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Conversa que despertou a memória

A percepção nunca está puramente no presente,
pois tem de recorrer à experiência do passado.

Oliver Sachs (1933-2015)
(“Alucinações musicais”)

Ao longo dos anos não foram poucas as vezes em que mencionei Marcelo, amigo que encontro por vezes na feira livre do Campo Belo aos sábados. Lê os blogs semanais e, quando nos encontramos, sempre há perguntas inteligentes que busco responder. Vi-o no início do presente mês em um dos supermercados que frequento e voltamos a conversar prazerosamente. Entre outros assuntos do cotidiano, fez-me conhecer um problema que o atingia relacionado à perda quase plena de audição do seu ouvido esquerdo. Deveria ser operado dias após o nosso encontro. Antes de saber o mal que o acometia, notei que ele, ao me ouvir, virava ligeiramente o pescoço em direção à direita. Causou-me espanto quando ouvi Marcelo comentar o seu desânimo ao ouvir música. É motivo de alegria saber que ele ouve as músicas que insiro nos links dos posts semanais. Disse-me que algo estranho tem ocorrido, pois está perdendo a vontade de ouvir, pois a escuta a partir de um só ouvido “não tem graça”, como me afirmou. Tomamos um curto na lanchonete do estabelecimento e nos despedimos. Soube nesta semana que a cirurgia correu a contento e ele está a se recuperar. Recordei-me de um aluno que teve poucas aulas de piano em tempos idos e que não tinha nenhuma audição em um dos ouvidos desde a infância. Naturalmente inclinava a cabeça para um lado ao executar uma música.

Fiquei a pensar no problema do Marcelo e veio-me à memória um capítulo de um livro do renomado neurologista, psiquiatra, professor e escritor anglo-americano Oliver Sachs (1933-2015), nascido na Inglaterra e que se fixou nos Estados Unidos, tendo uma vasta e diversificada contribuição literária (“Alucinações Musicais”, São Paulo, Schwarcz, 2007).

No capítulo em questão, “Em estéreo ao vivo: por que temos dois ouvidos”, o autor inicia mencionando um médico norueguês, dr. Jorgen Jorgensen, com quem mantinha correspondência e que perdera a audição do seu ouvido direito após cirurgia. Observa o médico escandinavo: “A percepção das qualidades específicas da música – o tom, o timbre – não mudou. Mas a minha recepção emocional da música ficou prejudicada. Tornou-se curiosamente monótona e unidimensional”. Especificações existentes na música, como altura sonora, ritmo, tempo e as curvas das linhas musicais, crescendo e diminuendos, são elementos que podem se  tornar prejudicados quando da escuta através de um só ouvido. Sachs comenta que ocorrem diferenças óbvias na escuta espacial e distingue “cantar em uma sala de concerto ou no chuveiro”. Têm interesse as suas reiteradas chamadas às diferenças de se ouvir em mono ou em estéreo, tendo em conta igualmente a reverberação.

Dr. Sachs insiste que aquele que, por circunstâncias várias, está desprovido da audição plena, desenvolve um efeito “pseudo-estéreo”. Observa: “A genuína percepção em estéreo, seja ela visual ou auditiva, depende da capacidade do cérebro para inferir a profundidade e a distância (além de qualidades como rotundidade, amplitude e volume) com base nas disparidades entre o que está sendo transmitido pelos dois olhos ou ouvidos individualmente – uma disparidade espacial no caso dos olhos, e temporal no dos ouvidos.”

Relevante a analogia que o autor estabelece para aqueles que perdem a visão de um olho. Oliver Sachs explica: “As repercussões da perda da estereoscopia podem ser inesperadamente abrangentes; incluem não só a dificuldade de avaliar a profundidade e a distância, mas também um ‘aplainamento’ de todo o mundo visual, tanto na esfera perceptual como na emocional”. Seria possível entender que a situação, que se estende igualmente à percepção espacial, condiciona adaptações a que o mental pouco a pouco se acostuma, sendo que, se porventura a visão volta a ser binocular, sensações extraordinárias se abrem. Após considerar que o humano, não tendo largamente a acuidade ocular e auditiva da maioria dos animais, acaba aperfeiçoando minimamente os seus sentidos visual e auditivo. Escreve o neurologista: “É a estereofonia que permite aos espectadores de um concerto deleitar-se com toda a complexidade e o esplendor acústico de uma orquestra ou de um coro que se apresenta em uma sala de espetáculo projetada para que a audição seja a mais rica, refinada e tridimensional possível – uma experiência que tentamos recriar, da melhor forma, com dois fones de ouvido, alto-falantes estéreo ou som surround”.

