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Leonor Alvim e a Arte Tri-dimensionada

Amor é sentir o universo
Pequeno para tanta estrela
Leonor Alvim

Conheci Leonor Alvim (1935-2012) no final da década de 1970. Chegara ao Brasil, vinda de Portugal, para fixar-se em São Paulo com toda a família após a “Revolução dos Cravos”, de 25 de Abril de 1974. Nesse período, nosso país receberia inúmeras outras famílias portuguesas. Privei da amizade de todo o clã dos Alvins, principalmente de meu saudoso amigo Rui Pereira Alvim, intelectual e poeta, marido de Leonor. Os filhos do casal tornaram-se amigos diários de nossas duas filhas. E concretizava-se uma amizade que perduraria…

Lutando com intrepidez, Leonor operou tripardidamente. Foi professora de piano no Conservatório Musical Brooklin Paulista e no Conservatório de Pouso Alegre em Minas Gerais, dedicar-se-ia com maestria a arte invulgar, grandes painéis tecidos, e escrevia seus poemas veladamente, sem contudo divulgá-los. Agitada, impulsiva a defender suas ideias, era sempre um prazer estético acentuado a discussão com a saudosa Leonor sobre o ato artístico. Diria que foram anos de intensa confraternização, expandida pelo relacionamento fraterno entre nossos filhos. Sob outro contexto, minha mulher Regina e Leonor chegaram a se apresentar várias vezes em recitais de piano a quatro mãos.

Depois dos anos tumultuados pós Revolução, regressaria a Portugal em 1989, a continuar sua atividade como professora na Escola de Música do Conservatório Nacional de Lisboa e a realizar seus já famosos painéis tecidos, expondo-os em alguns espaços referenciais, como a Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e a Pinacoteca do Estado de São Paulo. Estive umas poucas vezes com Leonor em Lisboa, que por vezes assistiu meus recitais de piano na capital portuguesa. Em uma das noites, após meu recital no Conservatório Nacional de Lisboa, jantamos com o saudoso compositor e amigo Jorge Peixinho em restaurante caro ao notável músico, “Toni dos Bifes”, ao pé do Saldanha. Noitada não esquecida. Dos seus cinco filhos, três permaneceram no Brasil, um deles, Rui, músico, outros dois, Tomás e Luiz, dedicando-se à editoração de livros de arte, sendo que as duas filhas singraram mares. Leonor Alvim Brazão, ativa publicitária e artista plástica nos Estados Unidos, primogênita dos Alvins, foi uma das organizadoras do comovente evento “Obrigado, Sígrido”.

Qual não foi nossa alegria ao recebermos das mãos de Leonor o livro de poemas e ilustrações de panos-collage “Palavras Soltas” (São Paulo, BEI, 2010). Encantaram-me os poemas, pois seus painéis tecidos já me eram familiares e os admirava imenso.

Confesso que jamais Leonor me apresentou um só de seus poemas e apenas conhecia os dons poéticos de Rui, com quem esteve casada por mais de duas décadas. Literatura portuguesa era a temática das conversas diárias mantidas com Rui (Os Alvins eram nossos vizinhos), pois com Leonor música e painéis preponderavam em nossos diálogos.

A poesia de Leonor Alvim tem a sua impressão digital. Aquela mulher artista que caminhava sempre agitada assim procedendo durante toda a existência, na busca frenética de horizontes não vislumbrados, mas que sabia entender a sua prole à sua maneira, refugiar-se-ia no solilóquio, recanto íntimo insondável para os outros. Anos de convívio e a criação poética de Leonor manteve-se não revelada para este amigo confidente, mormente naquele período de intensas discussões em torno da arte.

