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Comovente homenagem a ele prestada

Deus é nosso último refúgio.
Que tudo façamos para poder contemplá-lo,
Pedindo-lhe misericórdia, mas com certeza de que lutamos.
Ives Gandra Martins

Aos 10 de Novembro, na Estação Motiva Cultural, no amplo espaço onde se encontra igualmente a Sala São Paulo, houve uma cerimônia singular com mais de 500 pessoas, na qual o advogado e professor Ives Gandra Martins, meu dileto irmão, foi homenageado efusivamente por figuras ilustres da nossa sociedade, entre eles governantes, advogados, representantes destacados da religião, da atividade empresarial, assim como numerosos amigos e admiradores. Várias entidades relevantes apoiaram a homenagem: Associação Comercial de São Paulo, Fecomercio-SP, FAC Faculdade da Associação Comercial, Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, Associação Paulista de Imprensa e o Deputado Estadual Lucas Bove. O neto do homenageado, Guilherme Gandra Martins Couto, foi o mestre de cerimônias, colaborando com a organização do evento juntamente com Wilson Victorio Rodrigues.

Testemunhos calorosos expuseram as muitas facetas de Ives Gandra Martins. Destacaria algumas das inúmeras abordagens: o Cardeal Dom Odilo Scherer se pronunciou sobre “Ives, Católico”; o Ex-Presidente Michel Temer a respeito do “Ives, Jurista”; o Governador do Estado, Tarcísio de Freitas, evidenciou o “Ives Humanista”; o Prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, expôs as muitas qualidades do homenageado; Gilberto Kassab fez relato preciso de outras tantas qualidades de Ives Gandra; Ângela Gandra, Secretária Municipal de Assuntos Internacionais e filha do renomado jurista, relembrou episódios voltados à sua formação sob os olhares de seu pai em “Ives, Homem de Família”; o Maestro Júlio Medaglia encontrou na poesia uma das qualidades do “Ives, Poeta”; o jurista Luiz Flávio D’Urso traçou, com pormenores, “Ives, Advogado”; Julio Casares, Presidente do São Paulo, desenvolveu uma das paixões do “Ives, São-Paulino”; Wilson Victorio Rodrigues abordou “Ives, Amigo”. Outros depoimentos marcantes de personalidades enriqueceram a sessão, que sensibilizou os presentes com a justa homenagem ao Dr. Ives Gandra Martins. A cantora lírica Carmen Monarcha abrilhantou o evento com canções do seu repertório, acompanhada ao piano e pelo coral da FAC.

Ives e a sua saudosa Ruth viveram um casamento exemplar durante 62 anos, comungando os mesmos valores morais, religiosos e culturais, transmitindo-os aos seus seis filhos num ambiente de paz. De uma cultura enciclopédica, recebeu ao longo das décadas títulos e honrarias. Apesar da idade e das limitações físicas, continua a ser, através de seu exemplo cívico, um arauto que sabiamente propaga conceitos e conselhos pela imprensa, nas redes sociais e através de suas publicações. Democrata puro, autor de dezenas de livros, foi, juntamente com o notável jurista Celso Bastos (1938-2003), autor dos “Comentários à Constituição do Brasil” num hercúleo debruçar em 15 volumes. Magna Carta que, na última década, tem recebido algumas interpretações daqueles que deveriam apenas ser Guardiões da nossa Constituição.

Participei da homenagem executando uma obra para piano voltada à fé, essência essencial do meu irmão. Escolhi a segunda das Légendes de Franz Liszt (1811-1886), São Francisco de Paula (1416-) caminhando sobre as ondas”. Ter pensado nessa magnífica e sugestiva criação lisztiana propiciou-me evidenciar “Ives, Homem de Fé”, pois o que fez o Santo atravessar o estreito de Messina  com dois outros frades, em dia de mar revolto,  estendendo seu manto sobre o mar, com seu cajado como mastro e os outros dois mantos como velas, foi a fé intensa, sendo que a lenda atravessa os séculos.  Frequentando Missa diária desde outros tempos, Ives não apenas professa os ensinamentos contidos nos livros sacros, como transmite com serenidade os seus conhecimentos nas várias áreas do saber. Na Missa em homenagem aos 100 anos de nosso saudoso Pai, José da Silva Martins (1898-2000), Ives regeu um coral que apresentou a Aleluia de Haendel, mostra da dimensão do seu saber.

Ives Gandra Martins, último a se pronunciar, elencou momentos de uma trajetória singular. O evento ficará na mente daqueles que lá estiveram, cônscios de que o querido irmão ficará na história deste país como uma das suas mais importantes figuras jurídicas.

