apenas povoam meus anseios, como possibilitam novas aberturas. Diria que a Música se apresenta incólume à desativação ou à diminuição de interesse. Só não abordei ao longo dos anos temas sobre a nossa política, pois mantenho idiossincrasia pelas ideologias que servem à digladiação de contendores e jamais ao debate de ideias, hélas.

Textos de dois de Março de 2007 a 19 de Março de 2011 estão inseridos em três livros, sob o título “Crônicas de um observador” (I, 2008 II, 2009, III, 2011), publicados em São Paulo pela Pax Spes e esgotados. Textos sobre a Música Portuguesa e outros temas relacionados à cultura de Portugal foram publicados pela Imprensa da Universidade de Coimbra, o que muito me honrou, sendo que o segundo volume foi lançado recentemente e será em breve blog a abordar o porquê da minha atração pelo extraordinário pulsar criativo da pátria-mãe.

Folheando aqueles três primeiros livros, a fim de subsídios para o presente post, releio o prefácio da publicação de 2008. Apesar de um longo caminho até o presente, parágrafos do texto preliminar continuam como propósitos, e se outras paisagens do pensar surgiram, entendo-as como acúmulos, pois o itinerário já estava traçado. A aposentadoria afastou-me decididamente da vida uspiana e, outras oportunidades, sem amarras e vínculos, possibilitaram-me novos estágios da imaginação. Aquela introdução de 2008 traduzia escolhas sedimentadas na memória:

“Nos anos 90, após um recital em Gent, André Posman, diretor da organização cultural belgo-flamenga De Rode Pomp, disse-me que chegara o momento de deixar minha herança musical. Iniciava-se o ciclo das gravações no Exterior. Em 2007, no peristilo da aposentadoria junto à Universidade de São Paulo, apreendi que, mesmo a continuar a atividade pianística e os artigos acadêmicos publicados na Europa, haveria a necessidade de pensar em outra categoria de herança, livre de quaisquer amarras, simplesmente o afloramento de lembranças sedimentadas, leituras marcantes, impressões de viagem, personalidades que me ajudaram a entender o mundo, o cotidiano a me surpreender com sua magia e também distorções, a música onipresente”. Continuaria: “Os textos fluíram semanalmente sem interrupção e hoje continuam a fazer parte do meu respirar. Uma ideia a chamar a atenção é acalentada, a tornar-se post durante a madrugada, quando o silêncio e a paz interior resultam no amálgama com a escrita que está a nascer. A reunião de todos os textos datados, sem as ilustrações que acompanham cada post, fez-se necessária, a fim de que o leitor possa seguir os caminhos, da evocação e do olhar, de um músico que observa sempre surpreso o mundo que o cerca”.

Para a publicação no formato blog, as imagens inseridas em cada texto substanciam aquilo que o notável filósofo Vladimir Jankélèvich definia como “instante do acontecido”. Utilizei algumas criações de nossa filha Maria Fernanda e muitas de meu saudoso amigo, o artista plástico Luca Vitali (1940-2013) que, ao ouvir minha ideia para o blog do sábado, já idealizava o desenho. Dizia a Luca que o amigo tinha um lápis no cérebro.

Em 2007, jurássico, nada entendia da internet e ainda hoje mal posso acompanhar os avanços cotidianos na área. Devo ao meu ex-aluno e amigo, Magnus Bardela, a iniciação nessa complexa área e o acompanhamento de minha lenta evolução durante alguns anos a um plano ao menos plausível. Com o tempo consegui realizar as montagens dos blogs semanais. Os textos que nascem de madrugada e recebem uma primeira leitura continuam a ser revistos, desde aquele ano, pela dileta amiga Regina Maria Pitta. Várias vezes mencionei Henrique Oswald (1852-1931), o nosso mais importante compositor romântico, que, ao escrever ao organista Furio Franceschini (1880-1976) sobre a revisão de sua sonata para órgão pelo músico nascido na Itália, comentaria que “o autor é mau revisor e entre estes, eu sou o pior”. Geralmente, após findar um texto, leio para minha mulher Regina que, por vezes, ainda pondera algo.