Os poemas de Leonor se processam em situações confluentes. A metáfora lhe é familiar e sabe dela servir-se com maestria. O amálgama panos-collage e poema se dá a todo instante. Em “Panos”, revela origens:

Panos

“A minha Mãe ensinou viver sem a cópia da obrigação

Onde os tecidos viraram a pele que me cobre, a sensação
Feita posse da luz que os ilumina, uma longa estrada
Brincando no espaço que se recria
Caleidoscópio de outra dimensão

A minha Mãe ensinou-me a ser livre
A ser um livro de capas da minha pele
Que ambas costuramos a vida inteira”

No poema “Noite”, Leonor ratifica a trajetória “Sou noite na madrugada e a minha pele é a Terra!”. Essa “pele”, elaborada no útero, não sofre metaforfose, pois revelaria a integração plena e harmoniosa com todo o trabalho vindouro, a feitura dos painéis tecidos. Em cada tira, na junção dos tecidos, é essa pele que, por osmose, penetra a obra de arte multicolorida – sua alma assim não era? -, intrigando o observador, mercê do propósito da artista de revelar segredos, mas a guardar mistérios, esses insondáveis. Impossível não sentir impacto frente aos seus painéis tecidos, que servem a tantas interpretações. O filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch já escrevia que o segredo pode ser descoberto, jamais o mistério.

Não obstante imagens figurativas e abstratas fundirem-se tantas vezes num delírio onírico, seria a leitura do poema que traria subsídios ao observador para  apreender ao menos uma centelha das verdadeiras intenções da artista.

Em “Amanhecer” Leonor capta a explosão da natureza, dissipados os resquícios da penumbra, aspiração em direção à luz numa visão heliotrópica. Bastam uns versos para a apreensão do todo:

Amanhecer

“Em tons ciclâmen e rosa tinge a noite seu manto de sombras
Lilases e magenta espalham-se sobre os prados
Que se espreguiçam sobre a Terra
Brilhos sob os véus que se esboroam
Nos sons do amanhecer

Raios de luz acordam a Natureza
Deslizam no espaço que se dilata, freme
A claridade avança e mistura os timbres da aurora
Às sombras da Noite… que se dilui!

Mítica luz que se espalha pelo espaço
Azul turquesa, preciosa gema, cristal facetado
Desta divindade que brilha ao nascer do Sol”

A noção do regresso, seja ele geográfico ou afetivo, move-a em direção ao geotrópico, característica visceral em tantos painéis:

Torno à velha casa donde parti

Torno à velha casa donde parti
À minha volta apenas o mar e a terra que me rodeia
O ar espesso de ausências sorvo – banquete amargo de saudades
Ser adiado, vida contida que no entanto jorra
Destes campos e colinas que me cercam
Fui embora… só este corpo resta, esvaziada a sede
Que me devora
Livre e solta, partirei agora. Outros espaços aguardam
Sem som, sem cor
Só a água clara que brota de meus olhos em prantos já antigos
Torno à velha casa donde parti outrora tão só e triste como agora

Como não pensar no soneto “Visita à Casa Paterna”, de Luiz Guimarães Junior (1844-1898), nascido no Rio de Janeiro e falecido em Lisboa?  “Como a ave que volta ao ninho antigo, / Depois de um longo e tenebroso inverno, / Eu quis também rever o lar paterno, / O meu primeiro e virginal abrigo: // Entrei. Um gênio carinhoso e amigo, / O fantasma talvez do amor materno, / Tomou-me as mãos,-olhou-me grave e terno, /E, passo a passo, caminhou comigo.// Era esta a sala (oh! se me lembro! e quanto!) / Em que, da luz noturna à claridade, / Minhas irmãs e minha Mãe… O pranto // Jorrou-me em ondas… Resistir quem há-de? / Uma ilusão gemia em cada canto, / Chorava em cada canto uma saudade.” O regresso não passaria impune nos dois poemas.

Em texto curto e exemplar, “A Patria dentro da Pátria”, a imensa poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004),  nascida no Porto como Leonor Alvim, já escrevia: “Porque ali é a cidade onde pela primeira vez encontrei os rostos de silêncio e de paciência cuja interrogação permanece. Porque ali é o lugar onde para mim começam todos os maravilhamentos e todas as angústias”. Seria essa “O Porto” que faz Leonor tão bem expressar na série de painéis tecidos a representar o Douro: “Não vejo mais o espaço, sou cada uma, áspera, lúbrica / Violenta ou doce feito mel / Gerada neste berço de família de pedras em cadeia / Esculpidas pela Natureza”.

Privilegiados os que conheceram Leonor Alvim, que perdurará através de seus painéis carregados de emoção, de lirismo e da força interior. Seus poemas seguirão como a segunda via, necessária, imperiosa até, nessa integração plena cor e palavra, vida e o amor.