A fitting tribute was paid to the distinguished jurist Ives Gandra Martins. Brazilian authorities, distinguished colleagues from the legal and business worlds were present at Sala São Paulo, along with around five hundred admirers of the jurist. As his brother, I played a composition by Franz Liszt, the legend of Saint Francis of Paola walking on the waves.

 

 

 

Uma história bem documentada

A música escapa a qualquer existência permanente
e só a interpretação pode dar-lhe vida,
uma vida deliciosamente e desesperadamente efêmera.
Marguerite Long (1874-1966)
(“Au piano avec Maurice Ravel”)

Um dos concertos para piano e orquestra mais executados no mundo é certamente o Concerto em sol maior para piano e orquestra, de Maurice Ravel (1875-1937). Após muitos anos, voltei a ouvir, agora via Youtube, uma gravação histórica do referido Concerto para piano com a dedicatária da obra, a lendária pianista Marguerite Long, ao piano e o autor Maurice Ravel a reger a orquestra sinfônica. Realmente uma interpretação excelsa. A gravação foi realizada em 1932 e a tomada de som, longe da qualidade atual, não impede que se depreenda o mérito da interpretação da solista. Em 1952, o Concerto seria regravado com outros recursos sonoros, sendo que Marguerite Long teve a orquestra Lamoureux conduzida por Georges Tzipine (1907-1987), regente da Orquestra Colonne, com quem que tive o privilégio de tocar o Concerto nº 3 de Beethoven em Março de 1960 em Paris.

Na bibliografia de Maurice Ravel, intérpretes renomadas que foram dedicatárias de obras fundamentais do compositor, a saber, a violinista Hélène Jourdan-Morhange (1888-1961), Sonata para violino nº 2, e Marguerite Long, Concerto em sol maior para piano e orquestra, deixaram testemunhos valiosos do convívio com o notável músico. O livro “Marguerite Long au piano avec Maurice Ravel” (Paris, Julliard, 1971) revela a intimidade da pianista com a obra para piano do compositor, máxime sobre o Concerto em sol maior. Marguerite Long aponta as palavras primeiras de Ravel a ela reveladas: “Uma noite, em um jantar na morada de Mme de Saint-Marceaux, cujo salão era ‘um bastão de intimidade artística’, segundo Colette, Ravel me disse à queima roupa: ‘estou no momento compondo um Concerto para você. Se importaria que eu o terminasse em pianíssimo e com trinados?’ Mas certamente, respondi-lhe, muito feliz de realizar o sonho de tantos virtuoses”.

Ravel, após compor o célebre Bolero (1928), passa longo tempo sem criar outras obras. Apesar de pensados em 1929, somente em 1931 nasceriam os dois Concertos para piano e orquestra, bem antagônicos, o Concerto em sol maior e o Concerto para a mão esquerda. Alguns traços comuns, contudo, são evidentes nos dois Concertos, entre os quais lembranças de sua estada nos Estados Unidos concernentes ao jazz e à vida mais agitada, se comparada à sua vivência em França. A um correspondente do Daily Telegraph, Ravel narra a “epopeia” de escrever os dois Concertos tão diferentes: “Foi uma experiência interessante conceber e realizar dois Concertos ao mesmo tempo. O primeiro, no qual participarei como intérprete (na realidade Marguerite Long foi a pianista), é um Concerto no sentido mais exato do termo, escrito no espírito dos Concertos de Mozart e Saint-Saëns. De fato, penso que a música de um Concerto pode ser alegre e brilhante, e que não é necessário que pretenda ter profundidade ou que vise a efeitos dramáticos. Diz-se de alguns grandes músicos clássicos que os seus Concertos são concebidos não para o piano, mas contra ele. De minha parte, considero este julgamento perfeitamente justificado. Inicialmente, tive a intenção de denominá-lo Divertimento. Então refleti que não era necessário, considerando que o título Concerto é suficientemente explícito no que diz respeito ao caráter da música que o compõe. Em certos pontos, o meu Concerto não deixa de apresentar algumas semelhanças com a minha Sonata para violino; traz alguns elementos emprestados do jazz, mas com moderação” (in Alfred Cortot, “La musique française de piano”, deuxième série, Paris, Presses Universitaires de France, 1948).