Nesses dezesseis anos houve concentrações temáticas devido ao meu interesse por determinadas áreas. Montanhismo voltado ao Himalaia; livros do escritor-aventureiro francês Sylvain Tesson; cerca de 100 pianistas já falecidos e que permanecem quase sempre pouquíssimo acessados na internet, verdadeiros avatares, em detrimento de determinados “astros” da nova geração cercados pelos holofotes. A profecia de Mario Vargas Llosa, ao escrever que a cultura erudita está erodindo na atualidade, é uma realidade. Recentemente pelas ruas parisienses não realizaram passeata em favor da música erudita?

A maioria dos blogs tendo a música como tema principal quase sempre é acompanhada de algumas gravações de excelsos pianistas ou as que gravei e estão no Youtube, graças à atenção do meu dileto amigo Elson Otake.

A lembrança desta data tem suas razões, pois à medida que o tempo se afunila, jamais saberemos sobre brevidade ou prolongamento. O que me parece certíssimo é o prazer da escrita e o surgimento constante de temas que me interessam e que repasso ao leitor. É a sua fidelidade o fundamento essencial ao incentivo. Continuarei. Se a mente humana é um mistério, segredos podem ser desvelados. Mistério e segredo são entidades bem diferenciadas. Do segundo, há sempre aqueles retidos no de profundis e que afloram repentinamente, do primeiro só há o insondável.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, a “Valsa op. 38″, na interpretação de J.E.M.:

(100) Alexander Scriabin – Valse Opus 38 – José Eduardo Martins – piano – YouTube

March 2, 2007 marks the beginning of my blog and the socializing with readers. It is sixteen years of uninterrupted posts published every Saturday. In the 848 posts that I wrote I have tried to transmit my impressions when faced with cultural themes that have an impact on me, especially music.

Um Grande Mestre na arte do Shakuhati
(flauta de bambu clássica japonesa)

A vida, para a vida, é sempre longa;
mas para a arte é sempre breve;
só quando não se faz nada há sempre tempo.
Agostinho da Silva
(“Sete Cartas a um Jovem Filósofo”)

Não foram poucos os leitores que se interessaram pelo livro Dai-Nippon, de Wenceslau de Moraes, e buscarão obtê-lo. Notícia alvissareira. Alguns outros queriam saber mais sobre Tsuna Iwami, após os três poemas para piano que inseri nos dois blogs dedicados ao Dai-Nippon. Coincidentemente, comemora-se neste ano o centenário de nascimento de Tsuna Iwami.

Distintamente de Moraes, Iwami, engenheiro, ao aportar no Brasil em 1956 se casaria e constituiria família, mas jamais se desprenderia de suas profundas raízes, independentemente do afeto à terra que o abrigaria até a morte. Realizava suas orações budistas, cultuava as tradições, vestindo-se, quando em sua morada, com quimono, e era atento ao cerimonial do chá. Sua esposa Haydée era sensível especialista nas iguarias japonesas.

Conheci-o na década de 1970 e nos tornamos amigos na acepção do termo. Em sua profícua formação, Iwami também estudou composição e, paralelamente, foi exímio intérprete da milenar flauta Shakuhati. Era um profundo admirador de segmentos da música ocidental, mormente de Claude Debussy (1862-1918), que tanto apreendeu da cultura do Extremo-Oriente. Quantas não foram as vezes em que, antes de uma apresentação pública na qual interpretaria programa novo, repassava-o em sua residência, serões esses que sempre tinham a presença do médico Ruy Yamanichi, saudoso amigo, e sua esposa Margareth. Após a récita, e antes do cerimonial do chá, à meia luz, Tsuna Iwami interpretava uma ou mais peças ao Shakuhati, para nossa grande admiração.