Se existem cidadãos impossibilitados nos casos elencados, há que se entender que, a depender da acuidade e do esforço mental dos que perderam a audição de um ouvido e a visão de um olho, atenuantes existem e o empenho voluntário ameniza as ausências da escuta ou da luz, respectivamente, aos acometidos por esses problemas. Sachs menciona “o aumento da habilidade de fazer avaliações usando um único olho ou ouvido, um uso intensificado das pistas monoculares ou monoaurais”. Continua: “A pessoa que perdeu a estereocopia ou a estereofonia precisa, efetivamente, recalibrar seu ambiente, seu mundo espacial – e, nesse caso, o movimento é especialmente importante, até mesmo os movimentos da cabeça relativamente pequenos, mas muito informativos”. Relata Sachs que, através de muitos esforços mentais, o dr. Jorgensen, mesmo sem a audição do ouvido direito, encontrou, através de um esforço mental, algum resultado que o fez ter um conforto ao ouvir música com apenas o ouvido esquerdo.

Dr. Francisco de Paula Pinto Hartung (1893-1953), renomado otorrinolaringologista, escreveu dois livros de interesse sobre “Chopin – Enfermidade e Arte” e “A Surdez de Beethoven – aspectos clínicos e históricos”. Neste, pormenoriza o mal que acometeu o compositor, causas, consequências, enumerando etapas. Li-os décadas atrás. A leitura da vasta correspondência de Beethoven corrobora interpretações quanto à sua surdez. Se pensarmos que algumas de suas obras mestras, incluindo a possivelmente mais consagrada Sinfonia da história, a célebre Nona Sinfonia, assim como as quatro mais importantes Sonatas para piano solo, opus 106 (Hammerklavier), 109, 110 e 111, e os últimos quartetos, todas essas criações foram concebidas no silêncio auditivo externo a partir de 1819, quando a capacidade auditiva de Beethoven era basicamente nula. Se pensarmos que o cidadão versado minimamente em música, sem se expressar cantarolando, pode rememorar melodias que o agradam, inclusive com as letras desses cantos ao gosto do público. Essas melodias ecoam, pois gravadas na mente. Beethoven criou todas as extraordinárias obras finais da existência apenas com a escuta interna, substanciada por todo o acervo composicional adquirido por uma figura sob a aura da genialidade. Certamente foi um exercício hercúleo transcrever o que estava na mente sem qualquer auxílio instrumental. Teria a Nona Sinfonia a magnitude que dela emana, plena de sentimentos contraditórios e dramáticos, se a audição do Mestre alemão estivesse perfeita? Mistérios.

With regard to a hearing impairment that affected my friend Marcelo, who goes to the same street market as me in Brooklin-Campo Belo, I would like to quote Dr Oliver Sachs, who addresses the subject in his book “Musicophilia – tales of music and the brain”.

Alguns aspectos das linguagens musicais de dois grandes mestres

Os compositores que “entraram” no repertório desde meados de 1800,
de Josquin des Prés (c.1440-1521) a Béla  Bartók (1881-1945),
não o fizeram apenas porque a sua música é de alta qualidade,
mas porque tiveram um apoio poderoso.
J.Peter Burkhouder (1954-)

Neste terceiro post dedicado às criações para cravo de Domenico Scarlatti e Carlos Seixas abordarei alguns processos composicionais que, apesar de formalmente estruturados em padrões praticados em vários países europeus no mesmo período, divergem, o que seria natural, através das “impressões digitais” de cada autor. Processos técnico-tecladísticos, incluindo ornamentação, distinguem igualmente os dois Mestres.

