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A sensibilidade que aflora

De todas as histórias que nos contava
guardei apenas uma vaga e imperfeita lembrança.
Porém, uma delas ficou tão nitidamente gravada em minha memória,
que sou capaz de repeti-la a qualquer momento –
a pequena história do nascimento de Jesus.
Selma Lagerlöf (1898-1940)
(Prêmio Nobel de Literatura)

Contos e poemas anteriores despertaram vivo interesse quando publicados neste espaço: “Velho Natal”, de D. Henrique Golland Trindade (22/12/2007); três contribuições da ilustre gregorianista portuguesa Idalete Giga, “O Jardim das Fadas” (20/12/2008), “O Sonho de Santa Cecília” (18/12/2009), poema “Lux Mundi” (18/12/2010); “Natal e Renovação”, extraído do capítulo CXXII de “Citadelle”, de Saint-Exupéry (19/12/2015).

Minha dileta amiga Carolina Ramos, escritora, poetisa e folclorista de tantos méritos, ofereceu-me um sensível livro de sua lavra, “Feliz Natal – contos natalinos” (São Paulo, Ação, 1998). São 18 histórias e historietas plenas de encanto, imbuídas de criatividade, afeto e simplicidade, sem quaisquer outros objetivos a não ser transmitir o Espírito de Natal através de exemplos, tantos deles edificantes. A diversidade temática apenas dimensiona a criatividade da autora. Nessas criações, os personagens majoritariamente se situam ou na infância ou na terceira idade. Há especial atenção da autora pelos menos favorecidos.

Algumas observações de Carolina Ramos, fazendo parte do contexto, destacam-se pela argúcia do pensar. Do conto S.O.S, extraio: “Crianças e velhos gostam de ouvir e de serem ouvidos. Crianças adoram histórias, velhos adoram contá-las. Como se não fossem eles compêndios vivos, repletos de histórias escritas pela mão da vida!”.

Em “A Toalha de Natal”, um relato que certamente faz eco a milhões de cristãos quanto à preparação da Ceia de Natal: “Depois de cansativos dias de caça intensa a presentes e guloseimas, nesse ir e vir à beira da exaustão, enfrentando supermercados repletos de gente prenhe das mesmas intenções, Yolanda retirou da gaveta aquela toalha de linho, imaculada, que apenas emergia do seu imperturbável sono de doze meses por ocasião das festas natalinas. Era então estendê-la sobre a mesa, adornada para a ceia do Natal, e retirá-la uma semana depois, findo o almoço do Ano Novo. Muito raramente tornava-se necessário repetir o ciclo, entremeando-o com um mergulho rápido na máquina de lavar roupas, donde a toalha rapidamente voltava, impecável, a reassumir o posto”. Na decorrência do conto a toalha envelhece através dos anos, esgarça-se o tecido e ela vai ao lixo. Em noite de chuva, um menino pobre, vasculhando latas de lixo, encontra-a e o tradicional linho servirá para abrigá-lo. Carolina conclui: “Naquela toalha, tão desprezada quanto ele, o menino embrulhou a fome, embrulhou o corpo mirrado e, aninhado nos braços macios do linho que se esgarçava, dormiu o mais gostoso sono de toda a sua vida”.

No conto “Natal Feliz”, a autora insere: “E vieram as frutas secas! Importadas! As amêndoas, as nozes e as avelãs. Um bocadinho de cada. E os bolsos ficando leves! As passas, os figos. Mania de copiar os outros! Por que não festejarmos o nosso Natal à brasileira, com as nossas próprias castanhas, os nossos pinhões, os nossos tão gostosos amendoins? Não são, por acaso, frutos secos? E as peras d’água, as laranjas, os abacaxis de coroa na cabeça, e as uvas deliciosas, nossas, tão nossas?! Qual! – o mundo é assim mesmo! Quem sabe lá, se nas mesas europeias mais aristocratas, não haveria uma banana dourada, pintadinha, envolta em papel de seda, à espera de ser parcimoniosamente servida em fatias?”

Clique para ouvir, de J.SBach-Hess, “Jesus alegria dos homens”, na interpretação de J.E.M:

Bach-Hess – Jesu, Joy of Man’s Desiring – José Eduardo Martins – piano (youtube.com

Entre os tantos contos Natalinos de Carolina Ramos que nos encantam, separei um na íntegra, que bem caracteriza o Espírito da cristandade na sua data máxima e que não parte de situação imaginária.