From Leonor Alvim Brazão – who organized the event “Obrigado, Sígrido”- I have received the poetry book “Palavras Soltas” (Loose Words), written by her mother, the late Leonor Alvim, a dear friend who lived in São Paulo for some years, fleeing from the Carnation Revolution (1974) in Portugal. Leonor was a multifaceted artist: talented pianist and teacher, visual artist (her fabric collages are spread through private and public collections in various countries) and also a poet. This last talent was unknown to me, though we’ve been friends for more than twenty years. This post is a brief appreciation of her book, in which the amalgamation between her paneaux collages and her thought-provoking poetic language is a constant, as evidenced by the book’s magnificent illustrations. Leonor passed away in 2012, but she will remain with us through her collages charged with emotion, lyricism and inner strength. Her poems are a second path, necessary, even imperative, for merging into a single art color-word, love-life.

 

 

 

 

 

 

 

 

Um Exemplo que Leva à Esperança

Todos teremos notado que um homem realmente feliz
dissipa a penumbra e o desânimo em redor de si.
Do mesmo modo,
quando houvermos aprendido a corporificar
os novos moldes e a nova atitude,
então, para onde quer que vamos,
nossa influência e ventura far-se-á sentir
e animará os outros que lutam por encontrar a felicidade.
J.Krishnamurti
(“Mensagem d’Anno Novo”)

Insistimos em acreditar que o Ano Novo será sempre melhor. O mundo das ilusões assim determina e, mesmo que no âmago tenhamos dúvidas, compartilhar a ideia de que o ano vindouro resulte bom faz parte de nossa cultura. Ao menos reconforta.

Se tivemos um 2014 pleno de conturbações internas, de dimensões jamais vistas nas últimas décadas, um natural ceticismo invade as mentes dos esclarecidos. O cerne é o homem que, pervertido, aético, amoral, desvirtuou todos os princípios da conduta correta e feriu o país em sua essência. Esse homem tem identidade, rosto exposto na mídia e se esconde nas entranhas da Petrobrás e de tantas outras estatais – estas ainda não investigadas -, assim como, externamente, sobrevoando-as à maneira da ave de rapina, à espera do momento oportuno que sempre chega, hélas. Singularizo, pois as características são as mesmas do corrupto e do corruptor. Esse homem fere a dignidade do outro homem, o cidadão majoritário, probo, trabalhador, cônscio de suas responsabilidades com a família e a sociedade. As finalidades estão sendo amplamente divulgadas, o enriquecimento ilícito do homem espúrio – a lista parece não ter fim -  e o fortalecimento de um partido que tem como anátema a alternância do poder, esta, única possibilidade da oxigenação dos costumes. A chaga está aberta, não cicatrizável a médio ou longo prazo, divulgada aos quatro ventos, e sabe-se lá quantos recursos permitidos pela legislação brasileira não serão interpostos para que escândalos sejam julgados já abrandadas as mentes do cidadão comum, mercê da proclamada “memória curta”!!!

O preâmbulo só aqui está exposto por haver o absoluto virtuoso, cidadão pinçado nessa legião majoritária que se pauta pela natural honradez, mas que se forja no desprendimento de si mesmo, a pensar no outro como primazia. Ele existe em todas as áreas e labuta para que sementes sejam lançadas e germinem. E a semente se tornará carvalho a atravessar os séculos, como metaforicamente nos ensina Saint-Exupéry em “Citadelle”.

No post de 13 de Dezembro esbocei o perfil de uma dessas raridades absolutas, Sígrido Levental. Retorno ao tema, pois ainda tenho fios de esperança quanto à propagação do exemplo singular. Utopia? Pode ser, mas a possível única saída.

Novamente nos chegam de Portugal e da França mensagens dos músicos ilustres Idalete Giga e François Servenière, respectivamente, que captaram a figura de Sígrido exposta no blog citado, tecendo considerações que, sob outra égide, enriquecem o que escrevi, universalizando ações que busquei transmitir ao leitor.

Idalete Giga expõe:

“Embora com atraso, li todos os seus posts de Novembro e Dezembro. Tocou-me especialmente o último, A Dignidade como Respiração (dedicado a Sigrido Levental ), com um prelúdio de Saint-Exupéry que nos faz reflectir sobre o sofrimento e ilustrado com o retrato do homenageado – desenho de sua filha Maria Fernanda.