Domenico Scarlatti, ao chegar em Lisboa em 1719 a convite de D. João V, já era músico consagrado em vários centros europeus. Carlos Seixas àquela altura tinha apenas 15 anos, sendo que o músico napolitano admirava as interpretações do jovem músico conimbricense. Macario Santiago Kastner (vide os dois blogs anteriores) bem se posiciona ao não sentir influências que porventura Scarlatti pudesse ter sobre Seixas. Claramente são linguagens distintas e, se proximidades existem, devem-se à “obediência” a determinados elementos dogmáticos da forma que vigoravam na Europa e da própria técnica digital empregada à altura.

Compositor respeitado em centros europeus, máxime por criações outras que não especificamente para cravo, quando em Lisboa, a partir de Novembro de 1719, Scarlatti  mantém a linguagem de suas Sonatas para teclado, sendo que, ao ser preceptor da Infanta Maria Bárbara, precoce e talentosa cravista, progressivamente a escrita para cravo se enriquece e adquire uma maior virtuosidade, a acompanhar a própria evolução técnico-interpretativa da discípula real, fato que continuaria ao longo das suas existências. Basicamente Scarlatti utilizava-se da forma consagrada no período, bipartida e monotemática. Após Lisboa, agregaria novas soluções e, instalado em Madrid, sempre próximo a então Rainha Consorte, após o casamento com o Rei D. Fernando VI, Scarlatti, no amparo da realeza, escreverá a grande maioria de suas criações para cravo. Amplia-se o virtuosismo e determinadas práticas, como a das mãos alternadas, estarão presentes em inúmeras criações para cravo. Suas Sonatas têm maior regularidade escritural se comparadas às de Carlos Seixas, mormente pela constância da destinação às mãos da personalidade real.

Santiago Kastner observa que “Seixas apresenta só excepcionalmente e contadas vezes o tipo de sonata monotemática inteiramente simétrica da feição”.  As dimensões das 105 Sonatas conhecidas de Seixas, extraindo-se os minuetos ou outras curtas peças introduzidas pelo compositor após o tempo primeiro de Sonata, evidenciam diferenças enormes quanto à quantidade de compassos, que podem variar sensivelmente. Saliente-se que Seixas demonstra uma nítida preferência por tratamento outro da forma bipartida e monotemática, alterando-a inúmeras vezes, alargando sensivelmente a segunda parte, que, pela tradição, mantinha usualmente a mesma dimensão da primeira parte. Da edição das Sonatas de Seixas realizada por Santiago Kastner e publicadas pela Fundação Calouste Gulbenkian, mencionaria quatro exemplos sensíveis: Sonata nº 13 (1ª parte, 96 compassos, 2ª parte 177), Sonata nº 16 (62-121), Sonata nº 78 (31-56) e a extraordinária nº 10 (133-257, total 390 compassos!!!). Distender a 2ª parte possibilitou a Seixas introduzir novos elementos, modular mais e degustar, por vezes, o cromatismo na mão esquerda. A modulação constante proporciona ao pianista, no caso, uma certa flexibilização breve, que “antevê” o denominado rubato tão apregoado no romantismo. Sob outra égide, é bem provável que o compositor português, que permaneceu sempre em seu país, sem ter cruzado as fronteiras, tenha em algumas de suas Sonatas uma linguagem “mais simples”, quando a pensar nas mãos de seus alunos de níveis diversos. Para tanto, há Sonatas curtíssimas mantendo a forma bipartida e monotemática em sua essencialidade: Sonata nº 34 (34 compassos), Sonata nº 37 (24 compassos).

Num aspecto outro, considere-se a distribuição do técnico-tecladístico pelas mãos. Santiago Kastner observa com acuidade: “É um facto notável que todas as sonatas de Domenico Scarlatti conservadas em Portugal e em manuscritos portugueses evidenciam uma técnica da mão esquerda muito mais simples do que outras sonatas suas. Essas sonatas, consignadas em Portugal, não revelam a técnica equilibradíssima e tão virtuosa repartida igualmente entre as duas mãos que conhecemos das suas obras da época madrilena. Nas sonatas compostas em Lisboa, onde a parte da mão esquerda resulta bastante mais fácil do que a parte da direita, a técnica instrumental e manual de Scarlatti não se diferencia grandemente da técnica de Seixas, que cede à mão direita a preponderância das dificuldades técnicas”. Em várias Sonatas, Seixas divide essas dificuldades entre as duas mãos. Todavia a distribuição a preponderar a mão direita, como visto, proporcionaria a Seixas uma mão esquerda muito atuante nas sendas da harmonia e o emprego, por vezes, de longos cromatismos, motivo que ao piano resulta na graduação sensível de crescendos ou diminuendos.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, a mencionada Sonata em Dó Maior nº 10, na interpretação de J.E.M.