Mercê de problemas de saúde, Ravel tardou a terminar o Concerto em sol maior, declarando ao seu amigo Zogheb: “Resolvi não mais dormir um segundo sequer. Finda a obra, então repousarei neste mundo… ou em outro”. Ravel, pianista, gostaria de ser o primeiro intérprete, mas, devido às dificuldades técnico-pianísticas reais do Concerto em sol, convidou Marguerite Long para estreá-lo e ela se expressa: “compreenderão qual não foi a minha intensa emoção ao receber o telefonema de Ravel, aos 11 de novembro de 1931, a anunciar a sua vinda imediata à minha casa com o seu manuscrito do Concerto. Estava a me ajeitar quando Ravel chegou repentinamente com as preciosas folhas do Concerto. Confesso que fui diretamente à última página: o pianíssimo e os trinados foram transformados em fortíssimo e percutantes nonas! A obra é árdua, mas o movimento que me deu mais trabalho foi o segundo, aparentemente sem armadilhas”. Estudei com Mme Long o Concerto em sol maior. Disse-me ela que, graças à lenta evolução do segundo movimento e à sua métrica, a possibilidade de falha de memória do pianista ocorre com frequência.

A primeira apresentação mundial se deu em Paris, na Salle Pleyel, aos 14 de Janeiro de 1932. Nessa estreia, Ravel regeu a Pavane, o Boléro e acompanhou o Concerto. Marguerite Long afirma “que não estava tão orgulhosa pelo fato, infelizmente, da sua regência ter sido realizada com a partitura do piano, resultando em uma condução incerta”.

Mme Long escreve: “A Salle Pleyel estava completamente lotada. Tudo correu bem e o sucesso foi considerável, a ponto de termos de repetir o terceiro movimento. Tendo muitas vezes solado o Concerto em sol em França e no estrangeiro, sempre, sem exceção, tivemos de bisar o terceiro movimento”.

Clique para ouvir, de Maurice Ravel, o Concerto em sol maior para piano e orquestra sinfônica, na interpretação de Marguerite Long, sob a regência do compositor (1932):

https://www.youtube.com/watch?v=WSA_MR2Gw_s

Tem interesse o testemunho da pianista ao avaliar o Concerto em sol maior: “Obra-prima autêntica onde a fantasia, o humor, o pitoresco cravam uma das mais tocantes cantilenas que o coração humano jamais sussurrou. Talvez o seu maior encanto resida num conjunto de qualidades que fazem esta obra essencialmente nossa. Colocar as descobertas harmônicas, rítmicas e melódicas mais originais no quadro mais tradicional, despertar os múltiplos setores da nossa sensibilidade com um toque discreto e reservado, falar uma linguagem nova na sombra tutelar de Mozart e Bach, evocar e sugerir sem nunca impor, esconder sempre com pudor a sua própria personalidade e construir tudo com uma perfeição constante e surpreendente foi dar à música uma obra absolutamente francesa”.

Após a grande acolhida pública do Concerto em sol, Maurice Ravel e Marguerite Long partiram em viagem a vários países europeus e as apresentações foram inteiramente dedicadas às criações do compositor. Bélgica, Áustria, Romênia, Hungria, Checoslováquia, Polônia, Alemanha e Holanda aclamaram com o maior entusiasmo as interpretações.

Sob outra égide, no livro mencionado, Marguerite Long escreve sobre os esquecimentos de Ravel no que concerne ao cotidiano nessas viagens pela Europa. “Eu começava, então, a verdadeiramente tomar conhecimento da legendária distração de Ravel, cujo bom humor, a sua melhor característica, contrastava com as consequências às vezes catastróficas de suas imprudências. Juntamente com o cansaço das viagens de comboio, dos concertos, das recepções e das angústias que Ravel me causava frequentemente durante a regência das orquestras, esses incidentes me esgotaram e eu realmente achei que voltaria caquética dessa digressão”! São inúmeros os casos relembrados por Mme Long com boa dose de humor, como esquecer objetos em hotéis, confundir-se com cartas e bilhetes colocados nos bolsos, assim como tantos outros percalços ocasionados também pela distração.

No próximo blog focalizarei o Concerto para a mão esquerda, criação bem contrastante se comparada ao Concerto em sol maior.

After listening to a historic recording of Maurice Ravel’s Concerto in G major for piano and orchestra recorded in 1932, with Marguerite Long, the dedicatee of the work, as pianist and Ravel himself conducting the orchestra, I revisited the book “Au piano avec Maurice Ravel,” written by the legendary pianist.