As mensagens recebidas fizeram-me lembrar de um número da “Revista do Instituto de Estudos Brasileiros” da Universidade de São Paulo (1995 – nº 39) dedicado às comemorações dos 100 anos do Tratado de Amizade entre o Brasil e o Japão. À época, a Direção da Revista estava sob os cuidados da atuante Profa. Marta Rossetti Batista (1940-2007). Tive o privilégio de integrar o Conselho Editorial presidido pelo ilustre acadêmico Nilo Scalzo (1929-2007) e, entre os conselheiros, José Paulo Paes (1926-1998), José de Souza Martins, Franklin Leopoldo e Silva, Telê Ancona Lopez e outros ilustres membros. Encarreguei-me de um artigo-entrevista sob o título “Tsuna Iwami – A recepção da Música Tradicional Japonesa no Brasil”. Apreende-se, através das sábias respostas, o pensamento vivo do polivalente artista japonês, mormente no que concerne ao culto da música de seu país natal no Brasil. Presentemente, ao entrar em contato com o IEB a pedir autorização para apresentar o artigo-entrevista aos leitores, gentilmente o Editor-Executivo da Revista, Pedro B. de Menezes Bolle, aquiesceu.

“O compositor e intérprete de Shakuhati, Tsuna Iwami, nasceu em Tóquio no ano de 1923, radicando-se em São Paulo em 1956. Engenheiro por profissão, o mestre Iwami teve sólida formação, estruturada na tradição da cultura musical japonesa. Ainda no Japão, tornou-se o Baikyoku V, título máximo conferido a um executante de Shakuhati de Kinko-Ryo. No Brasil, disseminou entre os discípulos brasileiros e do Exterior (principalmente pós-graduandos norte-americanos) o culto ao niponismo musical erudito do passado. Como compositor, o mestre Iwami criou obras para orquestra com solo de Shakuhati, obras para piano solo, para canto e piano e para flauta e piano, pois o autor é igualmente intérprete de flauta transversa.

Na entrevista concedida a José Eduardo Martins, o mestre Tsuna Iwami discorre a respeito da música nipônica não-erudita aqui praticada; da recepção da música erudita tradicional no Brasil; dos instrumentos japoneses; dos mestres em música que aqui aportaram; da tradição transmitida através das gerações, baseada na mais pura competência.

JEM – A imigração de outros povos para o Brasil, sobremaneira o europeu e o latino-americano, possibilitou a continuação, em terras brasileiras, de práticas folclóricas. Conjuntos se formaram e as gerações sucedâneas mantêm reuniões festivas periódicas, quando grupos executam repertório dos ascendentes, trajando-se ao estilo de origem e conservando o gestual de danças características. O que o mestre Iwami poderia nos falar sobre a música folclórica japonesa praticada no Brasil?

Tsuna Iwami – Trata-se de uma música de origem popular, contrastando com a que mencionarei durante a entrevista. É evidente que grupos pertencentes à imensa colônia japonesa pratiquem, nas datas festivas, o culto ao japonismo. Grupos formados por cantores, dançarinos e acompanhados por instrumentistas ao Shamisen e na percussão, trajados com quimonos simples, constituem o que poderíamos chamar de ‘preservação da cultura popular japonesa’. São muitos e espalhados nos centros onde a colônia se mostra mais numerosa. Cumprem, sim, um papel importante nessa sustentação dos traços fundamentais de um milenar japonismo.

JEM – Como se processou, certamente sob outra égide, a aceitação da música erudita tradicional japonesa no Brasil?

TI – A partir da década de 30, mais acentuadamente, realizou-se o processo. Um primeiro recital de música japonesa em São Paulo deu-se em 1936, realizado por Juzan Miyoshi (Shakuhati) e Miwa Miyoshi (Koto), sob os auspícios do Consulado do Japão. Datam, pois, das fronteiras dos anos 20-30 os tímidos inícios de um japonismo tradicional em São Paulo. A expansão, desde aquela época, dessa prática erudita foi lenta, reduzida durante a Segunda Grande Guerra, mas desde a década de 50, podemos afirmar, um desenvolvimento, não rápido, mas constante, está num caminho seguro.