Sonata nº 10.

No colóquio promovido pela Universidade de Coimbra em 2004, a assinalar o tricentenário de nascimento de Carlos Seixas, houve palestras cujos textos foram publicados, recitais e concerto. Engenhosamente, os organizadores propuseram três recitais: órgão na Capela Real de Universidade (José Luís Uriol no órgão), cravo e piano na Biblioteca Joanina, Ketil Haugsand e J.E.M., respectivamente.

Quanto aos ornamentos, os compositores franceses do período utilizaram feericamente a ornamentação. Fazia parte essencial de suas escritas. François Couperin (1668-1733) e Jean-Philippe Rameau (1683-1764) estabeleceram tabelas de agréments para a devida execução de suas obras. Trinados,  mordentes, apogiaturas proliferam em suas criações. Um exemplo típico encontramos em L’Égyptienne de Rameau.

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, L’Egyptienne, na interpretação de J.E.M:

Jean-Philippe Rameau – L’Egyptienne – José Eduardo Martins – piano (youtube.com)

Na Alemanha, e mormente na Itália, os compositores foram mais econômicos em relação à ornamentação. O biógrafo maior de Scarlatti, Ralph Kirkpatrick, observa que o compositor napolitano emprega trinados, mordentes, apogiaturas e outras sinalizações quando necessário. Pondera: “Assim como a maioria dos compositores italianos, Scarlatti nunca fez uso de um vocabulário inteiramente codificado e coerente para a ornamentação musical…”. Criteriosamente, o estudioso observa que, em sua pesquisa, “todos os exemplos tirados das Sonatas scarlatianas foram de acordo com uma recolha de manuscritos, de onde se concluem numerosas diferenças com as edições de Alessandro Longo, infelizmente inexata no que concerne à ornamentação”.

Clique para ouvir, de Scarlatti, a Sonata em Dó Maior, L3, na interpretação de Regina Normanha Martins ao vivo. Capela Saint-Hylarius, Mullem, Bélgica, 2001:

https://youtu.be/AYj7D0E-aMw?si=HwiHKGyrKRdvAlhc

Em Portugal, Carlos Seixas se mostra bem reservado quanto à ornamentação. Macario Santiago Kastner pondera: “Desconhece Seixas a rica ornamentação dos estrangeiros. Embora que algumas vezes um ou outro ornamento possa parecer subentendido e não ser expressamente indicado pelo autor, e ainda estar autorizado o intérprete de acrescentar, segundo o seu critério e bom gosto, algum ornamento com o fim de avivar e embelecer o discurso musical e de torná-lo mais sonoroso no instrumento de tecla, nem por isso os pentagramas de Seixas adquiririam o aspecto florido da maioria dos autores estrangeiros”. Infelizmente, o “algum ornamento” redigido por Kastner, na atualidade tem proliferado, e determinados intérpretes têm arbitrariamente inserido um sem número de ornamentos inexistentes nos manuscritos do compositor coimbrão, principalmente quando interpretados no instrumento original, o cravo. Creio que, pelo fato de o piano possibilitar o amplo emprego da dinâmica, da articulação e da acentuação, os intérpretes das criações de Carlos Seixas se mostram mais fiéis à escrita original do compositor, o que poderá ser entendido até como paradoxal.