O Anticlerical

“Dizia-se anticlerical. Tinha suas razões. Questionáveis umas. Outras, infelizmente, não. Às vezes, um ou dois maus elementos conseguem estremecer as melhores conceituações dos mais radicais.

Embora dizendo-se anticlerical, tinha amigos padres. Bons amigos, com quem conversava e trocava ideias. E com quem discutia sobre qualquer assunto, dentro da maior abertura e camaradagem que só as grandes amizades propiciam.

Veja-se o caso do padre português, canceroso, esquecido de todos, que o teve ao pé do leito, em seus derradeiros dias, revoltado com o ostracismo em que morria o velho sacerdote, seu amigo desde os tempos de congregação mariana.

Sim. Tinha amigos padres. Amigos sinceros. Mas, embora retribuísse essa sinceridade, dizia-se anticlerical. Razões teria.

Natal! O avô anticlerical esperava as netas à saída da missa vespertina. Foi quando aproximou-se dele um rapaz de pés encardidos, descalços.

-  Olhe, eu vim da Bahia… preciso de sapatos… procurei a Assistência Social e… mandaram que eu me virasse… me dê um dinheirinho, sim?

As netas chegavam. O povo escorria pela porta da igreja como água derramada escada abaixo.

Vestido informalmente, de bermudas, e sem um níquel sequer nos bolsos, o avô anticlerical não hesitou. Para surpresa das meninas, descalçou rapidamente o par de tênis novos e entregou-o ao pedinte, voltando descalço para casa, sem esperar pelo agradecimento.

Naquele fim de tarde, as guirlandas de luzes coloridas, dependuradas nas sacadas vizinhas, ganharam brilho especialíssimo. É que o Natal, de repente, ficara mais Natal do que nunca!”

“Feliz Natal” é uma ode ao bem, a se contrapor a um mundo que se decompõe sob o manto do choque insensato das ideologias, da discórdia, da queda livre dos costumes e da moralidade, do desprezo pela Cultura Humanística, da corrupção e violência instauradas e da perversidade como temas absorvidos pelo cidadão que vive o cotidiano sob ameaças de toda a sorte, mas que pouco pode fazer. Seu voto nas tumultuadas eleições é carregado de esperanças, anseios estes imediatamente esquecidos pelos eleitos. “Feliz Natal”, da observadora nata, Carolina Ramos, indica o caminho, mas tão poucos a ouvirão.

Um Feliz Natal a todos os leitores. Que possamos acreditar em dias melhores para a Humanidade.

Finalizara o post de Natal quando recebo do meu dileto amigo, o notável compositor Eurico Carrapatoso, gravação recente de sua inspirada criação “Ó meu Menino”. Compartilho com os meus leitores:

https://www.youtube.com/watch?v=6LsJgIQwQS0&t=16s

“Merry Christmas“, a book by Carolina Ramos, a writer of great sensibility, is an ode to fraternization. The 18 short stories, simple yet profound in so many aspects, induce us to do good and consecrate Christianity’s greatest holiday

 

Após a finalização da atividade musical pública

Da necessidade nasce a força. É ao coral, precisamente,
que a obra de Bach deve sua grandiosidade.
O coral não apenas o coloca na posse
dos tesouros da poesia e da música protestante,
mas, igualmente, abre-lhe as riquezas da Idade Média
e da precedente música sacra latina.
Albert Schweitzer
(J.S.Bach le Musicien-Poète”, 1913)

Agora segue-se a pura síntese pianística, sem a presença do público.
É outro nível de licor artístico, ainda,
aquele que reservarás à família e aos amigos íntimos”.
Eurico Carrapatoso
(mensagem do notável compositor português após meu recital derradeiro)

Foram vários os posts sobre o término de minhas apresentações frente ao público. Gand, na Bélgica, Lisboa e, a findar, Santos, na bela Pinacoteca Benedito Calixto no fim de Agosto. Como o piano continuará a fazer parte da minha respiração até…, não deixo um dia de praticar meus estudos pianísticos, de visitar obras do passado à contemporaneidade e de ler partituras que antes não visitara.