JEM – Esta segurança de que fala o mestre Iwami seria a resultante da existência do ensino da música tradicional japonesa no Brasil? Haveria escolas ou professores isolados, ou ambos?

TI – Constatamos a existência de professores de Shakuhati (flauta de bambu), Koto (harpa horizontal de treze cordas, executada pelo intérprete munido de unha artificial ou marfim) e de Shamisen (tipo de guitarra de três cordas, tangidas pelo executante por plectro de marfim). Na verdade, não encontramos escolas dedicadas à difusão da música tradicional nipônica. Professores particulares perpetram ensinamentos a gerações definidas, pois há um perfil daquele que se dedica a este gênero de música. Os alunos nem sempre são orientais.

JEM – Quantitativamente, qual seria o número aproximado de praticantes desses instrumentos no Brasil? Tem havido difusão e expansão do japonismo tradicional musical?

TI – Só em São Paulo, aproximadamente cem pessoas tocam instrumentos de música japonesa, das quais mais ou menos setenta e cinco são brasileiros; e destes, talvez 60% de descendência nipônica. Em Belém e em Curitiba, e mais outros centros, podemos encontrar grupos numericamente menos expressivos.

JEM – No Brasil, fabricam-se instrumentos sacralizados pela cultura erudita europeia. A qualidade deles, exceção talvez única a determinados violões construídos por lutaios da maior competência, é, infelizmente, duvidosa, apesar de massacrante propaganda divulgadora. Maturação das madeiras, chapas de ferro de qualidade menor, metais não à altura de padrões internacionais dificultam a equiparação qualitativa dos instrumentos brasileiros, se submetidos às exigências de países de tecnologia de ponta. Existem instrumentos da cultura nipônica produzidos no Brasil? E qual a qualidade?

TI - O Problema é complexo. Realmente você tem razão quanto aos modelos ocidentais fabricados no Brasil. Há nítida defasagem de qualidade. Estamos experimentando, no que tange aos instrumentos japoneses, por exemplo, fabricar Shakuhati em São Paulo. As dificuldades são sempre as mesmas e se refletem na qualidade das matérias primas: bambu adequado e charão.

JEM – O escritor português Wenceslau de Moraes niponizou-se integralmente, deixando textos, como o célebre Dai-Nippon, que revelam a sua admiração profunda pelos costumes nipônicos e apontam com precisão para transformações insulares em direção à modernidade. O autor impregnou-se visceralmente, sob outro aspecto, da cultura japonesa. O olhar era aquele de um ocidental, o texto, pleno de lirismo contagiante, o amálgama da identidade plena entre Ocidente e Oriente. O mestre Iwami, radicado no Brasil há quase quarenta anos, teria sofrido o processo inverso?

TI – No que se refere ao culto da música tradicional japonesa e à minha maneira de tocar, praticamente não sofri, no Brasil, nenhuma influência. Há um enraizamento muito profundo de todo este culto milenar, difícil de ser compreendido por um ocidental. É lógico que influências sofri na minha maneira de compor. Nunca na maneira de tocar o repertório tradicional adquirido e nem na maneira de ensiná-lo.

JEM – Esta sua resposta leva-me a perguntar ao mestre Iwami se os praticantes da música tradicional japonesa, seus alunos, sofreram, na interpretação, influências da cultura musical brasileira.

TI – Praticamente nulas.

JEM – No Kasato-Maru vieram músicos que permaneceram como imigrantes? E nos anos posteriores? O mestre Iwami pode nos citar músicos instrumentistas que aqui aportaram?