Ralph Kirkpatrick (1911-1984), que realizou edição, catalogação e um livro basilar sobre Domenico Scarlatti contendo quase 500 páginas, dedica apenas meia página a Carlos Seixas e escreve: “Comparado a Scarlatti, Seixas permanece como um compositor de segunda categoria”. (Princeton University Press, 1953). Havia, à altura, apenas as edições, sob os cuidados do cravista e musicólogo Santiago Kastner, de algumas Sonatas de Seixas publicadas na Alemanha, fato que aponta para o desconhecimento do compositor português por parte de Ralph Kirkpatrick. Entre 1965-1992 seriam publicadas 80 Sonatas de Seixas, mais outras 25, igualmente sob os cuidados de Kastner, pois musicólogos consideram que centenas se perderam no terremoto de 1755. O notável musicólogo José Maria Pedrosa (1942-2021) afirma: “Pode-se dizer que Portugal despertou finalmente para Carlos Seixas na segunda metade do século XX”. Como comentei anteriormente, há sim desigualdades nas Sonatas de Carlos Seixas, mercê das destinações explícitas dos dois compositores. Não obstante, jamais Carlos Seixas poderia ser considerado músico menor. Nesse Quarto Encontro, Regina e eu selecionamos Sonatas que evidenciam, sim, a maestria de dois compositores do maior quilate.

A História da Música tem exemplos de compositores que, redescobertos, ainda precisaram de décadas para serem entendidos como de excelência e, pouco a pouco, ingressarem nos repertórios. No interregno que separa o achado à acolhida pelos intérpretes e, consequentemente, pelo público, dúvidas pairaram. Felix Mendelssohn Bartholdi (1809-1847) “redescobriu” J.S.Bach e sabemos os resultados, Camille Saint-Saëns (1835-1921) fez o mesmo com a obra de Jean-Philippe Rameau (1683-1764). Em termos pátrios, Henrique Oswald (1852-1931) teve maior divulgação desde a década de 1980, graças à dedicação de sua neta, a saudosa Maria Isabel Oswald Monteiro. Juntos, iniciamos uma recuperação que, felizmente, resultou na primeira tese sobre  compositor, que defendi junto à USP em 1988, tendo gravado cinco LPs no Brasil e quatro CDs na Bélgica com criações de Oswald. Hoje já são mais de uma dezena de teses defendidas no Brasil e no Exterior. Recitais e concertos realizados por intérpretes de valor corroboram a divulgação da obra de Henrique Oswald.

A não revelação maior das criações de um autor de mérito quase sempre minimiza o seu valor, principalmente quando encobertas pelas névoas. Apenas a passagem do tempo trará alicerces seguros para que a divulgação desperte o acolhimento definitivo. A pesquisa séria tem revelado tesouros sepultos. Ouçamos Domenico Scarlatti e Carlos Seixas, figuras exponenciais entre aqueles que se notabilizaram na criação de obras para cravo e suas nomenclaturas pela Europa, clavicembalo, clavecin, harpsichord, klavier…

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em lá menor nº68, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=xMfY0S0pBH8

In this third post, I’ll comment on the similarities and some differences between the two remarkable composers, Domenico Scarlatti and Carlos Seixas.

 

 

 

A dimensão de Carlos Seixas

Não vale mais a identificação do “Scarlatti português”
atribuído a Carlos Seixas ou de outras colagens
pretensamente niveladoras de mérito ou de valor estético por aproximação.
Como todos os povos, Portugal tem os seus nomes próprios,
os cérebros e os artistas que nasceram na identidade das suas fronteiras.
José Maria Pedrosa Cardoso (1942-2021)
(“Carlos Seixas de Coimbra” – Ano Seixas Exposição Documental IUC-2004)

Como nascem as afinidades? Na minha adolescência recebi da notável pianista polonesa Felicja Blumental (1908-1991), que residiu durante algum tempo no Brasil, um LP com sonatas ibéricas, sendo que algumas de Carlos Seixas. Era, ao que se sabe, a primeira gravação ao piano das Sonatas do compositor conimbricense escritas para cravo. Sabedora da minha admiração após a audição do LP, ofereceu-me os dois volumes dos “Cravistas Portugueses” editados pela Mainz: B. Schott’s Söhne, 1935 e 1950, (vide blog: “Felicja Blumental (1908-1991) – A Permanência através de Horizontes desbravados”, 13/12/2008). No primeiro recital que apresentei em Portugal (14/07/1959), a convite do notável compositor Fernando-Lopes-Graça (1906-1994), iniciei a récita com duas Sonatas de Carlos Seixas, sendo que em 2004 gravaria em Mullem, na Bélgica, para o selo De Rode Pomp, dois CDs contendo 23 Sonatas do genial compositor.