Faremos, Regina e eu, Encontros em nossa morada, privilegiando um tema. Num primeiro Encontro, elegemos as transcrições para piano de corais ou criações para órgão de J.S.Bach (1685-1750) realizadas por grandes mestres. Em blog bem anterior já comentava a respeito dessas transcrições, que, obliteradas do convívio dos pianistas e estudantes de piano durante boas décadas no século XX, têm florescido acentuadamente nestes últimos tempos (vide blog “Transcrição e interpretação”, 27/08/2022). Estou a me lembrar de que, durante minha estadia em Paris para estudos de piano e musicologia (1958-1961), mestres não propunham transcrições aos alunos, tampouco elas faziam parte dos programas destinados aos inúmeros concursos de piano, realidade que basicamente persiste nesses certames!

Nesse primeiro Encontro, a preceder as interpretações pianísticas comento o porquê do tema escolhido, histórico, importância das transcrições de obras de J.S.Bach destinadas para coro e outras para órgão, realizadas por mestres absolutos. Tem interesse a diversidade dessas transcrições, que, a partir dos originais, respeitam o pensamento de Bach, mas imprimem características dos que transcrevem através de seus traços estilísticos personalizados. O advento da internet propiciou o aparecimento de inúmeras gravações de grandes pianistas interpretando transcrições de obras de J.S.Bach e de outros autores. É um deleite ouvir essas leituras.

Regina, com a qualidade que lhe é peculiar, apresentou três peças de J.S.Bach, não transcritas, mas que ilustram o que tenho a dizer sobre a transcrição. Foram duas sessões nas quais reunimos uns poucos convidados devido ao espaço, mas corroboraram a proposta que deve ocorrer periodicamente a partir de determinado tema voltado à literatura composicional destinada ao piano, seja pontuando um só compositor ou um período histórico brilhante no qual pontuaram vários insignes mestres.

Regina aos 12 anos participou do Festival Bach em Berkeley na Califórnia. Saudada pela crítica do Festival cultuou sempre o imenso compositor. No Encontro apresentou o “Prelúdio em Dó Maior” do primeiro volume do Cravo bem Temperado, que serviu para a conhecidíssima versão realizada por Gounod. O “Prelúdio nº 10 em mi menor”, do mesmo volume, foi o modelo para o “Prelúdio em si menor”, Bach-Siloti. Quanto à célebre “Fantasia Cromática e Fuga”, trata-se de obra original composta para cravo, mas frequentada com assiduidade pelos pianistas. Magistral criação de J.S.Bach.

Interpretei transcrições realizadas por quatro grandes mestres: Alexander Siloti (1863-1945), Ferrucio Busoni (1866-1924), Wilhelm Kempff (1895-1991) e Dame Myra Hess (1863-1945). De Bach-Siloti, o “Prelúdio em si menor”, leitura de Alexander Siloti do Prelúdio em mi menor” já mencionado, peça bem lírica, mas muitíssimo menos frequentada do que o “Prelúdio para órgão em sol menor”, transcrição esta quase obrigatória na geração pianística brasileira por volta de meados do século XX, muito dessa atitude após a gravação referencial da notável Guiomar Novaes.

Clique para ouvir, de Bach-Siloti, o “Prelúdio para órgão em sol menor”, na interpretação de Guiomar Novaes:

https://www.youtube.com/watch?v=D1RdTLYja8Y&t=5s

O pianista, compositor e músico completo Ferrucio Busoni transcreveu para piano vários corais de Bach. O coral “Agora vem o Salvador dos gentios” é um dos mais expressivos, evoluindo numa escrita com várias vozes, a preponderar o impactante tema central várias vezes apresentado.

Clique para ouvir, de Bach-Busoni, o coral “Agora vem o Salvador dos gentios”, na interpretação de Vladimir Horowitz:

https://www.youtube.com/watch?v=2PzGf-_zKuM

O ilustre pianista Wilhelm Kempff transcreveu, assim como Busoni, vários corais de J.S.Bach.