Uma existência exemplar em todos os níveis

O melhor tesouro que o homem pode acumular é a reputação imaculada.
William Shakespeare (1564-1616)

Quantos são aqueles que, ao atingirem a maturidade plena, mantêm a aura impoluta? Como irmão, acompanhei a brilhante carreira do jurista respeitado em todos os cantos do país. Com a esposa Ruth, falecida em 2021, formaram um casal sem máculas e criaram seus seis filhos em plena harmonia. Verdadeiramente um exemplo para os seus três irmãos e para todos aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo em seu combate infatigável contra a corrupção e a favor da Democracia no seu sentido real, assim como  da Constituição, sobre a qual, juntamente com o notável jurista Celso Bastos, legou comentários fidedignos em inúmeros volumes, sem quaisquer artifícios que possibilitem interpretações outras que levem a desvios da nossa Magna Carta, distorções, hélas, vigentes nos dias atuais. Quantos outros embates Ives não enfrentou, sempre a favor da moralidade e dos costumes! Figura de fé católica intensa, tem a admiração plena daqueles pertencentes às diversas religiões, assim como ateus e agnósticos.

Ives é igualmente poeta e contista. Quanto à poesia, máxime os sonetos, só para a dedicada esposa Ruth, falecida em 2021, escreveu mais de mil poemas. Digo sempre a ele que o seu nome deveria estar no livro dos recordes absolutos nesse quesito.

Para lembrar os 90 anos, Ives lançou livro de versos, “Tempo de Lendas” (Anápolis, Chafariz, 2025). À primeira orelha, a síntese da síntese do seu pensamento voltado aos princípios que o nortearam pela vida: “Em época e país em que os valores culturais são substituídos pelo despotismo dos governantes, pela massificação dos meios de comunicação e pela falta de patriotismo das elites, retorno ao porto seguro da poesia para respirar o ar não poluído dos campos permanentes da esperança e da ilusão. E recuperando as forças necessárias, volto à luta contra aqueles que teimam em não respeitar a nossa pátria e a nossa gente”. No prefácio, Ives comenta que reedita poesias inspiradas em cinco mulheres lendárias, Gul-nazar, Dido, Eurídice, Marabá e Circe, que alimentaram o imaginário através dos séculos. Não obstante, acrescenta que dedica esses poemas à “lenda das lendas, a mulher dos meus sonhos e de meus amores, a eterna Ruth”.

Ives sempre cultivou o poema desde a juventude. Aos 21 anos apresentou seu primeiro livro de poesia, “Pelos caminhos do silêncio” (1956) e, em um dos capítulos, “Pelo caminho da tarde”, Ruth já surge como definição:

Teu olhar tem o brilho amortecido,
O merencório lume infinital
das eternas buscas.
Teu olhar tem a palidez ebúrnea,
Dos crepúsculos cinzentos,
Das noites desvanecidas.
Teu olhar me tem.

Revisitar mulheres lendárias, que já faziam parte da sua veia poética, é um tributo a Ruth e regresso aos anos em que a poesia era para Ives o contraponto aos estudos do Direito, a resultar na harmonia interpretativa entre o rigor das leis e o livre pensamento voltado ao poema. Reimprimir as poesias que ora integram “Tempo de Lendas” representaria, creio eu, para o dileto irmão, distanciar-se, pelo menos por momentos, do quadro atual do país, respirar e regressar majorado para continuar o bom combate frente às incúrias de toda ordem que nos assolam.

Estou a me lembrar de uma nítida atração de Ives por dois itens que corroboraram a sua formação, a oratória e a mitologia. Da primeira, ainda bem jovem costumava, após leitura dos sermões do Padre Antônio Vieira (1608-1697), reinterpretar conteúdos neles contidos. Foi essa oratória “caseira”, frente aos nossos saudosos pais, que o preparou para a oratória embasada como notável debatedor. Da segunda, a literatura da Grécia Antiga o fascinava. Ter em tempos idos homenageado cinco figuras femininas lendárias foi um processo que estava em pleno amadurecimento e que o levou, entre outros temas, a dominar a poesia rimada, da qual se tornou um exímio cultor.

A data é, pois, motivo para que familiares e todos os que o admiram nessa luta diuturna por um país mais digno e justo saúdem Ives Gandra, figura exemplar.

Este testemunho está acompanhado por uma das músicas preferidas de Ives.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, “Estudo Patético”, op. 8 nº12, na interpretação de J.E.M:

https://www.youtube.com/watch?v=6H_T5I4BYn0

Ives Gandra Martins turns 90. One of the most important figures in Brazilian law, he is respected for his irreproachable behaviour when it comes to obeying our Magna Carta. In other spheres, a fighter in favour of morals and customs and, in addition, a poet of merit. It is a source of pride to have him as a brother.