Eu desconhecia que o seu livro O Som Pianístico de Claude Debussy fosse editado por intermédio deste seu amigo. Achei muito engraçada a história da ‘lua’ suprimida pelo gráfico que pensou ser ‘sujeira’!

O Concerto de homenagem dedicado a Levental no passado dia 12 de Dezembro foi um gesto muito bonito. As verdadeiras homenagens são as que se prestam em vida das pessoas e não após a morte. Oxalá ele esteja melhor”.

Primeiramente, como pai orgulhoso, não posso deixar de mencionar o que François Servenière escreve sobre o desenho de Sígrido Levental realizado por minha filha: “Admirei a ciência do retrato de Maria Fernanda. Que talento incrível! Que lápis manuseado com extrema maestria. Temos a impressão de ver a pessoa focalizada em branco e preto numa máquina fotográfica! Ela me lembra esses desenhistas incríveis que ficam na praça de Tertre, em Paris, e que são capazes de elaborar um desenho em 15 minutos top chrono. É necessário ter um senso de observação inacreditável para se chegar à verdade dos traços do rosto tão perfeitamente”. O saudoso e extraordinário pintor e amigo Luca Vitali, admirador confesso dessas características de Maria Fernanda, explicou-me que as maiores dificuldades para um retratista residem na feitura das mãos e do olhar. Captar o gesto e a alma!

Sem conhecer Sígrido Levental, Servenière apreendeu conteúdos essenciais que busquei traduzir no post de 13 de Dezembro sobre o dileto amigo e incansável batalhador em prol da música e de um mundo mais generoso. Retirei segmentos de sua sempre extensa mensagem plena de sabedoria.

“A história de seu amigo Sígrido Levental é verdadeiramente incrível, desde sua infância. Vem  demonstrar que o sofrimento e o handicap permitem a abertura do espírito e da compaixão para com os outros, contrariamente àqueles que buscam a ‘perfeição humana’, mas que, na realidade, instalam-se no egoísmo”.

“Particularmente, fiquei tocado pelo segmento que aborda o talento e a paciência de Sígrido na elaboração de seu livro sobre Debussy, numa época das máquinas de escrever IBM com esferas. Você tem razão, na atualidade os jpg e os pdf não fazem ver às novas gerações o quão difícil era montar um livro com notações, arquivos ou menções autográficas, a partir, tantas vezes, de documentos fac-similados. Sígrido trabalhava só, com tantas outras preocupações cotidianas. Sabemos que, nos últimos séculos, dez pessoas se debruçavam para editar uma partitura musical e, sobretudo, o material de orquestra, trabalho que hoje, facilmente, realizo com meu programa Finale. Os novéis ignoram que era necessário gravar a música sobre chapas de cobre e, após, realizar múltiplas provas entre o manuscrito original escrito a mão e a partitura definitiva editada. Esse processo está reduzido ao mínimo nos dias de hoje”. Lembro ao leitor que fui editor responsável, durante cerca de 17 anos, da “Revista Música” da USP. Nos primeiros e heroicos tempos, no início dos anos 1990, tinha a liberdade para entrar na gráfica universitária para adaptar as revisões que eram feitas letra por letra numa plaquinha de metal e que formavam, então, a palavra correta. Revisão essa realizada sob forte barulho das máquinas impressoras ao redor. Edição feita (uma ou duas revistas anuais), promovia um “churrasco” de confraternização com a brava gente da gráfica.