Clique para ouvir, de Bach-Kempff, o coral “Despertai, a voz está a soar”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=0nQUzeqdu4s

A seguir interpretei duas das mais conhecidas transcrições de obras de Bach realizadas por Franz Liszt e Ferrucio Busoni. Dediquei um blog ao “Prelúdio e Fuga em lá menor”, na magnífica transcrição para piano de Franz Liszt (vide blog: “Em torno de uma transcrição”, 15/07/2022), composição que apresentei recentemente na Bélgica, Portugal e em nossas terras.

Clique para ouvir, de Bach-Liszt, o”Prelúdio e Fuga em lá menor”, na interpretação de Maria Yudina:

https://www.youtube.com/watch?v=puwboQ_zNNI

A “Toccata, Adagio e Fuga” de Bach, para órgão, recebeu, na transcrição de Ferrucio Busoni, uma extraordinária versão para piano. Apresentei apenas a “Toccata”.

Finalizei o Encontro com o célebre coral “Jesus, Alegria dos Homens”, na transcrição da insigne pianista Dame Myra Hess, que interpreta a consagrada peça.

Clique para ouvir, de Bach-Hess, o coral “Jesus, Alegria dos Homens”, na interpretação da Dame Myra Hess:

https://www.youtube.com/watch?v=SNDEbtllgMA

Gravações que realizei no Exterior de quatro das obras mencionadas podem ser acessadas no Youtube: os corais  “Awake, the voice is sounding” e “Jesu, Joy of Man’s Desiring”, o “Organ Prelude in G minor” e o “Prelude & Fugue in A Minor”, original para órgão.

Em Março, homenagearemos relevantes compositores franceses, que enriqueceram o repertório para cravo, máxime no século XVIII, consagrado como o Siècle des Lumières, período extraordinário para a Cultura, a abranger as Artes, a Literatura, a Filosofia, a Música e as aspirações sociais. Regina e eu apresentaremos criações marcantes desse período magnificente na História da Humanidade, ela a interpretar François Couperin (1668-1733) e eu, Louis-Claude Daquin (1694-1772), Jean-François Dandrieu (1682-1738), mormente Jean-Philippe Rameau (1683-1764).

As promised, we held our first meeting under the aegis of music. The theme: “transcriptions of works by J.S. Bach for choir and organ”. From now on, Regina and I will periodically choose a theme for a private recital, always with my comments on the works presented.

 

A reverência do ilustre ex-aluno ao notável mestre

[...] a única coisa que podemos fazer
é levar às últimas consequências
os instrumentos tradicionais: cravo elétrico,
piano preparado com parafusos nas cordas,
tapas na boca do trompete, guitarra elétrica.
Nada disso é revolucionário,
mesmo o vibrafone que usamos é tradicional.
O que se pode fazer com eles é procurar usá-los de novas formas.
Isso muitas vezes não é compreendido pelo público.
Por exemplo, quando bato nas teclas do piano com o antebraço,
isso não é uma agressão ao piano,
mas uma maneira de materializar em efeito sonoro desejado.
Jorge Peixinho

Após os posts sobre o livro referencial de Ana Cláudia de Assis, “A caminho de novos portos”, recebi do notável compositor Eurico Carrapatoso uma mensagem: “Partilho reflexões recentes numa entrevista para um mestrado na Universidade de Aveiro do meu ex-aluno, hoje guitarrista ilustre, o Pedro Lopes Baptista”. Selecionei algumas argutas perguntas e as respostas do Eurico, que conjugam testemunho importante do convívio entre os dois compositores, como, sob outra égide, carregam uma encantadora redação transmontana.

“Como foi o seu contacto com Jorge Peixinho? Como e quando se conheceram? Privaram de que forma, em que contextos e ao longo de que janela temporal?

Conheci Jorge Peixinho (JP) em 1989 quando ingressei no Conservatório como professor de composição. Fui seu aluno no Curso Superior de Composição entre 1991 e 1993. Fui o último aluno a fazer o exame segundo o modelo antigo (exame final com clausura de 15 dias para escrever uma orquestração e uma forma-sonata). Concluí este exame em Setembro de 1993.

Existem influências assumidas da música de Jorge Peixinho na música do Professor Eurico Carrapatoso?

Não há influências quaisquer ao nível da linguagem. Há apenas um legado humano, cívico e intelectual que as suas aulas me proporcionaram. JP, de um certo modo, acabou por ter forte influência não na linguagem mas no modo de estar, de ser e de ensinar, na fruição da infinita liberdade do gesto da criação que sempre me significou como professor e amigo ao deixar intocado o meu caminho, tão diferente do dele para alívio de todas as partes.