O repertório original para cravo foi gradualmente sendo interpretado ao piano, como salientei ao longo dos anos neste espaço. Do pianoforte, cuja criação se deve a Bartolomeo Cristofori (1655-1731), ao piano moderno houve um longo caminho, beneficiado pela indústria do aço no século XIX, a propiciar uma estrutura em metal que permitia suportar a grande tensão das cordas doravante maiores, pois cruzadas e sensivelmente mais resistentes, sendo que a tábua harmônica dos pianos precedentes sofreria fortalecimento.

Duas posições fulcrais têm interesse, apontando para as composições escritas originalmente para cravo e, em sequência histórica, executadas ao piano. Macario Santiago Kastner, cravista e musicólogo mencionado no blog anterior, máxime especializado na música ibérica para cravo, escreve, subjugado pela interpretação das Sonatas de cravistas portugueses ao piano: “Eu fiquei encantado ao encontrar em Felicja Blumental a maravilhosa intérprete dos cravistas portugueses, e que interpreta essa música com o verdadeiro sentido estilístico, tocando com alma e compreensão do som e da proporção”. Sob outra égide, o ilustre musicólogo francês François Lesure (1923-2001) escreveria no encarte da minha gravação da integral de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) ao piano (De Rode Pomp, Bélgica, duplo CD): “O tempo do Barroco integrista passou, o uso dos instrumentos de época deixou de ser um dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos. Um dos maiores biógrafos de Rameau – Cuthbert Girdlestone – defendeu com força a ideia de que a música de Rameau ‘ganha ao ser transferida para o piano’ e que sua escrita encontra neste instrumento, de uma melhor maneira, o seu dinamismo”. Endosso essa posição no que concerne igualmente às criações de Domenico Scarlatti e Carlos Seixas.

O saudoso amigo e ilustre musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso escreveria o encarte do CD a conter Sonatas de Carlos Seixas extraídas do álbum mencionado (Casa de Portugal-Banif). Apreendeu com maestria essencialidades do compositor nascido em Coimbra. O texto completo está inserido em meu blog (Carlos Seixas – 1704-1742 -, de 22/10/2010).

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em dó menor (16), na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=hzCdNgCwHUg

“O nome de Carlos Seixas é um dos mais registrados na discografia portuguesa e corresponde a um compositor que viveu apenas 38 anos na primeira metade do século XVIII. No seu tempo viviam nomes cimeiros do barroco musical, tais como A.Vivaldi (1678-1741), J-P, Rameau (1683-1764), J.S.Bach (1685-1750) e G.F.Haëndel (1685-1759). Estes compositores não se encontraram pessoalmente – à exceção de Scarlatti e Seixas -, mas suas obras não passaram despercebidas e serviram mesmo de modelo mútuo. Provavelmente, sem conhecer aqueles nomes e provavelmente número reduzido de suas obras, Carlos Seixas nasceu e estudou em Coimbra. À sombra da Sé e da Universidade, teve apenas por mestres seu pai, o organista titular proveniente de Tomar, e Fr. Nuno da Conceição, um trinitário lisboeta, lente de música e Mestre de Capela da Universidade. Herdando o cargo do pai aos 14 anos, emigrou pouco depois para Lisboa, aos 16 anos, tornando-se organista da Igreja Patriarcal. Sua troca do Mondego pelo Tejo só se pode explicar pela sua ânsia de horizonte: a música, como outras artes, estava a fazer de Lisboa uma grande capital europeia. Ali haviam chegado já vários músicos italianos, entre eles Domenico Scarlatti, o famoso mestre da capela papal, que trocou Roma por Lisboa, certamente à custa de condições salariais de exceção, graças ao poder mecenário de D.João V e, indiretamente, ao ouro do Brasil. O jovem Seixas chegou, convenceu os melhores, assimilou as correntes estilísticas da Europa e venceu como executante e compositor. Barbosa Machado, que o conheceu de muito perto, fala de uma produção excepcional, que se perdeu na maioria, certamente devorada pelo terremoto de 1755. Mesmo assim, Carlos Seixas é um dos maiores vultos do período barroco português e um dos mais notáveis na história da música em Portugal. Para além de três significativas composições para orquestra e algumas excelentes peças corais, conhecem-se dele mais de uma centena de sonatas para instrumento de tecla. Algumas dessas sonatas, também chamadas tocatas, parecem adequadas ao órgão; outras, todavia, têm claramente carácter de música para outros teclados. Atribui-se habitualmente esta produção de Seixas ao cravo, instrumento que o jovem compositor deve ter praticado e ensinado na sociedade aristocrática de Lisboa; contudo, o carácter expressivo de algumas daquelas sonatas parece sugerir o clavicórdio ou até o fortepiano, como defende José López-Calo. De resto, as sonatas de Carlos Seixas, longe de dependerem, ou mesmo imitarem, a vasta e preciosa produção de Domenico Scarlatti, apresentam geralmente um estilo personalizado que, acusando de certo modo a tradição organística ibérica, possui características inovadoras, sobressaindo não apenas o pendor para o estilo galante de muitas delas, mas sobretudo a sua dimensão de sonata em vários andamentos, com a inclusão frequente do minueto”.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em sol menor (50), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=uIUhQc_giNs