Continua Servenière: “Tenho refletido muito a respeito da rapidez da escritura que nos permite manter longas missivas, textos e partituras todas as semanas e transmitidos rapidamente. Ausculto igualmente a emersão de não importa qual opinião, mesmo a mais medíocre, que quase que instantaneamente chega ao destinatário graças à tecnologia. Não obstante, mais e mais as opiniões tornam-se textos escritos resumidamente economizando a telefonia. E o pensamento segue esse caminho a resultar numa abreviação. O mal está no fato de que essa contração deságua tantas vezes na superficialidade. Retornamos ao B-A-B-A do pensamento”. Servenière atinge o cerne da questão e acredito, em acréscimo, que essa “redução” estilhaça a boa redação, impossibilita o discurso linguístico fluente com começo, meio e fim, inviabiliza o aprimoramento e leva o remetente a uma espécie de relaxamento, pois essa mensagem curta e desprovida de compromisso vernacular elimina, simplesmente pela ausência do que criticar, um debruçamento sobre causas e efeitos desse desmonte notório. François Servenière prossegue: “A internet reforça as ditaduras e seus promotores, reforça o desprezo dos incultos pelo saber, impermeabiliza as classes sociais, impedindo-as de se elevarem individualmente. Estabeleceu a veiculação de opiniões infinitamente pobres, dando-lhes a importância das proferidas pelos grandes pensadores. A internet nivelou valores, nivelou a apreciação de cada um avaliar conteúdos. Como tudo é divulgado, o valor é atribuído a partir do critério da audiência. Deu a mesma importância tanto para Madame Michu (primeiramente personagem masculino de “Une ténebreuse affaire” de Honoré de Balzac. Com o passar do tempo, passou a representar a mulher do povo valorosa, trabalhadora… Nota JEM) como para Aristóteles. O nivelamento por baixo, mercê dessa ‘nova avaliação’, possibilita que numerosas ruas de péssima frequência sejam batizadas com nomes como o de Maurice Ravel. Morador entrevistado disse com naturalidade ‘Certamente ele foi um rapper ‘!!!

Após a longa digressão, retorno ao seu amigo Sígrido Levental. Fiquei impressionado pelo talento do artesão editor e admiro profundamente os métodos e o perfeccionismo do músico-administrador. Tivemos a chance de viver e presenciar dois períodos tecnológicos. Você viveu 60 anos sem internet, portanto, mais de 50 anos sem computadores. Eu, um pouco menos. Entretando, conheci esse período em que, para editar partituras, era necessário fazer tudo a mão, com lápis ArtPen. A lentidão do processo era lei. Essa lentidão fazia-se presente e permitia, sob outro aspecto, a instauração do tempo de refletir sobre o que estava a fluir de nossas mentes. Hoje, com o computador, escrevo e transmito ao destinatário todo o material com rapidez. Contudo, e esse posicionamento é fundamental, regresso sempre ao processo antigo da análise da escritura, seja ela composicional ou literária. Nós dois tivemos o privilégio de ser formados na análise à antiga, utilizando porém instrumental moderno, como certamente, em determinada fase, assim trabalhou Sígrido.

Entendamos que os gestos da mão estão diretamente ligados aos do espírito, ‘essa mão estendida para o apoio, para a música, para o amor’, como escreve você no post dedicado ao Sígrido Levental. O computador deve ser apenas uma ferramenta fabulosa. Jamais substituirá a mão e o amor, a empatia, os tantos materiais utilizados para a construção dos instrumentos musicais. Se assim não fosse, teríamos um mundo cínico, pragmático, calculista, eficaz mas destituído de toda possibilidade de vazão do sentimento. Teríamos o desejo de abraçar ou cerrar nos braços um clone robótico perfeito, mas gélido, desprovido do sofrimento, dos sentidos e da sensibilidade? Que fosse insensível às nuances da mão? A mão generosa e incrivelmente complexa em suas possibilidades de expressão não nos trai.

Obrigado pela evocação fabulosa de seu amigo e de seu espírito, de sua filosofia, de seus talentos como intérprete e pedagogo. Todas as experiências que você expôs em seu blog apenas enriquecem e me alimentam. São vivências plenas e ratificam que o caminho que seguimos é certamente um dos mais difíceis, mas o melhor diante do mundo que nos cerca, a tender acentuadamente para a eliminação dos problemas de fundo para se ater apenas à superfície das coisas. Esse espírito da mão criadora e pulsante perdurará, apesar de toda tecnologia crescente, como se perenizou desde o fórum ateniense. Não nos parece tão difícil ser fiel mesmo se tantos se encontram deslocados e vivendo na aparência. Estariam os carvalhos defasados no tempo?” (tradução: J.E.M.).

As mensagens traduzem na essência esperanças. Sígrido serve como exemplo. Há uns poucos Sígridos espalhados ao nosso redor. Observá-los e apreender seus exemplos já são fundamentos para o autoaperfeiçoamento. E o suceder dos anos não se mostra como a possibilidade de melhor entendermos o mundo e seus personagens?