Relativamente à sua obra Deploração sobre a morte de Jorge Peixinho (1998), de que forma é uma homenagem ao compositor e em que dimensões? Como foi pensado o tributo?

Essa obra é um filho diferente na minha produção, tendo feições que raramente se reconhecem na minha música vista como um todo. Amo-a, como um pai ama um filho diferente. Faz parte de um processo de auto-descoberta, então, no final dos anos noventa, ainda à procura da minha voz, na montanha-russa da especulação abstracta, com concepção formal do ritmo, da melodia, da harmonia, da dinâmica. Enfim, um campeonato de esgrima façanhuda, numa linguagem de raiz serial que rarissimamente revisitei na minha vida. A homenagem a JP deve-se ao facto de, na altura, ainda todos estarmos chocados com a sua partida no verão de 1995. Eram as saudades do professor e do compositor. Mas, acima de tudo, do amigo. Já pude ouvir a obra várias vezes, nomeadamente ao vivo em diversas versões. Tem algo de elegíaco. E isso é bom, justo e honesto, dado o programa a que tal obra se propõe.

O último andamento é salvífico, um oásis a que regressei. Sinto-me bem naquelas paragens paradisíacas. Aí sou eu, dono da minha voz “.

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, Deploração sobre a morte de Jorge Peixinho (1998),

https://www.youtube.com/watch?v=wjMmRh2mzWU&t=177s

“E quanto a Cinco canciones para ensemble y voz emocionada (2015), de que forma é uma homenagem a Jorge Peixinho?

Aqui, sim. Uma obra de maturidade. Sou eu de raiz. Aquela é a minha voz. Sóbrio, sem máscaras, ali canto a minha admiração por JP que, a propósito dos textos ali usados, tanto admirava o mesmo García Lorca que eu tanto admiro. ‘Relembrando Jorge Peixinho pelos versos de um dos seus poetas amados, Federico García Lorca’, pode ler-se no rosto da partitura. Aqui está o vórtice exponencial da admiração mútua. Cumplicidades, conversas nas classes de composição. Amor pelos poetas: Rimbaud, Verlaine, Rilke, Lorca e por aí fora. JP era um poço sem fundo de cultura, nomeadamente no elemento da cultura como expressão artística. Foi um privilégio privar com ele. Contaminação se chama. Uma gripe boa que me pegou”.

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, Pórtico, 5ª das Cinco canciones para ensemble y voz emocionada, na interpretação de Sónia Grané (soprano) e José Manuel Brandão (piano):

https://www.youtube.com/watch?v=GUBhWMwS2gA

“Que compositores poderão ter influenciado ou ter sido influenciados por Jorge Peixinho?

Ele admirava os pilares da vanguarda, a começar no Nono, o Boulez e o Stockhausen; mas, simultaneamente, admirava os poetas da libertação do jugo serial: o Ligeti, o Crumb, o Feldman, o Berio, etc. Valorizava a poética da cor e do timbre. E, mais para o fim, tinha cada vez menos paciência para contas e continhas.

Poderia apontar algumas características da música de Peixinho?

Liberdade e poesia. Música sem grilhões de qualquer espécie. Coração aberto à experiência, à novidade, ao acontecimento imprevisto, até, mas tudo concatenado numa coisa maior, com a rédea curta própria do espírito superior que sabe, como ninguém, distinguir os efeitos e suas teatralidades da integração orgânica e coerente de tais efeitos em função de uma coisa maior, una e capaz. Não faltava a JP o juízo crítico que fazia maravilha com o forte acento onírico da sua expressão artística.

Diria que existem normas ou princípios de interpretação específicos para a música de Jorge Peixinho? Se sim, poderia dar exemplos?

O código de JP era claro. JP é claríssimo. Sabe perfeitamente o que quer e como pedi-lo. Basta estudá-lo, lendo, logo à partida, o glossário de termos e as explicações prévias. Não é uma leitura à primeira vista. Nem tem de sê-lo.

Que conselhos e alertas daria a um músico que queira abordar a obra de Peixinho? Que erros de interpretação devem ser evitados e que aspetos devem ser valorizados?