TI – No Kasato-Maru não vieram músicos, pelo menos que se dedicassem exclusivamente à música. O que podemos afirmar é que alguns instrumentistas de talento foram aportando inicialmente em Santos e, posteriormente, aterrissando em aeroportos internacionais brasileiros. Citaria, por ordem cronológica, as prováveis datas de fixação em São Paulo: Kisue Hayashida (Koto, Shamisen) – 1931; Jusan Miyoshi (Shakuhati), Miwa Miyoshi (Koto e Shhamisen) 1931; Kanemiki Tokiwazu (Shamisen) – década de 30; Ryosaku Miyashita (Shakuhati) – anos 40; Shinzan Saito , Yôzan Sagara e Sôzan Yoshioka – década de 50; Sonoko Kamieda (Shamizen) – 1956; minha mãe, Tomil Iwami (Koto e Shamisen) e eu (Shakuhati) em 1956, precisamente.

JEM – Todos estes mestres citados, pertencentes provavelmente a escolas diversas, passaram às gerações, no Brasil, o conhecimento da música tradicional japonesa. Seria importante o mestre Iwami, a título de exemplo, discorrer sobre a sua própria origem como instrumentista, tão distante dos padrões ocidentais. Quais os seus ascendentes? Qual o significado exato de seu título máximo de Baikyoku V?

TI – A pergunta tem fundamento e ‘antagoniza’ essencialidades de nossas culturas. Não é fácil para um músico ocidental entender nossas longas gestações. Citaria o piano moderno, por exemplo, instrumento que se consolidou há pouco mais de um século. Dificilmente, o instrumentista ocidental, mesmo um violinista, poderia citar três gerações ascendentes de professores. O Shakuhati é um instrumento que teve origem nos séculos VII e VIII da era ocidentalmente conhecida como cristã. Sofreu transformações e o moderno Shakuhati de bambu especialíssimo, contendo cinco orifícios, data do século XVI. A moderna música para Shakuhati teve início no século XVII, com Kinko, um Iemoto ou mestre de escola, que foi o chefe do Konko-Ryo. Os seus ensinamentos permaneceram durante três gerações de discípulos. Posteriormente, tivemos a escola de Fuyo Hisamatsu, aluno da segunda geração da escola de Kinko. Após, Fûkei Kodo, discípulo de Hisamatsu, foi o seu sucessor que, por sua vez, passou os ensinamentos a Kodo II, também denominado Baikyoku I. Gerações se sucederam e eu sou o representante de toda uma tradição. Sou o Baikyoku V, assim como existe o Kodo V, mais jovem do que eu e que, após estudos em Universidades americanas, retornou ao Japão. Apesar de quase quarenta anos vividos no Brasil, ainda não elegi meu sucessor, o Baikyoku VI. Preocupa-me, a mim e ao mestre Kodo V, a unificação desse conhecimento secular. Pensamos eleger um mestre excepcional, cujo talento evidente e o caráter impoluto possam preservar a arte do Shakuhati, apreendida através dos séculos sem desvirtuamentos. Quem sabe não poderá ser um brasileiro o Baikyoku VI?”

Clique para ouvir, de Tsuna Iwami, “Fragmento Cantabile” e “Estudo para a mão esquerda”, na interpretação da pianista Regina Normanha Martins:

(87) Tsuna Iwami – Fragmento Cantabile – Regina Normanha Martins – piano – YouTube

(87) Tsuna Iwami – Left Hand Study – Regina Normanha Martins – piano – YouTube

Entre aqueles que estudaram com Tsuna Iwami, destacaria seu principal discípulo, Danilo Baikyo Tomic, que continua ativamente a perenizar os ensinamentos do mestre, agregando ao Shakuhati novas tendências musicais. Felizmente, outros intérpretes de Shakuhati, alguns que estudaram com Tsuna Iwami, têm realizado um significativo trabalho de divulgação, igualmente incorporando ao instrumento novos caminhos repertoriais, independentemente do culto à música tradicional do Japão, coluna mestra a ser preservada. Da entrevista de 1995 ao presente, há esperanças quanto à perpetuação do Shakuhati no Brasil, com um número apreciável de praticantes.