Um esperançoso 2015 para todos os leitores de meu blog semanal.

In today’s post I transcribe passages of e-mail messages received from Portugal (Idalete Giga) and France (François Servenière) with their views on the post about Sígrido Levental and the example he sets for all of us.
I wish you all a joyful holiday season and a happy, healthy and safe New Year.

 

 

A Lembrança dos Vinte Anos de sua Morte

No entanto, antolha-se-me que todos os escritos
são mais ou menos solidários numa preocupação:
a de conceber a música para o homem,
a de tornar este o centro da arte dos sons,
que não é apenas uma demonstração acústica,
não é apenas uma pura construção intelectual,
não é apenas um ofício e uma técnica,
mas sim também,
e acaso para além de tudo isso,
um alimento espiritual, uma presença e uma mensagem vivas.
Fernando Lopes-Graça
(Proémio de “Nossa Companheira Música”)
Lisboa, Março de 1964

Sabia da efeméride (27 de Novembro), pois impossível esquecer a carta de Dezembro de 1994 de meu saudoso amigo e também notável compositor, Jorge Peixinho (1940-1995), anunciando a morte de “nosso queridíssimo amigo Lopes-Graça”, segundo suas pungentes e sofridas palavras a mim enviadas. Meses após, seria Peixinho que sofreria ataque fulminante. Dupla tragédia para a Música em tão breve espaço de tempo!

Nesses últimos dias fui contatado por duas instituições portuguesas, a Rádio TSF (Rádio Notícias), através da jornalista Rita Costa, para entrevista sobre Lopes-Graça em torno das homenagens que estão sendo tributadas ao insigne compositor. No instante preciso fixado ligaram-me por telefone, e iniciei a longa entrevista que foi concedida à também jornalista Cristina Santos. Lembranças de meus encontros com o grande músico, assim como projetos realizados em torno de sua obra magistral foram objeto de comentários vários. Falar sobre Lopes-Graça sempre me agrada muito, pois independentemente do privilégio de tê-lo conhecido, o notável compositor português é um de meus eleitos há décadas. Desde 1959, nossos encontros se davam em seu Templo Sagrado, a Academia de Amadores de Música, espaço que continuo a frequentar desde sua morte, realizando anualmente recitais quando de viagens à Europa. A Associação Lopes-Graça, por sua vez, solicitou-me um breve relato sobre o homenageado para integrar um dos painéis que serão montados no Salão Nobre da Câmara de Matosinhos (inauguração da exposição, 20 de Dezembro) e no Museu da Música Portuguesa na Casa Verdades de Faria (2015).

Poderia acrescentar que toda a sua produção composicional ou literária me entusiasma. Foi um dos raríssimos que, dedicando-se à composição, regência coral, piano e magistério, legou-nos, paralelamente, um extraordinário acervo como arguto pensador. Se ideologicamente esteve ligado às esquerdas, o que lhe granjeou dissabores enormes durante sua trajetória em pleno salazarismo, foi um puro. Tinha convicções firmes, não buscando proveito próprio. A música era sua respiração, assim como a manifestação popular simples, autêntica o era, também sem quaisquer alardes que pudessem levar à autopromoção. O Coro da Academia de Amadores de Música, laboratório perfeito para o extravasamento de tantas aspirações…

Em Portugal, significativo levantamento tem sido feito, mormente nestes últimos lustros.  Inúmeras gravações realizadas em terras lusíadas são lançadas, a difundir mais acentuadamente obras ainda inéditas. Louve-se a dedicação de tantos intérpretes portugueses nessa tarefa exemplar. Livros e artigos estão constantemente a surgir, o que demonstra que, por parte dos que fazem música e que escrevem sobre ela, não há esmorecimento. Está a faltar a inserção definitiva além-fronteiras, sempre merecida, mas que tarda.