Santiago Kastner insere em seu livro “Carlos Seixas” (1947) a posição de José Mazza (1771-1797), italiano ou descendente, que, em seu “Dicionário Biográfico de Músicos Portugueses”, menciona  informações que Mazza recebeu de coetâneos de Seixas, seja mesmo pela oitiva. A edição do Dicionário de 1944-1945 tem notas e prefácio do P. José Augusto Alegria (1917-2004). Kastner previne o leitor: “Dada a ascendência italiana de Mazza, não é crível as suas notícias pecarem por xenofobia ou por patriótica louvaminhice portuguesa, que em face dos estrangeiros sempre deixa transluzir essa doença dos complexos de inferioridade”. Tem interesse o que Mazza escreve sobre aquilo que teve conhecimento a respeito de Scarlatti ao ouvir Seixas, dezenove anos mais novo: athé ao presente não teve Portugal outro organista tão famoso, quis o Sereníssimo senhor Infante D.António que o grande Escarlate, pois se achava em Lisboa no mesmo tempo lhe desse alguma Lição regulandosse por aquela idêa errada de que os Portugueses por mais que fação nunca chegão a fazer o que fazem os Estrangeiros, e mandou ao dito; este apenas o vio por as mãos no Cravo conhecendo o Gigante pelo dedo lhe disse = Vossa mercê hé que me pode dar lições, e encontrandosse com aquele Senhor lhe disse = V.ª Alteza mandou-me examinar, pois saiba que aquele sujeito hé dos maiores Professores que eu tenho ouvido. Kastner observa com acuidade que a diferença “entre Scarlatti e Seixas não era tão grande como geralmente se supõe”.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em lá menor (71), na interpretação de J.EM. no Convento N.ª Senhora dos Remédios em Évora, Portugal. Gravação ao vivo:

https://www.youtube.com/watch?v=BP3Aic2bvac

Tendo percorrido ao piano parte substancial do repertório barroco de J.S.Bach (indispensável, na verdade), G.F.Haendel, Scarlatti, e gravado as integrais de J-P Rameau (1683-1764) e das “Sonatas Bíblicas” de Johann Kuhnau (1660-1722), assim como o álbum duplo com Sonatas de Carlos Seixas, tenho a mais absoluta certeza de que o compositor coimbrão é um dos grandes autores para teclado no período, sendo que o quase absoluto descaso por parte de governantes e o pouco interesse de legião de intérpretes têm razões precisas ou, talvez, “que a própria razão desconhece”.

No próximo blog abordarei algumas diferenças no tratamento técnico-tecladístico e aspectos formais concernentes realizados por Scarlatti e Seixas. Aspectos esses percebíveis no programa que Regina e eu escolhemos, interpretando os dois grandes compositores nesse Quarto Encontro.

Some aspects concerning Carlos Seixas, a major composer of the Portuguese Baroque and author of 105 published sonatas, while hundreds of other sonatas were consumed by the earthquake of 1755.