Infelizmente, um vídeo a ter Tsuna Iwami tocando Shakuhati está com falha, sofrendo abrupta interrupção quase no início da peça executada. Inseri “Beautiful Demon”, na interpretação do multi-instrumentista norte-americano, Cornelius Boots, professor de Shakuhati:

https://www.google.com/search?q=youtube+Cornelius+Boots+beautiful+demon+dhakuhati&oq=youtube+Cornelius+Boots+beautiful+demon+dhakuhati&aqs=chrome..69i57j33i160l3.34119j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8#fpstate=ive&vld=cid:25f3279e,vid:BSDKLJsWdq4

Tsuna Iwami admirava a cerâmica e realizaria em seu ateliê peças cuidadosamente elaboradas. Tive o privilégio de receber um pote com meu nome em ideograma nipônico. Faz-me lembrar de uma figura rigorosamente singular, que me privilegiou com sua amizade. Um músico a ser perenizado.

The reception to “Dai-Nippon” by Wenceslau de Moraes was great. Readers would also like to know more about the composer Tsuna Baikyoku Iwami. I transcribe an interview I conducted with him, published by the Journal of the Brazilian Studies Institute (Instituto de Estudos Brasileiros – IEB) of the University of São Paulo in 1995.

Tentando entender o talento transcendente

É necessário ter, diante da obra que ouvimos,
interpretamos ou que compomos,
um respeito profundo como em frente da própria existência.
Como se fosse questão de vida ou morte.
Pierre Boulez

No esteio do tema tratado no blog anterior, não foram poucos os que hesitam em acreditar que haja os não apreciadores de música e entendem o fato de que, entre os que dela gostam, segmento privilegiado de aficionados a ela se dedicará, mas poucos se destacarão. Quantos, na busca de compreender a palavra gênio, ela também tão questionada, recorrem ao divino, ao sobrenatural, à reencarnação…

Em áreas específicas que, no meu entender, têm muito a ver com o aspecto físico, referindo-me aos intérpretes musicais e aos atletas nas várias modalidades, é possível entender que, entre milhares que se destinam a determinado mister, um ou dois  tornam-se ícones, e assim perduram sem concorrentes à altura. Estudos são elaborados por especialistas, mas as conclusões são sempre sujeitas a questionamentos, mercê também das pesquisas sempre in progress. Não obstante, cientistas entendem que, nas áreas do pensar, cérebros daqueles com QI bem alto não são diferentes dos QIs dos cidadãos comuns, mas que leituras “subjetivas” das engrenagens cerebrais detectam diferenças entre pessoas que praticam modalidades afins. Quanto às aptidões físicas, há também “engrenagens” que permitem que determinados atletas ou instrumentistas sejam mais aptos do que a extensa maioria de outros nas mesmas funções. Não me estendo nesse complicado mister por motivos óbvios, o fato de ser leigo na matéria, mas o leitor tem à sua disposição, via internet, resultados de muitas pesquisas científicas sobre o tema.

Na esfera musical, tanto na composição como na interpretação, alguns luminares se destacaram em ambas as categorias, casos específicos de Niccolò Paganini (1782-1840), Franz Liszt (1811-1886), Camille Saint-Saëns (1835-1921), Sergei Rachmaninov (1873-1943), Sergei Prokofiev (1891-1953), Pierre Boulez (1925-2016) e outros mais. A porcentagem dos que praticaram composição e interpretação é restrita, mas esses notáveis músicos desenvolveram paralelamente duas categorias que, apesar de distintas, têm ligação intrínseca. Possuidores de QIs altíssimos, alguns poucos tiveram predisposição a outras atividades correlatas à música, como Saint-Saëns e Ferrucio Busoni (1866-1924), pois igualmente editores e revisores consagrados. Muzio Clementi (1752-1832), além dessas duas atividades suplementares ainda foi fabricante de pianos quando em Londres. Sob outra égide, lembraria as observações do compositor, pianista e “visionário ou místico” russo Alexandre Scriabine (1872-1915) que, num café na Suíça, teceu intrigante dedução ao ver pessoas e carruagens transitando. Observou que, ao compor, ele se sentia Criador com C maiúsculo e na plenitude, um messiânico, mas ao estar sentado tranquilamente a olhar a movimentação na rua sentia-se um cidadão rigorosamente comum, sem mais. Sua filha, a musicóloga Marina Scriabine (1911-1998), escreve, a prefaciar “Notes et Réflexions” de seu pai: “Scriabine chegara a um solipsismo de caráter bem singular. Só ele existia, ele era Deus e criador do universo, mas somente no ato da  criação” (Alexandre Scriabine “Notes et Réflexions”, Paris, Klincksiech, 1979). Impossível dissociar o compositor-pianista do pensador místico que legou textos de real importância. Os super talentos transitam normalmente em campos precisos de atuação, excluindo-se quase todos os outros fora do interesse dessas figuras singulares, que, não poucas vezes, deles têm compreensão bem pueril. Não obstante, há aqueles que extrapolaram a(s) área(s) de interação, caso de Pitágoras (ca a.c. 570 – ca a.c. 500), Leonardo Da Vinci (1452 – 1519), René Descartes ( 1596-1650) e inúmeros outros luminares que, através de curiosidade e vocação, não se restringiram a um objetivo preciso.