Valorizar a poesia do momento. A entrega. A bolha do concerto onde o intérprete se tem de ‘travestir’, numa dádiva total à inovação e, se necessário, à iconoclastia, derrubando o modelo de concerto estranhamente em uso nos tempos que correm – ainda! – com o mesmíssimo cerimonial oitocentista: intérpretes vestidos de preto cerimonial com a gravata ou o papillon para um público que leva para ali a sua melhor roupinha.

Recorda-se de aspetos que Peixinho valorizasse muito e nos quais insistisse particularmente? Quer na composição, quer na interpretação das suas obras.

Entre outras, a liberdade, a espontaneidade, a iconoclastia. Ele próprio assim foi toda a vida: livre, espontâneo e iconoclasta. O José Luís Borges Coelho testemunhou um episódio acontecido no Ateneu Comercial do Porto nos anos sessenta, por volta do tempo em que eu nasci: JP improvisava ao piano para um público convencional burguês que ali viera numa rivalidade tonta de chapéus e toilletes. A certa altura, fez um desenho dramático no piano, como motivos musicais descendentes. Atingido o extremo grave do piano, prosseguiu o gesto, tocando imaginariamente na perna esquerda do piano, e depois no chão e, depois ainda, subiu pela estátua alegórica do Comércio que orna o palco, uma escultura de uma senhora bem abonada, apalpando o seu peito e beijando demoradamente, finalmente calmo e langue, a boca da estátua. O público sussurrou em escândalo salazarento.

O evitar da oitava enquanto intervalo ‘demasiado’ consonante aplica-se a Jorge Peixinho? À partida, em contraponto, Peixinho preferirá o uníssono em vez da oitava?

JP não tinha esse trágico complexo de Édipo musical: o complexo da oitava. Isso é mais para puritanos, que usam a oitava como os anacoretas usam o cilício. JP era meridional e não resistia a qualquer intervalo, fosse qual fosse, para uma bela feijoada acústica.

Qual era a posição de Peixinho quanto à colaboração compositor/intérprete?

Todo ele era ouvidos. Escutava com atenção os aspectos da exequibilidade prática e negociava com os intérpretes até chegar a um compromisso a contento das partes, muitas vezes num ambiente de grande excitação amical, aparentando os ensaios do GMCL, não raro, um doce caos organizado, muito frutífero no balanço final.

Qual era a posição de Peixinho quanto à margem de liberdade interpretativa na sua música?

Desde que a ideia fosse entregue a bom porto, tudo corria de feição. Liberdade, uma vez mais, que nunca ultrapassou a responsabilização individual e de todos no grupo.

Qual era a posição de Peixinho quanto à procura de novos timbres e desenvolvimento de novas técnicas instrumentais e de novos símbolos na notação.

Mel para os seus ouvidos. Vital, mesmo. Um exemplo: inventou um excelente instrumento de percussão, à guisa de rela, nos aros da roda da bicicleta – o velofone – para a sua obra tão teatral quão cómica, ‘Ciclo Valsa’

No que diz respeito à relação entre música e texto, como é que Peixinho trabalhava a palavra? Por exemplo, havia a preocupação de traduzir através da música o sentido das palavras cantadas? De que forma?

Uma vez mais, com muita imaginação e liberdade. Mas sempre com a preocupação, em momentos estratégicos, de entregar o texto a bom destinatário, como forma de respeito pelo sentido original do discurso poético. O JP não costumava levar o texto ao ‘iron maiden’: apenas lho apresentava”.

Agradeço ao dileto amigo Eurico Carrapatoso o envio da reveladora entrevista. Como é essencial a descrição de alguns processos criativos de um grande compositor por parte de um não menos ilustre.

Ratifico a importância de “A caminho de novos portos”, de Ana Cláudia de Assis. Uma pesquisa modelo da pianista, que certamente despertará interesse dos leitores ligados à música contemporânea, mormente a de Jorge Peixinho.

The illustrious Portuguese composer Eurico Carrapatoso sent me an interview in which he talks about his relationship with his former teacher Jorge Peixinho, his teachings and the freedom that made him a non-dogmatic master. Despite taking different paths, Carrapatoso reveres Jorge Peixinho.