Lopes-Graça no Brasil. Apesar das ligações do mestre com músicos brasileiros como Arnaldo Estrela, Camargo Guarnieri, Guerra Peixe e outros, pouco ou quase nada se fez para sua divulgação no país. É simplesmente lamentável. O suceder dos decênios não apresenta sinais de que um dos maiores compositores do século XX, em termos mundiais, tenha obras apresentadas entre nós. Um dos tristes exemplos estaria no fato de que meus três CDs gravados e lançados na Bélgica e em Portugal, unicamente com obras de Lopes-Graça, não tiveram merecido sequer guarida no Brasil por parte da mídia em geral. Por puro desconhecimento do compositor!!! Bater-se contra a mesmice que impera nos repertórios apresentados no Brasil, mormente referentes ao piano, é cansativo e infrutífero. Portugal “inexiste” para as “desinformadas” sociedades de concerto brasileiras. Acreditam que ter nascido em Portugal, mas a visitar repertório outro, repetitivo, frise-se, já basta, desde que o personagem venha avalizado por Sociedades de Concerto do Exterior. Sociedades, empresários e intérpretes, que se repetem para a sobrevivência através do número de sócios, lucro e presença nos palcos, respectivamente, não estariam propensos às mudanças de repertório em nossas salas de concerto. Raríssimas vezes, de maneira isolada e até nostálgica, um compositor português é lembrado em nosso país. Triste realidade. Sob outra égide, a Universidade no Brasil basicamente ignora a música portuguesa erudita ou clássica. É fato. Ter-se-ia de mudar mentalidades.

Apresento o pequeno texto que enviei para um dos painéis mencionados em homenagem ao grande músico tomarense:

Fernando Lopes-Graça, Nome Maior da Música Portuguesa

Rendo eterno tributo a Lopes-Graça, mercê de convite para meu primeiro recital em Lisboa, no dia 14 de Julho de 1959 na Academia de Amadores de Música. Nas décadas posteriores, sempre que visitava Portugal para recitais, encontrava-me com o Mestre em seu Templo, a AAM. Empatias existem ou não. O fascínio pela obra de Lopes-Graça vem da juventude e teve curva sempre ascendente. Admirava sua postura firme, inquebrantável quando convicção ideológica ou música estavam em causa. A incorruptibilidade do pensar do Músico de Tomar tornou-se lendária.

Foram as muitas fotocópias de manuscritos, sempre acompanhadas de estimuladoras dedicatórias recebidas das mãos do compositor, que me fizeram percorrer suas partituras, buscar sorvê-las em suas essencialidades e, posteriormente, gravá-las em três CDs  lançados pela Portugaler e pela PortugalSom-Numérica, a maioria das obras em registro inédito. Os livros que por ele me foram ofertados, guardo-os como bens preciosos, consultando-os com assiduidade. As constantes viagens às terras lusíadas fizeram-me completar o corpus literário do compositor.

Acredito firmemente que em breve Lopes-Graça será reconhecido com justo mérito, em termos universais, como um dos maiores mestres do século XX. Já o é, sempre o foi, falta-lhe a divulgação incisiva além-fronteiras. Sua produção enorme e criteriosa, a abordar inúmeros gêneros musicais, seu estilo definido, pois somente os grandes deixam “impressões digitais” sobre a partitura, levarão seu nome aos quatro ventos. Esforços estão sendo feitos em Portugal através de gravações, edições de partituras e consistentes estudos críticos sobre a opera omnia do compositor. Intérpretes portugueses estão a repertoriá-lo sonoramente em terras lusíadas e esse é um aspecto dignificante. Contudo, “navegar é preciso…”. Há a necessidade de o Estado fazer sua parte de maneira a não deixar dúvidas quanto às intenções. Lopes-Graça é joia rara, assim como, num paralelo, Villa-Lobos o é. Representam para Portugal e Brasil, respectivamente, seus nomes maiores.

Clique para ouvir de Fernando Lopes-Graça:

Das “Viagens na Minha Terra”:  “Em Alcobaça dançando um velho fandango”  (piano: J.E.M., selo Portugaler)

Das “Músicas Fúnebres”: “Deploração na morte de Samora Machel” (piano: J.E.M., selo PortugalSom/Numérica)

On the 20th anniversary of Lopes-Graça’s death, Portugal pays respect to the great composer with a series of events. I have been contacted by two Portuguese organizations: TSF Radio for an interview and Associação Lopes-Graça for a brief account of my relationship with him for posters that will be on display at the City Hall of Matosinhos and at the Portuguese Music Museum. I can’t help thinking how shameful it is for us, Brazilians, to ignore the works of this outstanding artist, a rare jewel that deserves to be put on a level with the greatest names of the 20th century.