Seria evidente a constatação de que os seres muito dotados só concretizam suas obras através do labor obstinado. O velho preceito que atribui mínima porcentagem à inspiração e índice superlativo à transpiração é regra. Compositores que permaneceram na História produziram muito e na excelência. Georg Friedrich Händel (1685-1759) comporia em brevíssimo tempo o célebre oratório “O Messias”, uma das obras referencias da humanidade. A capacidade descomunal de Mozart traduzia-se inclusive em suas composições, jorradas em cascata e sem rasuras, fato raríssimo na criação musical, literária e artística. Fruto de labor intenso, Modest Moussorgsky (1839-1881), apesar de todos os seus transtornos, comporia uma de suas obras-primas, “Quadros de uma Exposição”, durante quinze dias sem sair de seu quarto, após visitar a exposição de aquarelas de seu grande e saudoso amigo Victor Hartmann (1834-1873). O manuscrito autógrafo, claríssimo, contém algumas rasuras e alterações durante a efervescente gestação. E, portanto, apesar da grandiosidade, trata-se de uma obra lúdica.

Claude Debussy (1862-1918) escreveria ao seu editor Jacques Durand, tão logo finda a composição da possivelmente sua mais importante obra para piano, os Douze Études: “Escrevi como um louco ou como aquele que deverá morrer no dia seguinte” (1915).

Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude pour les huit doigts, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=D85tz0ibqRk

Clique para ouvir,  de Claude Debussy, Étude pour les arpèges composés, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=VCAH8fYHjSo

Compositores e escritores ditos “geniais” deram um passo à frente no que tange à criação. Inovaram e todos têm aquilo que considero impressões digitais inalienáveis, fato que não ocorre com outros nessas categorias do pensar que, detentores de real talento, não deram esse passo adiante e cujas marcas dos dedos não são tão evidentes. Paradoxalmente, alguns compositores não “inovadores” têm as impressões digitais nítidas e suas obras apresentam real interesse. Conheço alguns assim descritos cujas composições me encantam. Mas há tantos em que o pastiche evidencia a pobreza das ideias…

A contemporaneidade tem suas características próprias. Nas múltiplas tendências que continuam a pulular na área da “criação musical” há aquelas baseadas em pesquisas sérias e meritórias, assim como outras que se entendem por vanguardistas, mas que traduzem o vazio do pensar.

O recuo do tempo é lição obrigatória para avaliações. Decanta-se como o bom vinho. Os assim denominados gênios ou super talentos permanecem, à la manière da ação de uma peneira que retém os resíduos, deixando passar a essência essencial para gáudio dos que a desfrutam.

The present post deals with the differences between a great talent and the so-called genius, a very rare figure found in all areas. There are composers who go beyond the limits and possess the attributes of genius and others who, even though non-innovative, produce works of reference. Only the composer who relies on pastiche will be forgotten by History.